Strange ways, twisted days: 40 anos de Hotter Than Hell, do KISS | JUDAO.com.br

Quatro décadas atrás, todos os pequenos demônios existentes no grupo começaram a erguer suas cabeças e o clima ficaria mais quente que o inferno

Reza a lenda que as três primeiras turnês do KISS, em 1974, foram escolhidas na base do dardo: pegue um dardo, jogue-o no mapa dos Estados Unidos, e lá será seu próximo show. Rotas sem sentido e falta de tempo para dormir resultaram em desgaste físico, tanto na banda quanto na equipe. Pra piorar, o primeiro álbum do KISS não fez sucesso e a Casablanca decidiu que a solução seria um novo álbum. Mortos de cansaço, Gene Simmons, Paul Stanley, Peter Criss e Ace Frehley mudaram-se de mala e cuia para a Califórnia e bastou chegarem lá para se sentirem como peixes fora d’água. Para quatro caras acostumados com as ruas de Nova York, o glamour de L.A. não era nada acolhedor. Devo acreditar que o título Hotter Than Hell (Mais quente que o inferno) tenha um significado oculto.

Foi também nesta época que as diferenças de personalidade começaram a brotar no KISS. De um lado, ávidos por fama e fortuna — não necessariamente na mesma proporção —, Simmons e Stanley; do outro, Criss e Frehley iniciavam a trajetória acidentada que eventualmente os levaria para fora da banda. Enquanto Gene e Paul eram os caras sérios e responsáveis, Peter e Ace pareciam estar jogando contra: bebiam e cheiravam todas, não apareciam na hora marcada e faziam as mais loucas exigências: Peter chegou a ameaçar sair da banda caso seu solo de bateria de sete minutos em Strange Ways — “a pior coisa que já ouvi”, segundo Gene — fosse cortado. No livro Nothin’ to Lose: The Making of KISS, o produtor Kenny Kerner observa: “você tem a vida toda para compor músicas para seu primeiro disco e seis meses para compor as que entrarão no segundo”.

Felizmente, o KISS deixara sobras que viriam a ser retrabalhadas, como Goin’ Blind, escrita por Simmons e seu então parceiro no Wicked Lester, Steve Coronel. Na perturbadora letra, um velhaco de 93 anos lamenta não poder consumar o amor com uma mocinha de 16. Por ironia do destino, semanas atrás, Coronel foi em cana acusado de, vejam vocês, pedofilia. Outra sobra, Watchin’ You (“Mississippi Queen” do Mountain encontra Janela Indiscreta de Hitchcock), também aborda um assunto polêmico: o voyeurismo, prática comum na Nova York dos anos 1970 e nas grandes capitais do novo milênio.

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Apesar de o fator relógio ter influenciado na qualidade das composições — Hotter Than Hell é musicalmente mais fraco do que o primeiro, auto-intitulado —, a grande queixa da banda, dos fãs, da gravadora e dos próprios produtores Kerner e Richie Wise e dos ETs do planeta Jendell é em relação ao som. Na tentativa de capturar a sonoridade da banda no palco, Hotter Than Hell foi gravado ao vivo e o resultado foi desastroso. No mesmo Nothin’ to Lose, Wise assume a culpa pelo fiasco: “tomei as decisões erradas sobre sonoridade e decisões criativas ruins (...) Lembro de masterizar infinitamente a gravação, tentando melhorar o som (...) A masterização deixou-o ainda pior.” O som zoado dá pano pra manga até hoje.

Em junho passado, Ace Frehley reafirmou à Ultimate Classic Rock seu descontentamento quanto ao que se ouve em Hotter Than Hell. O guitarrista, que na época não se sentia seguro como cantor — e não contava com o menor incentivo de Gene e Paul para desinibir-se — comparece com duas composições (Parasite e a já citada Strange Ways) e é coautor de Comin’ Home, um desabafo sobre a correria que é a vida na estrada, em rara parceria com Paul, da qual sequer se lembra, pois “passava a maior parte do tempo bêbado”. E viver chapado quase custou-lhe a vida ao envolver-se em um feio acidente de carro. Dos males o menor: Ace arrebentou metade do rosto, levou alguns pontos e deu trabalho extra ao departamento de arte, já que não pôde se maquiar para a sessão da qual sairia a foto da capa do disco.

Peter Criss assume o microfone em Strange Ways (presente de Ace ao companheiro de orgias) e em Mainline após chantagear Paul, que escreveu a canção (“Se eu não cantar essa música, eu saio da banda”) e somar mais um piti para a conta. Mainline, assim como Got to Choose e a faixa-título — ambas também de Paul — compartilham o tema preferido do Starchild: mulheres.

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A abordagem, porém, varia: em Got to Choose há a imagem da perfeita filha da puta, que espera o marido sair de casa pra dar pro vizinho; já em Hotter Than Hell, a gostosona de Strutter reaparece com anel de noivado para uma nova esnobada. Por fim, Mainline inaugura a série de letras nas quais Paul faz a passiva e implora por amor (“I know you could use me, so please don’t refuse me”) e misericórdia (“You’ve got to start givin’, and baby, stop livin’ above me”). Nem mesmo o groove que encantou Criss esconde o caráter sexo frágil da letra.

Em termos de vendas, Hotter Than Hell não fez muito diferente do seu antecessor — o KISS só estouraria no ano seguinte com Alive! —, mas forneceu material que, à época, ajudou a estabelecê-los como a banda mais quente do mundo... até o ponto em que pegou fogo pra valer.

No pior dos sentidos.

Mas isso é assunto pra outro dia.