Norrin Radd, o arauto de Galactus em busca de liberdade nas estrelas, acabou se tornando queridinho do principal nome da Marvel — um herói que ele não queria largar e acabou não tendo a chance de ver se tornar protagonista nos cinemas
“Eu interpreto todos os personagens quando os estou desenhando. E, de fato, o Horácio é o mais parecido comigo. Dizem que ele é meu alter ego, e é verdade”, confessou, lá em 2015, o nosso Mauricio de Sousa, em entrevista à Rádio BandNews FM. Não por caso, o dinossaurinho vegetariano, repleto de reflexões filosóficas, virou xodó do autor que, até bem pouco tempo atrás, não deixava nenhum outro autor encostar no personagem — o único que continuou sendo roteirizado e desenhado exclusivamente pelo Mauricio, mesmo com o verdadeiro batalhão de artistas que trabalham em seus estúdios.
De certa forma, é um pouco do que aconteceu, durante quase vinte anos, com Stan Lee, que também tinha o seu próprio eu representado no universo de seus gibis de super-heróis. Um alguém através de quem ele podia lançar um olhar mais profundo sobre o mundo e cujas rédeas o roteirista não queria soltar de jeito nenhum. Homem-Aranha? Nada. Na verdade, tamos falando aqui de um alienígena com uma pele prateada que SINGRA pelo cosmos equilibrado em uma prancha. Trata-se de Norrin Radd, um egresso de Zenn-La que sacrificou a própria liberdade para salvar o seu planeta da fome sem fim de Galactus.
O Horácio do Stan Lee era mesmo o Surfista Prateado.
Tudo começou com um personagem que seu parceiro Jack Kirby desenhou sem consultar Lee, na história de apresentação do gigantesco e assustador Devorador de Mundos em Fantastic Four #48, de Março de 1966. “Quem diabos é este?”, perguntou Stan, ao se deparar com os desenhos parte do chamado Método Marvel: ambos discutiam ideias, Kirby começava a trabalhar em cenas individuais e alguns detalhes adicionais a partir de uma breve sinopse e aí o roteirista chega com os diálogos e desdobramentos finais. “Eu achei que qualquer um tão grande e poderoso quanto Galactus teria um arauto para viajar na sua frente em busca de planetas para que ele se alimentasse”, teria dito Jack, conforme explicou Stan Lee em uma deliciosa entrevista pro projeto Web of Stories.
A ideia, no fim das contas, não parecia ruim pro titio Stan, mas ele pirou no jeito que o Rei Jack desenhou aquele tal sujeito. “Ele parecia tão heroico, tão nobre, tão dramático, que o batizei de Surfista Prateado. E, ao invés de ser apenas um cara que viajava de planeta em planeta, eu o tornei um observador filosófico do mundo e do universo como um todo”, conta Stan. “E eu fazia ele falando daquele jeito meio semi-bíblico, shakespereano. No fim, ele se tornou a minha própria voz para que eu pudesse falar como me sentia sobre muitas coisas. Eu disse pro Jack: hey, eu quero usar bastante este cara aqui”.
E usou mesmo.
O Surfista foi coadjuvante recorrente durante quatro anos nas HQs do Quarteto, ganhando sua maior chance numa história própria em Fantastic Four Annual #5. No ano seguinte, Lee conseguiria fazer a Marvel bancar um gibi estrelado pelo personagem, com arte de John Buscema (Kirby viria para desenhar apenas o número final, quando a revista foi cancelada). Estamos falando, sem exagero algum, de 18 números que estão entre os melhores trabalhos da carreira de Stan enquanto roteirista, com algumas de suas histórias mais dramáticas e introspectivas. Exilado na Terra depois de trair seu mestre, ele era uma espécie de trovador espacial inconformado com os rumos de nossa azulada terra natal.
“Ele falava sobre coisas como nós vivermos no melhor planeta que poderíamos ter, com ar fresco, luz do sol, toda a água que precisamos, coisas que crescem para todos os lados, toda a comida que queremos... e mesmo assim ficamos brigando entre nós e nos odiando”, filosofa, agora, o próprio Stan, sobre o assunto. E este pacifista e questionador cósmico rapidamente se tornou o favorito não apenas das crianças, mas principalmente do púbico universitário, que enxergava as camadas de suas histórias e inevitavelmente o procurava para falar sobre suas teorias em uma de suas muitas palestras em faculdades para divulgar o trabalho da Marvel. “O lado bom de ser escritor é que as pessoas sempre enxergam muito mais no seu trabalho do que aquilo que você realmente colocou ali originalmente”, confessa ele, cheio de modéstia.
Mesmo com o cancelamento do título do Surfista, o nobre herói voador continuava aparecendo em gibis como o do Quarteto, do Thor e dos Defensores. Só que existia uma espécie de regra nunca formalizada mas sempre seguida ali na Casa das Ideias: apenas Stan tinha direito à exclusividade com o Surfista Prateado. Somente ele escrevia o personagem. E isso durou até 1987, quando finalmente a Marvel decidiu derrubar o castigo de Galactus, fazendo o Surfista poder viajar pra fora da Terra — e ganhar seu segundo título solo, agora sob a batuta do roteirista Steve Englehart. Stan Lee, claro, não ficou nem um pouco feliz.
“Depois que eu deixei que alguém que não eu fizesse o Homem-Aranha, e alguém foi lá e fez o Quarteto Fantástico, o Doutor Estranho e os X-Men também, senti que era meio que legal pra mim continuar sendo o único escritor do Surfista Prateado. Então, fiquei meio desapontado porque alguém foi lá e fez”, afirmou, em uma entrevista para a revista Comics Interview, em 1988. “Eu queria ter continuado a ser o único. Se soubesse que eles queriam trazer o gibi de volta, eu teria encontrado tempo pra fazê-lo. Eu não tenho tempo, mas faria acontecer, melhor do que ter outra pessoa. Isso não é uma crítica ao trabalho do Steve ou do Marshall [Rogers, o desenhista]. É só que este gibi eu queria que fosse pra sempre feito por mim”.
No fim, depois de Englehart vieram Jim Starlin e Ron Marz, integrando de vez o Surfista Prateado à ambientação cósmica da Marvel, fazendo-o participar ativamente da chamada Trilogia do Infinito (com Desafio, Guerra e Cruzada), envolvendo Thanos, as Joias, a Manopla, o estalar de dedos e tudo aquilo que os fãs de cinema hoje já entendem melhor. Maaaaaaas, no ano seguinte, viria então o canto do cisne para o relacionamento de Stan com seu personagem querido: o maravilhoso e premiado especial Parábola, com arte do mestre Moebius e considerado, com toda a razão, como a melhor história do Surfista Prateado EVER. Além do traço lindíssimo e cheio de agilidade do francês, a trama é certeira mais uma vez ao questionar a eterna necessidade dos seres humanos de ser ajoelharem diante de uma divindade a ser adorada.
Importante relembrar que a paixão deste mesmo Stan Lee, que hoje é figurinha carimbada nos cinemas, pelo Surfista por MUITO pouco não o fez levar o personagem às telonas antes mesmo de se ter toda esta febre em torno do MCU. Com o sucesso do filme do Superman, em 1979, Hollywood parecia interessada em gibis e, pra ajudar a capitalizar o renome que a Marvel conseguia por causa do sucesso da série de TV do Hulk, Stan partiu pra Los Angeles querendo comercializar vários projetos, incluindo um tratamento de roteiro escrito por ele mesmo para o Surfista. Ele já tinha até conseguido um orçamento respeitável de 25 milhões e confirmado a participação de ninguém menos do que Olivia Newton-John. Mas, no fim, claro, nunca aconteceu.
O Surfista Prateado só apareceria MESMO nas telonas em 2007, como parte daquele questionável Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado. J. Michael Straczynski teria sido até contratado para fazer um spin-off com Norrin Radd, mas os resultados questionáveis de crítica e principalmente de público acabaram fazendo todos os planos serem abortados. “Ele é o que eu mais quero ver nos cinemas”, disse Stan Lee, no ano passado, em entrevista ao Syfy. “E já tenho uma ideia de como seria a minha participação especial no filme”.
Nos bastidores pré-compra da Disney, o nome de Brian K. Vaughn foi até ventilado como o do cara que estaria responsável por escrever um roteiro de filme do Surfista Prateado. Se isso resistirá ao acordo com o Mickey Mouse, tanto quanto os muitos outros projetos do estúdio da raposa baseados nos gibis Marvel, ainda não sabemos.
Mas que o legado de Stan Lee merecia DE VERDADE um filme incrível para o seu personagem favorito, ah, isso merecia. Ainda mais nos dias de hoje, nos quais questionadores, sejam eles ou não de outro planeta, são ainda mais importantes.