Que o diretor repense suas decisões sobre aposentadoria
OBRAS DO ACASO Os Oito Odiados é um exercício de metalinguagem desde sua concepção. Quentin Tarantino é um diretor sempre muito referente, que povoa seu filmes com todo tipo de citações e homenagens. E seu cinema parece sempre muito consciente de sua condição cinematográfica.
Com esse novo longa, Tarantino parece ter aprofundado ainda mais sua obsessão metalinguística. E aqui vão, em oito capítulos, os fatos que justificam esse ponto de vista.
Eis o mais óbvio, certo? Os Oito Odiados é o oitavo filme de Quentin Tarantino. Fato que, aliás, é egocentricamente anunciado nos créditos iniciais.
A trama mostra um caçador de recompensas, interpretado por Kurt Russell, tentando levar uma prisioneira (Jennifer Jason Leigh) até a forca. Graças a uma nevasca, a dupla acaba presa em uma estalagem com um grupo suspeito.
Em janeiro de 2014, o roteiro do que seria Os Oito Odiados vazou. Tarantino culpou o agente de um dos atores do elenco, ameaçou processar a Gawker Media por ser dona do blog que disponibilizou o arquivo para download e disse que não faria mais o filme.
Em abril do mesmo ano, ele organizou uma leitura pública do roteiro em um evento em Los Angeles. Com ingressos vendidos a 200 dólares, algumas pessoas puderam assistir aos atores já contratados para o então finado projeto interpretando o roteiro no palco.
No mesmo abril, já começaram os rumores de que o filme iria sim ser produzido. Fato que, como todos sabemos, se concretizou. O fim de uma pequena novela que expôs os meandros da indústria cinematográfica para o público.
Teria a leitura do roteiro em um palco, nos moldes de uma peça de teatro, influenciado a estrutura teatral de Os Oito Odiados?
O filme é quase totalmente passado em um só ambiente, a tal estalagem que os personagens se vêem confinados. Assim, ele remete diretamente a uma estrutura teatral. O isolamento do palco, tão importante para a manutenção da credibilidade narrativa — exceto em peças mais EXTRAVAGANTES — é constantemente referenciado pela obsessão dos personagens com a porta.
Seria o desespero para mantê-la fechada apenas uma proteção contra o frio? Ou também um esforço para garantir a separação entre o palco e a vida real?
Major Marquis Warren, ou “The Bounty Hunter”. John Ruth, ou “The Hangman”. Daisy Domergue, ou “The Prisoner”. Chris Mannix, ou ”The Sheriff”.
Nenhum personagem em Os Oito Odiados é apenas ele mesmo. Eles são representações de funções narrativas dentro da história que Tarantino pretende contar. E isso é explicitado pelos codinomes que são tratados ao longo do filme.
Isso pra não entrar ainda nas interpretações que apontam Os Oito Odiados como uma alegoria para os Estados Unidos, com cada personagem representando oprimidos e opressores dentro da cabana alegórica que representa a América.
O longo flashback que serve como interlúdio para Os Oito Odiados é o grande revelador da importância da metalinguagem no filme. Depois de o espectador se aprofundar na encenação proposta até aquele momento na projeção, o filme para e mostra como todos os acontecimentos foram preparados. Personagens ocupam seu papeis, o cenário é posto de pé, os diálogos são ensaiados, a equipe se confraterniza. E o diretor ocupa seu lugar na coxia do teatro. Só falta o grito de “ação”.
Lindo. Palmas.
Vi gente se incomodar com a súbita narração em off que aparece na metade da projeção. Mas ela deve ser encarada segundo seu propósito.
Se você precisava de alguma prova de que a metalinguagem é parte essencial de Os Oito Odiados, aí está. O próprio Tarantino aparece, ainda que apenas com sua voz, para contextualizar os acontecimentos, te pegar pela mão e te lembrar de que, no fim das contas, é tudo um filme.
Apesar de não ser uma novidade na carreira de Tarantino, que usa esse recurso de dividir sua história em capítulos com frequência, é inegável que a intrusiva divisão observada aqui colabora para reforçar as características metalinguísticas do filme.
O final do filme não poderia ser mais didático. E um texto, citado ao longo de toda a projeção, finalmente aparece envelopar uma moral cheia de significados.
Os Oito Odiados cresce quanto mais você pensa nele, uma característica comum entre grandes obras de arte. Resultado de um projeto que poderia ser chamado de arrogante ou auto-indulgente, mas que nas mãos de um gênio da ENVERGADURA de Tarantino se torna inesquecível.
Um estudo profundo sobre a arte de se contar uma história, que ganha força graças a interpretações sempre brilhantes. Samuel L. Jackson deveria se limitar a trabalhar com Tarantino. Tim Roth faz grande trabalho imitando Christoph Waltz. E Jennifer Jason Leigh rouba a cena em mais um grande papel feminino na obra do diretor.
Vamos torcer para Tarantino repensar suas decisões sobre aposentadoria.
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