Somos todos monstros | JUDAO.com.br
8 de fevereiro de 2014
Filmes

Somos todos monstros

Por que amamos zumbis, vampiros, extraterrestres dominadores, gigantes improváveis, Dexter e House?

Por que amamos zumbis, vampiros, extraterrestres dominadores e até mesmo gigantes improváveis, como Godzilla e King Kong? Provavelmente é pela mesma razão que adoramos um serial killer “do bem” como Dexter ou um médico tipo o House, que quase sempre expõe o paciente ao risco de morte.

A explicação mais plausível é que a vida é mais do que bem e mal, do que o maniqueísmo da novela, onde a pessoa é de uma cor só. Eu explico: o tal Felix, do Mateus Solange, era hiberpolicamente mau, tentava matar colegas de trabalho, abandonou a sobrinha em uma caçamba quando ela era bebê e bancou pelo menos dois sequestros da mesma, anos depois. Num deles, a menina foi levada pro Peru. Monstruoso, né? Centenas de capítulos depois, ele pediu desculpas e ficou bom, absolutamente bom, inegavelmente bom. De coração puro. Tranquilo. Afável, embora mimado. Quer dizer, ou ele era péssimo ou era excelente. Não existe meio termo ou comportamentos de acordo com o momento. Ou se é 8 ou 80 numa novela. Certo?

Mais ou menos. Existe, como fenômeno recente nas novelas, o vilão “que a gente entende”. Eu tô falando da Carminha, de Avenida Brasil. Ela era péssima. Matava, torturava, odiava, tirava vantagem, roubava geral. Mas foi abandonada no lixão pela própria madrasta, quando criança. Isso dava uma atenuada, né? Outra vez, mais ou menos. No geral, não sentimos menos raiva de um assaltante porque ele teve uma infância difícil. O lance da Carminha é que ela assumia que vários personagens da novela eram chatos pela excelência da linguagem do negócio.

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Quem não chegou a torcer pra Nina se foder na mão do personagem da Adriana Esteves, tamanha a demora pra ela consumar aquele arrastado plano de vingança?

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Já dizia São Tomás de Aquino: “Timeo hominem unius libri”. Tipos: “Temo o homem que só conhece um livro”. No caso, a Carminha era mais de um livro, ela era terrível com o povo da história, mas ótima pra gente. Ela era uma espécie de ombudsman da chatice dos clichês que podem rechear uma novela: azucrinava geral, embora quase sempre pelas costas de seus alvos. Era uma monstra que prestava um serviço pro espectador.

E isso leva este texto a um outro personagem: a gente. Sim, todos nós. No ambiente de trabalho, na faculdade, entre amigos ou mesmo na família, sempre tem aquele que não pode virar as costas, que começam os comentários, os olhares. E quando a figura é pouco querida por mais de um integrante do grupo, o bicho pega. Quando percebemos, nem sabemos mais como começou o blá, estamos todos há meses odiando alguém em cada partícula de suas atitudes. Sangue nozóio. Mas nem lembramos mais a razão disso.

Dessa mesma forma, mas no avesso, acontece com o amor em relação a determinada figura da mídia. O Papa Francisco, por exemplo, é um caso muito bem sucedido de marketing midiático. Todos o amam. Ele abençoa gente deformada. Ele tira foto com gente miserável. Ele leva mendigos pra tomarem café com ele. Mas ele, a exemplo de Bento XVI, João Paulo II e todos os outros antecessores, não entrega à justiça os milhares de padres pedófilos que existem mundo afora, cujos crimes e provas irrefutáveis estão sob domínio da cúria. Mas, e daí? Outro dia o Papa falou que a internet é um presente de deus. E é isso que a gente quer ouvir, né não?

Quem silencia sobre estupro é um monstro. Somos todos monstros, portanto. Silenciamos.

Dança, Jesus, Dança!

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E o taxista, que gostaria que a ditadura militar voltasse “porque naquela época não tinha tanto vagabundo na rua, a economia era muito melhor, aí que era bom”?

[/one-half][one-half last=”true”]Todos sabemos que os militares multiplicaram a dívida externa, torturaram e executaram não apenas presos políticos, mas ladrões de galinha e gente desavisada, que não era nem marginal nem de esquerda, e que praticaram um apartheid pesado, separando fortemente as favelas do asfalto. Não à toa, quando o poder público acessou de verdade as periferias brasileiras, em períodos democráticos, encontrou outros poderes já instalados. Mesmo assim, quantos de nós pensam como o taxista? Vários. Taxi[/one-half]

Quantos de nós fazem cantadas agressivas com as mulheres cujas roupas que se encaixam “daquele jeito” no corpo delas, como se elas procurassem por aquilo, pedissem por aquilo? E quem não acha que criança que faz muito barulho precisa de castigo? Quem não pensa que os gordos engordam porque são preguiçosos? Das pessoas que você conhece, enumere uma que não faria exatamente como os políticos fazem “quando chegam lá”? E os que reclamam da corrupção, mas compram carta de motorista, pagam pra furar a fila do visto no consulado, dão um cafezinho pro PM liberar da multa? E os que cheiram bagulho traficado de bocadas que empregam crianças, comem putas que são nitidamente funcionárias semi-escravas (ou totalmente escravas), riem do fedor do mendigo, bebem mas criticam os tiozinhos bêbados que enchem o saco, saem de carro prontos para o tudo ou nada, dirigem como se quem está no carro fosse mais dono da rua que o pedestre, pensam e ou falam que o cônjuge tá pedindo pra ser chifrado, usam a fé para condenar o próximo? Quem não fica teclando no celular enquanto pais e avós tentam conversar e trocar experiências? Quem não trai?

“Ah, mas você quer o quê? Que todos nós sejamos anjinhos?”
“Você é santo, por acaso?”
“Que texto moralista.”

Eu não sou nada, não quero nada, não espero nada. Não acredito em bem e mal. Mas esse texto é sobre monstros. E é isso que a gente é, inegavelmente. A compensação, pra não nos sentirmos tão mal, é que esse é nosso lado Chimpanzé. Há também um Bonobo dentro de cada um de nós.

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Take it easy. We’re all apes, after all.

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