Senhor dos Anéis e a desconstrução da Segunda Era | JUDAO.com.br

No último final de semana, descobrimos mais informações a respeito de quem vai fazer a tal série inspirada na obra de Tolkien pra Amazon — e já dá até pra começar uma ligeira especulação sobre que caminho a coisa toda pode seguir

A cultura pop se comporta como um mar de memória. Se a gente acha que algo entrou no barco e zarpou para o leste em busca de um descanso final, somos surpreendidos quando a correnteza a traz de volta anos depois. Não só tivemos, na última década, DOIS reboots do Homem-Aranha no cinema, como incontáveis refilmagens de coisas que nem deu tempo de esquecer, sem falar de prequels e revivals temáticos de “décadas que ~amamos”. Nada está realmente morto. Dá até pra dizer, portanto, que até que demorou para irem lá cutucar o sarcófago de John Ronald Reuel Tolkien*, criador da saga que definiu a fantasia na literatura e, décadas depois, no cinema.

Um acordo ZILIONÁRIO colocou no colo da Amazon a chance de nos levar de volta à Terra-Média, numa série para o seu serviço de streaming. Há quem diga “Ha ha, Netflix, parece que o jogo do CONTEÚDO EXCLUSIVO virou, hein?”. Há quem ande com mais cautela para dentro de Mordor. Afinal, poucos são os que andam Mordor adentro, né?

Ainda não sabemos muitos detalhes sobre a produção. Sabemos que a história vai se passar antes (BEM ANTES) dos fatos relatados na trilogia cinematográfica clássica de Peter Jackson. A Segunda Era, ou seja, o período de tempo que cobre a ascensão e queda do mítico reino humano de Númenor, assim como a “Origem Profissional” do grande vilão Sauron como arruaceiro demoníaco e vendedor de bijuteria. Também sabemos um pouco mais sobre a equipe de criação BEM REFORÇADA que a Amazon arrebanhou para ter certeza de que essa série vai ser um sucesso. E aqui, a palavra “SUCESSO” significa tanto atrair a atenção do pessoal que não liga muito para elfos e anões como a do pessoal que pensa que Tolkien era um santo e que o Silmarillion era seu evangelho.

J.D. Payne e Patrick McKay serão os showrunners, enquanto o diretor de Jurassic World – Reino Ameaçado, J.A. Bayona, vai comandar os dois primeiros episódios da série, desenvolvendo toda a linguagem a ser seguida pelo resto das (previstas) cinco temporadas. Junto com eles, já temos anunciados uma coleção de talentos da produção e do roteiro, gente que trabalhou em coisas como Boardwalk Empire, Game of Thrones, Breaking Bad, Stranger Things e The Sopranos, pra não falar do designer de produção Rick Heinrichs (Star Wars: Os Últimos Jedi), o acadêmico especialista em Tolkien (!!!!) Tom Shippe e ninguém menos do que a lenda da ilustração John Howe que, nos anos 2000, junto com Alan Lee, trabalhou nas artes conceituais da trilogia original.

É um time extremamente competente de gente que participou de algumas das melhores coisas das últimas décadas. Mesmo que os últimos filmes de Jurassic Park tenham sido ~aquém, lembremos que Bayona faz sua incursão na série destoar no bom sentido por conta de como sabe filmar horror e fantasia — ele também fez O Orfanato e Sete Minutos Depois da Meia-Noite. E, embora, não se tenha nada conhecido vindo das mãos dos showrunners, tanta gente talentosa assim só pode significar que a Amazon não vai poupar despesas para fazer desse o seu Game Of Thrones.

E aí chegamos no x da questão.

Uma vez eu li uma matéria que falava que, depois de filmes como O Ultimato Bourne, não poderíamos mais voltar aos filmes do 007 de antigamente. O público já teria aprendido que, entre outras coisas, agentes secretos não usam jatos propulsores ou relógios de laser. Os fãs de ação teriam acostumado-se com um outro ritmo, um outro tom. Em suma, como voltar a um momento antigo no imaginário coletivo quando outra propriedade intelectual “quebrou limites” e transformou aquele imaginário? Nominalmente, vimos como em Cassino Royale e Skyfall.

Pode ser uma preocupação “preciosista demais”. Mas esse time gigante de talento por trás das câmeras vai ter um desafio igualmente gigante, enquanto são observados pela tentação de preencher um vácuo imenso deixado por aquela série sobre Dragões, White Walkers, intriga, poder e bordéis.

Game of Thrones mudou a maneira como a gente consome televisão numa proporção parecida à maneira como Lost fez o mesmo. Criou uma base de fãs tão arisca e venenosa quanto qualquer outra série que se preze. Estabeleceu memes. Ganhou prêmios. Teve um final controverso. Todos os ingredientes para se tornar uma série inesquecível. E não é difícil imaginar que os gigantes Amazonenses miravam este legado enquanto pensavam “E aí, qual é a série de high-fantasy com dragões e magia que a gente pode fazer?”.

Mas GOT fez tudo isso com os pés fincados na base estrutural da nossa era, a desconstrução. A fantasia de GOT é o mais distante possível de uma fantasia “clássica” exatamente porque quer olhar para esse classicismo e desmontá-lo. Se afundar nos lados escuros da humanidade de seus personagens. O autor da série de livros que inspirou GOT, George R. R. Martin, confesso fãzoca de Tolkien, escolheu um caminho “realista” de arquitetar um mundo medieval que fosse “mais como o nosso” em termos de que “gente morre e a vida é injusta”. Isso tem suas próprias forças e fraquezas em termos de storytelling, não sendo necessariamente melhor ou pior do que a fantasia clássica. As duas simplesmente tem funções diferentes.

Como, então, adaptar Tolkien (ou, pelo menos, o universo de Tolkien) num mundo pós GOT?

Tolkien criou seu mundo numa época bastante diferente da nossa, focando em arquétipos bem longe do que temos nos nossos conteúdos de streaming hoje. E se a concorrência do Netflix é indicativo, já que promete o seu próprio “Mundo Mágico Mas Bem Dark” com a vindoura The Witcher (que todos sabemos, merecia ser traduzida como O BRUXEIRO), o cenário não está muito para Hobbits e erva suave no cachimbo. O negócio é magia negra e prostituição.

O Senhor dos Anéis é tanto uma história sobre inocência como é sobre a escuridão. É sobre amizade, dever, valor e coragem. Não que as histórias deste universo não possam ou devam abraçar outros caminhos. Quem leu O Silmarillion sabe que há muita coisa trevosa para explorar ali. Mas o tom nunca chega perto de ser tão pernicioso ou subversivo quanto Game Of Thrones ou a série de livros na qual The Witcher é baseada chegam a ser. O Senhor dos Anéis almeja ser uma mitologia, uma intenção distante dos outros mundos de fantasia mencionados.

Quando Peter Jackson se viu obrigado a retornar ao universo de Tolkien naquela trilogia um pouco mais infeliz, ele precisou fazer ainda mais updates na história para tornar “Tolkien” um pouco mais palatável. Ele já havia tentado, por exemplo, dar mais destaque à personagens femininas, especificamente com a Arwen de Liv Tyler. Quase todas as histórias mais celebradas de Tolkien, afinal são uma festa da salsicha, e personagens femininos são mais que bem-vindos. Em O Hobbit, ele criou a elfa Tauriel, interpretada por Evangeline Lilly, e quase ninguém gostou da inserção, em especial por causa do triângulo amoroso entre ela, Legolas (Orlando Bloom) e o anão Kili (Aidan Turner). E existe uma cena em A Desolação de Smaug que exprime muito bem o que é Tolkien, ao mesmo tempo que exprime o que NÃO É Tolkien.

Kili está preso pelo reino dos elfos e começa a conversar com Tauriel. E na mesma situação onde infelizmente alguém decidiu colocar uma piada de pinto, há uma conversa etérea e sincera sobre a luz das estrelas. Sobre como ela representa beleza, memória, e sobre como algumas promessas são parecidas. É um momento que, à parte da bagunça que é o resto da produção, funciona de maneira brilhante. Não sem uma BAITA mão do compositor Howard Shore, mas funciona. Essa cena é um perfeito microcosmo do que Tolkien sempre quis abordar. Dois povos diferentes achando beleza em comum na natureza, e criando assim uma amizade que seria testada de diversas formas. Mesmo que os ~fãs torçam o nariz para a presença de Tauriel no melhor estilo “eca, meninas!”, essa pequena cena quase faz o filme valer a pena.

Lembremos. Tolkien é o cara que conseguiu mudar o gênero literário e inspirar uma geração inteira tendo páginas e páginas que descrevem florestas, maçanetas, pássaros e línguas inventadas. Uma seleção de autores (tipo Michael Moorcock) muito respeitados choramingam dizendo que Tolkien nunca escreveu “personagens interessantes” ou que suas curvas dramáticas mais pareciam estradas esburacadas. Mas Tolkien fez o que Tolkien fez, e essa cultura pop que temos hoje é neta dele.

O time “Terra-Média Amazon” terá que resistir a essa tentação de colocar o anel do “mundo moderno” no dedo, se quiser manter alguma coisa do espírito que tornou O Senhor dos Anéis o que é. Ou talvez vai precisar encontrar um caminho do meio que consiga traduzir a alma de aventura e magia que nos inspirou e nos assombrou por décadas, ao mesmo tempo que crie uma série com a linguagem certeira para aplacar este público complicado que temos hoje. A Queda de Númenor dá muito pano pra manga, sem falar de um monte de outras coisas que podem ser inseridas na série. Com cinco temporadas dá para fazer muita coisa boa. E muita coisa ruim. Como sempre, só podemos esperar e continuar extrapolando o que vai ser.

Nós precisamos da desconstrução tanto quanto precisamos da mitologia aspiracional. Ambas são importantes para a ficção. E elas não precisam se cancelar. É só saber o momento e a linguagem certa. Isso ou seremos condenados a ficar aprisionados para sempre na terra de Mordor, onde as sombras se deitam.