A pergunta mais frequente entre os fãs de Jornada nas Estrelas, com algumas respostas interessantes, algumas erradas, algumas incompreensíveis, tem somente uma resposta certa.
É perfeito até demais que a gênese de um dos protagonistas mais icônicos da franquia de sci-fi mais famosa do mundo* tenha alguns elementos do ethos dele próprio. Quando Patrick Stewart foi escalado para interpretar Jean-Luc Picard, houve testes de peruca para esconder sua careca naturalíssima e precoce; quando todas as tentativas resultaram em comédia não intencional, decidiram seguir com sua lustrosa cabeça série adentro.
Em uma coletiva de imprensa, questionaram o criador Gene Roddenberry sobre “como temos um capitão da Enterprise careca se, no futuro, certamente já teriam descoberto a cura para tal desonra”. A resposta do inventor da Velocidade de Dobra foi “porque, no futuro, ninguém vai se importar com isso”.
O mundo então ganhou “o capitão careca” que era um símbolo de humanismo, sabedoria, bravura e “comportamento britânico” — este último, no melhor sentido possível. Stewart, anos antes de ganhar fama mundial num subgênero do sci-fi muito mais lucrativo no papel de um semi-deus cadeirante, dava ali em Jornada nas Estrelas – A Nova Geração um peso shakespeariano para dilemas cada vez mais complexos sobre o significado da vida, da memória, a extensão da humanidade. A nova série queria fazer um update no visual e na linguagem do programa inaugural, aquele que mesmo cancelado depois de três temporadas, alcançou uma legião de fãs nas reprises e numa série de longa-metragens que tiveram altos bem altos (A Ira de Khan!) e baixos bem baixos (quase todos os outros filmes!).
Mas A Nova Geração também, como todo bom sci-fi, seria um reflexo de sua época, discutindo temas mais próximos do público com muito mais maturidade do que sua antecessora. E, também depois de uma série de filmes, a tripulação da Enterprise sob comando de Picard finalmente descansou. Porém, no comecinho de 2020, pegando onda no sucesso que foi Discovery, Patrick Stewart volta para nos mostrar a (talvez) última parte da história do capitão.
Star Trek: Picard coloca o agora almirante reformado em sua vinícola francesa, contando os dias da aposentadoria. Os sonhos, por vezes agradáveis, em outras ocasiões perturbadores, sincronizam com a chegada de uma estranha jovem em busca de ajuda chamada Dahj (Isa Briones). Ela está sendo perseguida por forças misteriosas que podem ter a ver com antigos fantasmas da vida de Picard — um excelente motivo para o fleumático oficial sair do seu sofá e ir desvendar alguns mistérios, cutucar alguns vespeiros e tomar muito chá quente.
A série, assim como Discovery, troca o procedural estoico da Nova Geração (e de todas as séries até então) por uma narrativa progressiva, um mistério a ser desvendado que vai seguir pela temporada inteira (ou talvez a série inteira, dependendo dos resultados). Alia-se com avanços na linguagem visual, que graças a um orçamento mais encorpado e aos avanços na filmagem podem dar luz, fotografia e efeitos visuais e de maquiagem muito mais críveis do que aqueles do início dos anos 90. E embora o roteiro não demore muito para cair em uma ou outra mesmice, como “agentes infiltrados”, “segredos milenares” e “missões impensáveis”, ele atinge certas notas bem curiosas e completamente alinhadas com o espírito tanto de Jornada nas Estrelas como do próprio Picard.
O episódio de estreia da temporada explica o porquê de Picard ter se afastado da Frota Estelar e, sem entrar em muitos detalhes, envolve a Frota tomando decisões baseadas em valores pouco respeitáveis. O Comando da Frota teria impedido Picard de executar uma operação monumental para salvar vidas, por conta de politicagem e logística. Mas, usando o tradutor universal, a gente sabe BEM que foi por racismo.
Romulano, klingon, ferengi, humano, não importa, todas são vidas. Todas têm um valor intrínseco que transcende qualquer barreira de medida qualitativa. Todas são vidas. E esse “dogma” vai ser o ingrediente principal da trama central da série, que também envolve o quanto Picard valoriza qualquer coisa que podemos chamar de “vida senciente”. Em certo momento, ele expõe para uma personagem, que não está muito certa do que ela realmente é, que vida é vida, mais uma vez e novamente. Que sua origem, deliberada ou não, a torna merecedora de uma existência digna. E que ele vai lutar por essa dignidade, custe o que custar.
Com poucos episódios no ar, podemos dizer que Star Trek – Picard talvez não vá ser a MELHOR SÉRIE DO ANO. Temos mais alguns episódios pela frente e uma segunda temporada aprovada. Mas podemos dizer que é bem feita o suficiente, em especial pela presença incontestável de Patrick Stewart, para manter-se como uma das mais relevantes. Mais ainda por conta de seu conteúdo, que faz exatamente o que o sci-fi precisa fazer.
Em épocas de muros, Brexits, genocídios e aplausos estatais a terror interno, o sci-fi é o gênero responsável por correr atrás dos valores que a gente esqueceu. Mesmo que Picard, ao ver alguém folheando Isaac Asimov, diga que nunca teve interesse em ficção científica porque “nunca a entendeu”.
As melhores e maiores obras do gênero sempre funcionam como um reflexo daquilo que a tecnologia, os avanços sociais e descobertas mirabolantes podem causar na raça humana. Mesmo que desde os anos 1980 o subgênero do cyberpunk tenha aberto as portas para o pessimismo ecológico e econômico sobre nosso futuro, no qual cada pessoa e cada folha de árvore terá um código de barras, Jornada nas Estrelas persiste nos dizendo que existe outra saída.
Há esperança num futuro no qual não existe mais dinheiro e os esforços coletivos da humanidade buscam simplesmente curar, descobrir, proteger e audaciosamente ir.
Até onde, a gente só descobre amanhã.