Documentário sobre as origens do feminismo é uma aula e também uma tremenda fonte de inspiração para não parar de lutar nunca
“Como teria sido sua vida se você tivesse nascido (e continuado a ser) homem?” Você, mulher que está lendo esse texto, já se fez essa pergunta? Tentou refletir sobre ela?
Essa é uma das muitas questões levantadas pelo precioso documentário She’s Beautiful When She’s Angry. Ele foi dirigido por Mary Dore, documentarista bastante envolvida em causas sociais e que já esteve por trás de filmes sobre trabalho infantil e a Guerra Civil Espanhola.
O filme fala basicamente sobre o nascimento de organizações como NOW (Organização Nacional das Mulheres) e da FLF (Feminist Liberation Front), além do surgimento da chamada Segunda Onda do feminismo nos EUA, nas décadas de 1960 e 70. Foi este período que pavimentou, sustentou e direcionou caminhos para a expansão do feminismo como o conhecemos e definimos hoje.
“Mas feminismo não é tudo a mesma coisa? Por que tanta onda?”. Bem, feminismo se caracteriza pela luta por igualdade política, social e econômica entre os sexos. Sim, continuamos, ainda hoje, lutando pelas mesmas coisas. Mas a desconstrução de uma sociedade não acontece num passe de mágica, de um ano pra outro. Às vezes nem de uma década pra outra.
Cada época teve seu status quo quebrado aos poucos, marcas caracteríticas daqueles tempos que foram sendo questionadas e removidas até que uma nova consciência comum fosse gerada e assimilada. A Primeira Onda, por exemplo, que se iniciou no final do séc XIX na Europa e EUA, caracterizou-se pelas conquistas das mulheres ao voto e direitos trabalhistas.
A Segunda Onda é reconhecida justamente pela obtenção de direitos sociais, sexuais e reprodutivos, tendo a pílula anticoncepcional como grande bandeira. Já a Terceira Onda do Feminismo apresentou o chamado Feminismo da Diferença, que argumenta haver, sim, diferenças significativas entre os sexos, etnias e classes sociais. E a Quarta Onda é a que os sociólogos dizem ser a que vivemos hoje, onde a movimentação social ganhou uma dinâmica e abrangência maiores, por conta do alcance da internet e das redes sociais.
Portanto, sim, a luta é antiga, e continua e vai continuar, até que a desigualdade seja vencida.
She’s Beautiful When She’s Angry (Ela fica linda quando está brava) é bem dinâmico, didático e conta com depoimentos de muitas feministas envolvidas em todos os ramos da sociedade. Elas foram peças-chave para que o movimento ganhasse a força social e histórica que tem hoje. Elas foram o Facebook da história do feminismo, nos anos 60.
Nele também são abordadas as nuances do feminismo em cada estado americano. Na Califórnia, os protestos aconteciam nas universidades e através de jornais e fanzines por meio da poesia política e da arte – movimento que teve inclusive a quadrinista Trina Robbins como colaboradora, sendo a ilustradora responsável pela capa do 1º jornal feminista dos EUA, o Ain´t Me Babe.
As feministas também participaram ativamente do movimento beatnik, em voga na época e esse fato é totalmente ignorado hoje. Conhecemos grandes autores beatniks, Grinsberg, Kerouac...mas e autoras? Consegue apontar alguma? Pois é. Susan Griffin, por exemplo, foi uma grande poetisa beatnik em um verdadeiro mar de machos.
Em Nova York, o movimento lutava pela igualdade de salários e em Washington pela presença da mulher na política e por medidas sociais mais inclusivas. Enquanto isso, lá em Chicago, algumas bandas de rock só de meninas começavam a surgir – e lá pelos lados de Boston, a parada era um movimento que ensinava autodefesa à mulheres ficou famoso, pois lá existia (e ainda existe) muita briga de rua. É muito legal observar esse crescimento orgânico e natural de um movimento social, absorvendo as diferenças e IDIOSSINCRACIAS de cada região e de cada mulher.
Outra parte bem interessante do doc é quando mostram a concepção e organização dos diversos protestos feministas que irromperam naquela época, incluindo alguns que ficaram famosos e se tornaram icônicos como a Queima dos Sutiãs em Atlantic City, por ocasião da eleição da Miss America, visando questionar os padrões de beleza altamente castradores, ou A Queima dos Diplomas em Berkeley, que teve como objetivo chamar a atenção dos acadêmicos sobre o silenciamento intelectual da mulher, já que as alunas alegavam não terem acesso a artigos ou obras de mulheres.
Também é possível testemunhar aí o nascimento dos movimentos das mulheres negras (o Black Sisters United, ou Irmãs Negras Unidas), das lésbicas, das latinas e até o movimento de mulheres em prol da sexualidade. Este último lançou o famoso livro Nosso Corpo, Nossa Vida, que foi um tabu e altamente transgressor e no qual abordavam, entre outros assuntos, a fisiologia da vagina, que muitas mulheres NÃO CONHECIAM!
Isso sem falar em iniciativas extremamente importantes, corajosas, necessárias e incríveis, como o Call J-A-N-E, de Chicago, que era nada mais nada menos que uma linha direta com um coletivo que facilitava o aborto para mulheres desesperadas com uma gravidez indesejada. O Jane salvou mais de 11 mil mulheres da morte por meio desse serviço. Lembrando, claro, que o aborto ainda não era liberado nos EUA, naquela época e elas agiam em total clandestinidade e contra a lei.
Outro fator que merece destaque é a ótima trilha sonora. Tem Aretha Franklin, tem Bikini Kill, Cat Power, Le Tigre, Velvet Underground e Janis Joplin :)
She’s Beautiful When She’s Angry é inspirador. É instigador, questionador, reconfortante e é registro vivo do poder das mulheres frente a uma sociedade machista e desigual, opressora e AUTÔMATA. É o registro do quanto conquistaram. E do quanto ainda nos resta conquistar.
Não deixe de assistir e conhecer grandes nomes do feminismo como Betty Friedan, Kate Millet, Muriel Fox, Rita Mae Brown, Roxanne Dunbar, Linda Burnham... Suas palavras estão carregadas de energia, de luta, de história e vitória. Vamos nos espelhar nas precursoras. Vamos aprender a não cometer os mesmos erros. Vamos dedicar a elas a admiração e reverência que merecem, e continuar lutando para que depois de nós venham outras.
Somos gratas, eternamente gratas por abrirem caminho para nós.