Mas o humor sempre esteve lá, movendo os personagens desde a sua criação
Engraçadas. Coloridas. Devoradoras de pizza. Se essa é, de forma geral, a sua visão sobre as Tartarugas Ninja, ela não está errada. Porém, ela foge – e MUITO! – da concepção original dos personagens. Sabe aquela coisa que surge de um jeito, ganha um outro rumo e, depois, se torna algo muito maior? Pois essa é a trajetória daquelas quatro tortuguitas antropomórficas que são ninjas treinadas por um ratão gigante.
Tudo começou na primeira metade dos anos 80. Naquela época, os quadrinhos estavam se tornando mais sombrios e a o independente ganhava espaço – em parte, por conta da influência punk e do seu “faça você mesmo”. Na Marvel, o Demolidor de Frank Miller fazia sucesso com sua violência mais gráfica e histórias adultas, enquanto a mesma editora trazia Os Novos Mutantes, uma nova equipe adolescente que era um spin-off dos X-Men. Ao mesmo tempo, Dave Sim se destacava (desde o final dos anos 70, aliás) com seu Cerebus, cheio de critica social e por ser uma publicação 100% feita pelo seu criador. Ronin, de Frank Miller, também era um destaque naqueles tempos, juntando muitas das características dos mangás e da banda desenhada europeia aos comics estadunidenses – além, claro, de características da cultura japonesa como um todo.
Kevin Eastman e Peter Laird eram dois jovens que viviam todo esse caldeirão quadrinístico. Com tudo isso na cabeça, no meio de um papo casual, Kevin desenhou uma história curta com uma tartaruga humanoide de máscara e nunchakus. Uma “tartaruga ninja”, definiu Eastman. “Que tal uma “Tartaruga Adolescente Ninja Mutante?”, jogou Laird. Sim, era a primeira aparição do Michelangelo. ;)
Na hora, os caras acharam que aquilo era engraçado – veja bem: estamos falando de uma tartaruga, animal lento e de sangue frio, agindo rapidamente como um ninja e com uma arma mortal nas mãos. Em seguida, veio a ideia de criar outros três personagens do gênero, cada um com outra arma branca. Nasciam Leonardo, Raphael e Donatello.
Com o conceito nas mãos, Eastman e Laird juntaram uns trocados e publicaram por conta própria a primeira edição pela Mirage Studios, uma editora que eles tinham criado pouco antes. A ideia, aliás, era ficar naquela primeira edição e só. Tanto é que a história de origem não é exatamente uma das mais criativas. Se você analisar com calma, o acidente das tartarugas com o ooze é uma referência ao acidente que deixou Matt Murdock, o Demolidor, cego – a carga misteriosa é derramada quando o motorista do caminhão vai desviar de um homem cego. Além disso, o nome do Mestre Splinter é uma brincadeira com o nome do mentor do Demolidor, Stick. Já os grandes inimigos dos personagens-título é o Clã do Pé, enquanto nos quadrinhos o Homem Sem Medo passou a enfrentar o Tentáculo (The Hand, no original). Pra piorar, no final, as Tartarugas Ninja matam o Destruidor. O problema acaba e todo mundo segue a sua vida. Sério.
O que os criadores não esperavam é que aquela edição chamasse tanta atenção – em parte, isso aconteceu por conta de uma publicidade no Comics Buyer’s Guide, que atraiu muita atenção para aquele gibi. Muita, mas ainda assim pouca perto do que seria visto depois: a revista em formato magazine, com papel barato e com arte em P&B teve uma tiragem de 3.275 exemplares. Eastman e Laird perceberam o potencial do que tinham nas mãos, e continuaram a série com o primeiro retcon: ninguém morreu.
A história, bom, é aquela que todo mundo sabe: Splinter era um rato de estimação do Mestre Ninja Hamato Yoshi, que vivia em Nova York. Yoshi entra em uma disputa com Oroku Nagi e é morto pelo irmão do cara, Oroku Saki. No meio da confusão, Splinter foge de sua gaiola e vai para os esgotos, buscar refúgio. Porém, um motorista de caminhão é obrigado a desviar de um homem cego para não atropelá-lo, derramando o misterioso ooze (uma substância deixada na terra pelos aliens Utroms) nos esgotos – justamente onde estavam Splinter e quatro pequenas tartarugas. Os cinco são transformados em seres antropomórficos pela substância. Splinter dá para as tartarugas nomes que encontrou em um velho livro sobre o renascimento e as treina na arte do ninjutsu. Já Saki acaba se tornando o Destruidor.
E a April O’Neil, ela era uma repórter de TV? Não. Na real, ela surge como uma espécie de hacker que trabalha inicialmente para o Dr. Baxter Stockman, um vilão. Eventualmente ela faz amizade com as Tartarugas, abandona a vida do ~crime e abre um antiquário. Outro personagem importante introduzido ainda no começo foi Casey Jones, um vigilante de Nova York.
Apesar de ser sim uma ideia humorística por conta das paródias e das sátiras, as Tartarugas Ninja daqueles tempos não eram as amigáveis que se tornaram famosas depois. A influência do estilo de Frank Miller era clara, com muita violência nas HQs, vindo principalmente de Raphael e Michelangelo.
Em pouco tempo, os personagens eram um fenômeno independente. Mark Freedman então se aproximou dos dois quadrinistas e propôs oportunidade de licenciamento, ou seja, de vender as Tartarugas como qualquer tipo de produto por meio de parcerias com fabricantes. Chegaram na fabricante Playmates Toys, que tinha interesse em transformar as Tartarugas Ninja em action figures atrelados a uma série animada, como estava na moda naqueles tempos (e até hoje, aliás). Porém, como produto, percebeu-se que o humor das Tartarugas deveria ir além do simples fato de serem... tartarugas, além de ter um apelo maior com a garotada. Surgia assim o conceito dos “Heroes in a half shell”, o visual mais colorido e os enredos mais leves e engraçados. Além disso, criaram o vilão Krang, baseado na raça Utrom dos gibis.
Primeiro, foi feita uma minissérie em cinco episódios, exibida em 1987. Depois, a série animada foi expandida e durou até 1996. Mas essa é, por enquanto, uma outra história.
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O fato é que aquela animação marcou drasticamente o destino das Tartarugas Ninja. Os personagens se tornaram extremamente conhecidos (além da série, tiveram os filmes, enfim). Eastman e Laird tinham pouco tempo para cuidar do gibi mensal e acabaram deixando a HQ de lado e focando em outras coisas. As histórias acabaram sendo feitas por equipes criativas diversas, o que por fim tirou de Teenage Mutant Ninja Turtles aquele ar de série mensal, com uma cronologia, e a transformaram em quase uma antologia. Os criadores chegaram a voltar para tentar dar uma coesão para a história, mas a revista foi cancelada na edição 62, de agosto de 1993.
A Mirage não ficou sem o seu maior título nem por dois meses. Em outubro do mesmo ano, Teenage Mutant Ninja Turtles ganhou um segundo volume, assinado por Jim Lawson e, agora, em cores. Apesar de seguir a mesma linha e cronologia do volume original, a popularidade não foi grande, assim como as vendas. O cancelamento definitivo veio depois de 13 edições.
Só que essas não foram as únicas presenças das Tartarugas nas HQs durante aquele período. Quando falamos que os personagens passaram a ficar disponíveis para QUALQUER tipo de licenciamento para o público infantil, isso incluiu até uma OUTRA HQ. Chamada Teenage Mutant Ninja Turtles Adventures, começou a ser publicada em 1988 pela Archie Comics (a mesma editora do Archie, Josie e as Gatinhas e Sabrina) e seguia basicamente a cronologia da TV, preenchendo eventuais lacunas ou contando histórias diferentes naquele mesmo contexto, ou ainda adaptando episódios da série.
No total, Adventures teve 72 edições e durou até outubro de 1995, quando a popularidade das Tartarugas não era mais a mesma de antes.
Vale dizer que o mundo dos quadrinhos mudou bastante entre 1984 e os meados dos anos 90. Quando a Mirage Studios foi lançada, criar uma editora independente era algo para dois garotos com muita ambição e pouco nome. Porém, no começo dos anos 90, alguns dos principais nomes dos quadrinhos naqueles tempos se uniram pra criar a própria editora, a Image Comics. Com nomes fortes e personagens novos, a Image rapidamente se consolidou no mercado estadunidense.
Um desses nomes era justamente Erik Larsen, que resolveu trazer as Tartarugas Ninja para a Image em um esforço para ampliar o rol de personagens conhecidos na editora. Novamente com a arte preto e branco, o gibi tentou ir além nos conceitos apresentados nas edições oitentistas. Acontecimentos “marcantes” rolaram, como o Leonardo perdendo uma mão, Raphael ganhando uma cicatriz no rosto, Donatello virando ciborgue, Splinter se transformando em morcego (bom, morcegos são ratos com asas, então...).
Calma, piora: Raphael assume a identidade do Destruidor. Pois é.
A HQ, que chegou a ter um crossover com Savage Dragon (uma criação de Larson para a Image) era escrito por Gary Carlson e desenhado por Frank Fosco. Como você pode imaginar, o trabalho da dupla não fez tanto sucesso e foi cancelado em 1999, após 23 edições. Atualmente, o volume não é mais considerado parte do cânone dos personagens.
Em 2001, as Tartarugas Ninja voltaram para a Mirage. Peter Laird e Jim Lawson lançaram juntos o quarto volume dos personagens, agora chamado simplesmente de TMNT. Basicamente, a HQ seguia os eventos deixados no segundo volume, abandonando de vez o que foi contado na fase da Image Comics. Nesse período, o tempo passou quase que da mesma forma que no mundo real – com 15 anos a mais, as Tartarugas estavam com 30 e poucos anos.
Muita coisa mudou nesse tempo, algumas continuaram iguais. April O’Neil se casou com o vigilante Casey Jones, com o qual tinha se envolvido ainda no começo dos anos 90. Juntos eles adotaram uma filha chamada Shadow, que é criada por Splinter em uma fazenda. Nem o mestre, nem as Tartarugas precisam mais se esconder. Os aliens da raça Utrom retornaram e foram aceitos pela humanidade, abrindo espaço para que outros seres estranhos (como as próprias Tartarugas) fossem aceitos.
A ideia é que esse volume fosse bimestral, mas na prática não foi bem assim. TMT #28 foi publicado em junho de 2006, TMTN #29 em abril de 2008, a edição 30 em maio de 2009 e a edição 31 saiu apenas online, incompleta, no blog de Peter Laird, em outubro de 2010. E, surpreendentemente, tivemos um TMNT #32 em maio de 2014. Até por isso, fica impossível saber se a série será continuada ou não no futuro.
Fora os volumes seguindo a cronologia original ou a animação dos anos 80, tivemos também outras duas revistas em anos mais recentes.
A primeira delas foi publicada pela canadense Dreamwave. Famosa por algumas HQs de Transformers, eles publicaram uma revista chamada Teenage Mutant Ninja Turtles em 2003. Baseada na série animada da época, foram apenas sete edições.
Em 2009, a Nickelodeon entrou na jogada e comprou a franquia por US$ 60 milhões. Apesar de não ter modificado a publicação das revistas pela Mirage, isso tornou possível a produção do desenho animado que acabou estreando em 2013, o filme que chega aos cinemas agora em 2014 e, claro, um novo gibi, publicado pela editora IDW desde 2011.
Enquanto Laird continuou com o errático projeto na Mirage, Eastman passou a se dedicar à nova revista como co-roteirista. Ao lado de Tom Waltz e dos artistas Dan Duncan (até a edição 12) e Andy Kuhn (a partir da 13), começou a misturar elementos da HQ original, das séries animadas, filmes e tudo mais que ajudasse a criar um universo com tudo aquilo que os mais diversos fãs das Tartarugas conhecem, não importa de onde eles tenham vindo.
Com uma nova cronologia, a origem dos personagens é modificada. Hamato Yoshi agora é um dos fundadores do Clã do Pé, liderado por Oroku Saki. Isso tudo ainda no Japão Feudal. Depois de um enorme rolo, Yoshi e a família são mortos por Saki. Os anos passam e Yoshi e seus filhos reencarnam – só que agora como um rato e quatro tartarugas de um laboratório com acordos escusos com Krang.
Membros do Clã do Pé acabam invadindo o tal laboratório para pegar um mutagen alienígena (sim, o ooze!) e acabam levando os animais por engano. Você pode chamar de destino, mas enfim: tudo se mistura e nossos protagonistas se transformam em seres antropomórficos inteligentes. Junto com o novo corpo, Splinter lembra de seu passado como Yoshi.
April O’Neil, uma assistente no laboratório, ajuda os cinco e nomeia as tartarugas de acordo com mestres da Renascença: Leonardo, Michelangelo, Donatello e Raphael – e todos passam a ser treinados pelo Splinter no ninjutsu.
O que eles descobrem é que o inimigo Saki também está por aí – agora sob o nome Destruidor, assim como outros inimigos, incluindo Krang e sua raça Utrom.
Junto com o novo título, as Tartarugas Ninja ganharam diversas minisséries e especiais relacionados. Com a ajuda da nova animação na Nickelodeon e, claro, o novo filme, o gibi da IDW tem tido boas vendas, por volta dos 15 mil exemplares – o que, pra editora, é grande coisa.
Apesar do sucesso dos desenhos animados e dos filmes, as Tartarugas Ninja nunca tiveram muito espaço nas bancas brasileiras. Em 1990, a Nova Sampa publicou uma edição especial com as quatro primeiras histórias da Mirage. Em 2007, a Devir reuniu as HQs publicadas até a edição 6 do primeiro volume do gibi gringo, ainda em 1984.
Por fim, em 2012, a Panini trouxe para cá a encarnação mais recente dos personagens, criada pela IDW. Porém, a revista teve alguns hiatos pelo caminho e, até agora, parou na edição 12, lançada em junho deste ano.