Trekkers love Lucy | JUDAO.com.br
16 de junho de 2015
Séries

Trekkers love Lucy

I Love Lucy, que retorna para a TV aberta brasileira, representa muito mais para a ficção científica do que você deve imaginar

Nesta semana I Love Lucy retornou para a TV aberta brasileira. Uma produção que, lá nos EUA, estreou em 1951 e que mudou de muitas formas a televisão mundial – e nem estou falando por ter sido a responsável por criar o formato do que hoje conhecemos como sitcons.

Existe uma relação direta entre as estrelas da série, Lucille Ball e Desi Arnaz, com Star Trek – e, claro, com tudo o que domina a ficção científica que veio depois.

Lucy foi audaciosamente onde nenhum homem jamais esteve.

Inicialmente uma modelo, Lucille foi para Hollywood ainda nos anos 30 em busca de uma carreira de atriz. No final dos anos 40, ela já fazia sucesso e, nessa na TV, viu um caminho para produzir algo ao lado do marido, o cubano Desi Arnaz. Com base em um projeto que ela já tinha feito no rádio, chamado My Favorite Husband, assim surgiu I Love Lucy, a primeira série de comédia rodada com a presença de uma plateia, o que é apenas um detalhe perto do que estava por vir.

A ideia de Lucille e de Desi era produzir tudo em Hollywood, onde viviam. Só que, seguindo o modelo de transmissão do início dos anos 50, a produção seria ao vivo. Como os EUA (sem contar Alaska e Hawaii) possuem quatro fusos-horários diferentes, a emissora seria obrigada a exibir para boa parte dos telespectadores, que viviam na costa Leste dos EUA, uma cópia em baixa qualidade uma semana depois, gravada em 16mm a partir de um monitor em um método chamado Kinescope – ainda não tinham inventado o videotape. O piloto foi gravado assim simplesmente para poder mostrá-lo aos patrocinadores, mas a Philip Morris, principal anunciante de I Love Lucy, rejeitou esse formato para a temporada regular e queriam que a série seguisse o padrão mais usual na época, sendo transmitida ao vivo de Nova York para o Leste e a região Central dos EUA, com a Costa Oeste ficando com a cópia de má qualidade. Só que o casal não queria mudar de cidade... Como resolver? Bom, criando um NOVO modelo de produção e exibição.

A solução foi gravar I Love Lucy em 35mm, como um filme, que seria exibido em qualquer lugar com a melhor qualidade possível pra época. Só que a mudança levou uma outra questão: ao fazer isso, a produção entrava em acordos de outro sindicado, o do pessoal de cinema, num rolo que obrigou o canal CBS a deixar a produção da série na mão dos próprios Desi e Lucille. Para tocar o projeto, nascia aí a Desilu Productions.

Em 1953, a Desilu produziu um vídeo revelando os bastidores em mais detalhes.

Nos primeiros anos, I Love Lucy era rodada em um estúdio alugado. Com o tempo, passaram a comprar estúdios, incluindo o da antiga RKO Pictures, que tinha sido uma das maiores produtoras de filmes de Hollywood nas décadas anteriores e, nos anos 60, a Desilu já era a maior produtora independente de TV nos EUA, que, depois de I Love Lucy (que durou até 1957), produziu The Lucy Show (uma espécie de continuação da série original), Os Intocáveis e Missão: Impossível.

Com o divórcio e a renúncia de Desi Arnaz ao cargo de chefe do estúdio, Lucille Ball passou também a ser presidente da Desilu, fazendo dela a primeira mulher poderosa de Hollywood.

Por isso, fazia total sentido Gene Roddenberry procurar a Desilu, em 1964, com uma ideia de um “western estelar” chamado Jornada nas Estrelas.

Herb Solow, diretor de Produção da Desilu, não só topou o projeto, como também passou a procurar uma casa pra ele. O primeiro canal a ser procurado foi a CBS, com a qual a Desilu já tinha um acordo de “first-look”, mas eles já estavam com Perdidos no Espaço na manga e acreditaram que as duas produções eram muito parecidas. Em seguida, Solow foi até a NBC, com a qual já tinha trabalhado. O canal não só gostou do conceito, como encomendou o piloto. Junto com os pilotos de outras VINTE E TRÊS séries.

Assim foi produzido o primeiro episódio de Star Trek, The Cage.

Mas aconteceu algo que Roddenberry não esperava: o canal recusou a série, acreditando ser muito “cerebral”. Mais inesperado ainda (tanto praquela época, quanto pra hoje em dia) foi a encomenda de um segundo piloto, depois que a própria Lucille, que acreditava na ideia, interveio com o pessoal da NBC.

Roddenberry então voltou para a prancheta e fez diversas mudanças no conceito de Star Trek. Pra começar, tirou capitão Christopher Pike e o substituiu pelo mais carismático capitão James T. Kirk, além de introduzir os personagens Scotty e Sulu. Além disso, refinou os conceitos por trás do Sr. Spock e ignorou completamente a existência da Número Um, uma mulher que era a segunda em comando no piloto anterior – depois, com cabelos loiros, a atriz Majel Berrett voltou para a série como a enfermeira Christine Chapel.

Talvez pelo polimento dos conceitos, pela introdução do capitão Kirk ou por ter uma mulher sem tanta PROEMINÊNCIA no enredo (pois é) a NBC gostou desse segundo piloto, chamado Where no Man Has Gone Before, e finalmente aprovou a série.

Star Trek estreou nos EUA em 8 de setembro de 1966.

Bom, não é aqui que a história leva um “e viveram felizes para sempre”. Digamos que as coisas não estavam nada boas financeiramente para a Desilu e Lucille Ball – que, além de tudo, sofria para manter uma imagem de mãe de família, que cuidava dos filhos, mesmo trabalhando ~fora, numa época em que ainda havia muito preconceito para as mulheres que faziam isso. Pra piorar, os episódios de Star Trek (assim como os de Missão: Impossível) eram extremamente caros para a época. Ed Holly, um dos executivos do estúdio, conta no livro These Are The Voyages que chegou a comentar com a Lucy antes da aprovação dos pilotos que “se essas séries tiverem a má sorte o suficiente para serem vendidas, vamos ter que vender a companhia ou declarar falência”.

Pra piorar, Star Trek se viu alvo de grupos religiosos (que viam no Spock como uma representação de demo, sério) e a audiência não ia muito bem. Tanto é que a série esteve perto de ser cancelada logo após a segunda temporada, sendo salva por uma grande campanha de cartas dos fãs. Sim, assim que eram feitas as coisas antes dessa tal de internet.

Eis que, em Fevereiro de 67, veio a proposta salvadora para a situação da Desilu, já prevista por Holly: a de venda para a Gulf+Western, que tinha acabado de comprar a Paramount Pictures – que, veja só, ocupava o lote ao lado da Desilu em Hollywood. Depois de um período de transição, os dois terrenos foram reunidos e um só e a Desilu passou a se chamar Paramount Television – e, hoje, atende pelo nome de CBS Television Studios.

Pra terceira temporada, iniciada em setembro de 1968, Jornada nas Estrelas acabou relegada às noites de sexta-feira, às 22h. O pior dia e horário possíveis, que havia matado outras séries antes. Além disso, o orçamento por episódio foi drasticamente reduzido. Roddenberry ficou extremamente chateado com a situação e deixou o dia-a-dia da série. No final daquela temporada, Star Trek foi definitivamente cancelada.

O que ninguém poderia esperar é que as reprises da série em canais menores e afiliadas das grandes emissoras dos EUA transformariam Star Trek em um clássico cult, com audiências ainda maiores do que na primeira exibição. Nascia um fenômeno.

Um fenômeno que deve muito à Desilu, Desi Arnaz e Lucille Ball. Só mesmo uma produtora independente tão importante para apostar em algo que fugia completamente do que era feito na TV naqueles tempos, com bala na agulha pra convencer um grande canal a bancar não apenas um, mas dois pilotos – e que se sacrificou a ponto de precisar ser vendida para pagar os altos custos de produção. Pena que era uma série tão à frente de seu tempo que teve que esperar alguns anos para ser um sucesso, literalmente.

O parque criado pela Lucy continua lá (Renan Martins Frade / JUDAO.com.br)

O parque criado pela Lucy continua lá (Renan Martins Frade / JUDAO.com.br)

De qualquer forma, o resultado continua lá, em tudo que Jornada nas Estrelas influenciou na ficção científica, e também nos próprios antigos estúdios da Desilu, ainda de pé em Hollywood, incluindo o antigo escritório de Lucille Ball, o parque que reproduzia o quintal da sua casa em Beverly Hills e onde ela fazia fotos de divulgação com os filhos (para mostrar que sim, era uma boa mãe), o estúdio onde foi gravado a última temporada de The Lucy Show e Here´s Lucy, e, claro, o local onde todas os filmes e séries de Star Trek foram rodados.

E você achando que I Love Lucy era só mais uma comédia antiga que o Silvio Santos resolveu exibir na hora do almoço, né? :)