Batemos um papo com o quadrinista responsável pelo belíssimo lançamento da DarkSide, um delírio visual que mistura lendas e divindades para proporcionar um verdadeiro mergulho na relação do homem com a natureza
Assim que terminei de ler Silvestre, graphic novel com um acabamento visual simplesmente incrível lançada pela DarkSide Books, confesso que a sensação que me veio foi de uma baita falta de fôlego. Sem exagero. Tamos falando de uma jornada que arrebata seus sentidos, com uma mistura de técnicas de pintura que é ao mesmo tempo lindíssima e violenta. Cores vivas, potentes, que explodem na sua cara em páginas sujas e tinta e lama.
Basicamente, Silvestre é uma história em quadrinhos (às vezes, sem nem usar quadrinhos propriamente ditos) contada de maneira pouco ORTODOXA, justamente para mexer com os sentidos. Todos eles. Para se sentir no meio da floresta, para sentir os cheiros, o sabor do vento, o arrepio de medo na escuridão, ouvir aqueles ruídos que formam um silêncio bem pouco silencioso. E com os meus sentidos, olha, vou falar que mexeu BEM.
“A teoria do caos nunca fez tanto sentido”, brinca o autor Wagner Willian, em entrevista exclusiva pro JUDÃO.com.br. “Em determinado momento, pensando sobre como dar forma ao espírito silvestre que permeia todo o quadrinho, só fazia sentido tratá-lo como um caderno de viagens ou sketchbook. Me permiti ser livre para desenvolver cada página como desse na telha. Claro que sempre tive uma ideia do todo, mas essa liberdade tornou-se irrefutável. E acho que acabou colando”.
O resultado, pra mim, é uma história ONÍRICA sobre um homem cansado e tendo que lidar com suas próprias cicatrizes, que representa basicamente toda a humanidade e que vive seus dias em meio à natureza, em alguns momentos se oprimindo por ela e em outros se tornando seu maior predador. Mas por que diabos eu disse que este é o resultado “pra mim”? Bom, porque nem o próprio Wagner é muito fã de fazer uma sinopse tradicional do gibi. Ele diz que é sobre “um velho caçador, lendas antigas e uma torta. Uma jornada brutal entre o real e fantástico, o homem e o mito”.
Mas, na sequência, me devolve a pergunta. Então tá aí. Junte o que eu disse, o que ele disse e tente entender mais ou menos do que se trata. Ou melhor, talvez nem precise tentar ENTENDER. Vale mais sentir a potência e a urgência da trama do que racionalizar.
E pensar que, mesmo com todo o sangue e o violência que ainda assim permeiam a sua sutileza narrativa, Silvestre surgiu de um livro infantil. “O livro usado no filme Babadook. Lembra dele? Era um livro infantil de terror. Silvestre em sua versão original era a mesma coisa, um livro de terror para criancinhas levadas”, explica ele. “Mas como todos os meus livros, a coisa saiu do controle. Acabou virando o que você acabou de ler”.
Mas quaaaaaaaaaaaase que este quadrinho acabou sendo mais uma vez adiado. Porque, embora Wagner já estivesse trabalhando nele há algum tempo, ele acabou passando O Maestro, o Cuco e a Lenda (obra que nós inclusive recomendamos bem aqui) na frente porque, além do prazo do edital do ProAC (Programa de Ação Cultural do governo estadual de São Paulo), a própria história do cuco o tomou de assalto. “Quando ganhei o OUTRO edital, desta vez o primeiro e único da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, tinha o prazo a cumprir. Não tinha mais como evitá-lo”, conta. “E aqui fica clara a importância de premiações como essas. Talvez sem o fomento do governo, Silvestre continuasse sendo adiado. Acho interessante colocar isso aqui com todas as letras porque é um investimento muito baixo se formos comparar com outras áreas culturais, mas que possui uma boa projeção”.
O mais curioso é que, depois de abandonar a versão do gibi como uma espécie de livro infantil, Wagner começou a escrever algumas das lendas que entraram no quadrinho: a lenda do cervo, do castor... e do cuco. “A lenda do cuco tinha ficado tão interessante para mim que fiquei encucado com a ave maldita. Para quem quiser saber, a lenda é exatamente aquela que o avô contava ao neto no quadrinho do Cuco”. Ou seja, acabou criando-se uma conexão entre as duas obras. “Há ainda o personagem do avô que foi um famoso maestro, que tinha em sua casa um verdadeiro tesouro com diversos objetos e instrumentos de várias partes do mundo”. Para aqueles obcecados por easter eggs, talvez estejamos diante do Wagnerverse.
Enquanto você fica pensando nisso, vale inclusive pensar no momento em que o quadrinista reúne dezenas de divindades da natureza diferentes na cabana do velho caçador, do nosso tradicional Curupira à assustadora Baba Yaga, bruxa canibal do folclore eslavo, passando inclusive por uma certa Cuca... Não te lembra algo, assim, só de descrever? Talvez Deuses Americanos, do Neil Gaiman? “Te confesso que parei no começo do livro”, diz ele. “E vi apenas o primeiro episódio da série. Mas faz total sentido, a julgar pelas resenhas que li sobre”. A gente também acha que faz, ainda mais pelo cruzamento de seres tão diferentes entre si numa única cena, “humanizados” em torno de uma mesa e do desejo simples de comer uma torta e simplesmente socializar.
“Precisava criar um estopim com um tipo de combustível extremamente inflamável. Isso norteou a seleção das divindades e criaturas fantásticas”, conta Wagner. “Fui atrás daqueles que tivessem ligações com a floresta (óbvio, estava no contexto), com sexo (para dar pulsão), com loucura (questão estética) e morte (motivos literários). Como o lugar da história não é estabelecido, e há a questão mágica envolvida, pude ir buscar esses demônios em diversas culturas”. Funcionou lindamente.
Enquanto a arte mescla trechos feitos com lápis, nanquim e tinta a óleo, criando uma atmosfera de devaneio e pesadelo que só ajuda a ressaltar o aspecto selvagem da coisa toda, os textos acabam trabalhados de forma quase desconexa.
Tudo é escrito sem uma formatação tradicional, incluindo certas palavras assumindo um papel bem mais visual, numa pegada meio poesia concreta, com palavras como “distante” escritas “d i s t a n t e”, por exemplo. “Era para ser tudo escrito à mão. Mas minha letra é sofrível”, afirma Wagner. “E escrever tudo aquilo seria cansativo demais também. Quando o aspecto silvestre já estava germinado, as manchas gráficas do texto não poderiam ficar certinhas, com texto justificado à esquerda, saca? Isso ficou inconcebível”.
Foi então que ele resolveu criar aquele traquejo todo das palavras em relação à estética e principalmente em relação ao seu sentido, como se fossem símbolos. “Era como se eu estivesse ilustrando com as palavras. Quando mandei o (arquivo em) PDF para a DarkSide, eles adoraram aquilo. E ressaltaram esse sentido em outras passagens mais tímidas”.
SILVESTRE
Editora DarkSide Books
Capa Dura
Colorido
192 páginas