Segunda temporada da série dirigida por Steven Soderbergh estreia nessa sexta (16), e nós conversamos com o Dr. Edwards e a enfermeira Lucy Elkins pra entender como uma produção que se passa há 115 anos pode soar tão atual
CIDADE DO MÉXICO ~ Sou daqueles que acredita que a ficção, o entretenimento, a arte (ou qualquer nome que você queira dar) não pode ser em vão. Uma rápida passagem de um filme pode esconder uma lição, te fazer pensar ou refletir sobre a própria vida. Ou apenas rir. Tem horas, principalmente naquelas mais difíceis, que rir pode ser libertador.
Num primeiro momento, The Knick pode parecer uma série de época. Um E.R. com chapéus engraçados, carroças no lugar das ambulâncias e pessoas ainda lendo jornais. Só que Steven Soderbergh, que produz e dirige todos os episódios, e os roteiristas Jack Amiel, Michael Begler e Steven Katz foram muito além. The Knick não é uma série sobre 1900. É sobre 2015. É sobre eu e você.
Ok, pode ser que não fique muito claro num primeiro momento, mas é só ver com atenção. The Knick começa em 1900, quando operar um paciente era algo relativamente recente (essa coisa de cirurgia existia há, mais ou menos, 15 anos), ainda faltava conhecer muito sobre o funcionamento do corpo humano e o fantasma da medicina da Guerra Civil (1861-65), com seus milhares de amputados e doutores-barbeiros pouco hábeis, ainda era bem presente.
Ser médico era, até mais do que é hoje, ser um pesquisador, um explorador de uma terra totalmente selvagem. A cada dia descobriam uma nova cura, um novo procedimento, isso enquanto os técnicos ligavam as primeiras lâmpadas elétricas e as pessoas davam partida nos primeiros carros. Também havia muita coisa errada, que hoje sabemos não ter eficácia nenhuma ou que podem ser ainda mais prejudiciais aos pacientes.
The Knick não é uma série sobre 1900. É sobre 2015. É sobre eu e você.
Só que o que poderia ter um clima nostálgico, ou até mesmo curioso, muda totalmente quando vemos o primeiro jogo de câmera de Steven Soderbergh. Ou quando toca o primeiro acorde da trilha modernosa de Cliff Martinez (o sensacional segundo baterista do Red Hot Chili Peppers).
Esses detalhes são como se alguém entrasse em cena e tirasse toda aquela roupa de época, com seus espartilhos muito justos, longos vestidos, chapéus, SOBRECASACAS, fraques e sapatos. O que sobra é uma história sobre a obsessão pelo trabalho, sobre o aborto, racismo, amarras da sociedade, amor, religião, vícios, abuso de drogas, jogo, prostituição, corrupção da polícia, justiça ser diferente para ricos e pobres, a loucura, a vida.
“Ele nunca nos disse exatamente qual estilo teria. Nós não ouvimos as músicas que o Cliff Martinez compôs até vermos a série [na TV]. Não sabíamos que seria apresentado de uma forma tão moderna”, comenta a Eve Hewson, que interpreta a enfermeira Lucy Elkins na série, num papo que rolou com o JUDÃO na Cidade do México. “Ficamos muito empolgados quando vimos o produto final, porque ficou mais cool do que imaginávamos, eu acho”.
“Uma das partes mais interessantes e também mais tristes da série é como tudo aquilo ainda soa atual”, destaca André Holland, que interpreta o Dr. Algernon Edwards. “De alguma forma, essa série pode ser escrita amanhã. O que é empolgante pra nós com atores, mas também triste para nós enquanto país. Ainda temos um caminho longo pela frente”. Eve complementa: “O ponto é que o Steve fez esses personagens sem nenhuma diferença dos personagens que podemos encontrar nas ruas hoje”.
Lucy, aliás, é daquelas personagens marcantes, que acaba se tornando um fio condutor pra entender todos os conflitos entre os personagens da série. Ela começa discreta, como uma enfermeira recém-chegada ao Knickerbocker Hospital, que serve de base (e nome) pra produção. A atriz, que é irlandesa (e filha de um tal de Bono Vox), ainda ajuda nisso: uma carinha que se passaria facilmente pela multidão de filhos de imigrantes que povoavam Nova York naqueles tempos. Mas, ao mesmo tempo, tem aquela luz nos olhos. A luz de quem acredita que pode superar toda e qualquer coisa na vida.
Até ela se apaixonar pelo protagonista, o Dr. John Thackery, interpretado pelo ótimo Clive Owen.
“Interessante você usar a palavra ‘luz’, porque, em alguma língua, ‘Lucy’ quer dizer luz” diz a atriz – que, curiosamente, também tem “Sunny Day” bem no meio de seu nome, coisas de filha de músico. “Sim, foi isso que eu percebi logo de cara, que ela é esse ar humano, fresco, no hospital, onde todo mundo é meio que corrupto e vive nas sombras. Ele é definitivamente atraído por ela por conta da luz que ela traz, mas, na transação que acontece, ele acaba tirando a luz dela. A Lucy se torna um personagem sombrio. Eu acho que é isso que faz a relação deles ser realmente dinâmica, é esse contraste”.
Pelos flashbacks nos primeiros episódios, dá pra perceber que Thackery já foi um pouco como Lucy. Talvez sem a mesma luz (e, definitivamente, sem o mesmo sorriso tímido), mas com a mesma vontade de conquistar grandes coisas como médico, auxiliando na evolução da medicina num momento tão importante.
Mas isso se perde. Thack se deixa levar pelo tutor, o Dr. Christiansen, que mostra que a cocaína – ainda um simples anestésico em fase inicial de uso – pode ser um grande estimulante. Por que dormir se você pode ficar por horas e horas acordado? Por que se contentar com pouco se você pode conquistar mais e mais? Por que fazer o bem só pra humanidade se você pode fazer o bem pra sua vaidade?
[small_info_middle]“Uma das partes mais interessantes e também mais tristes da série é como tudo aquilo ainda soa atual”[/small_info_middle]Quando Eve conhece Thackery, este já é um médico de renome, que assume o posto de cirurgião-chefe do Knick depois que Christiansen se mata ao se deixar DEVORAR pela própria vaidade. Porém, o médico não entende o recado deixado por seu mentor e antecessor, e vai indo cada vez mais fundo em seu estilo de vida regado por muitas horas e horas de trabalho, drogas e prostitutas. Pra quem tá de fora, ele é uma máquina. Por dentro, como deviam já dizer naquela época, era PÃO BOLORENTO.
É até fácil entender porque Lucy se apaixona por Thack: a dedicação pelo mesmo trabalho e todo esse lado sombrio, que era completamente diferente dela.
Também é, inicialmente, essa grande genialidade do Dr. Thackery que envolve o terceiro protagonista dessa história, o Dr. Algernon Edwards, o personagem interpretado por Holland. De longe, o Edwards é quem tem o background mais interessante: filho de uma empregada doméstica numa “casa de família”, cresce com o respeito dos patrões de sua mãe, os Robertsons, brincando com a filha deles (Cornelia, vivida pela Juliet Rylance) e tendo a oportunidade de estudar nas melhores escolas. Ele vira médico, vai pra Europa, participa de grandes avanços da medicina, publica trabalhos, se torna um nome importante...
Mas isso não era o suficiente. Ele quer voltar pra casa, mostrar pra seus conterrâneos que pode ser um grande médico independentemente da cor da pele e da origem. Ele então arranja um emprego justamente no Knickerbocker, hospital que os Robertsons agora comandam, como assistente do novo cirurgião-chefe do Dr. Thackery. Um homem cuja arrogância está atingindo seu auge e que quer outra pessoa nesse mesmo posto, o seu protegido (e branco) Dr. Everett Gallinger (Eric Johnson). “Ele fica preso entre esses dois mundos”, define Holland.
A treta entre os dois médicos é grande no começo, mas Edwards vê que Thackery tem uma capacidade prática incrível. Alguém com o qual pode aprender muito, por isso aceita ficar no The Nick – por mais que a sua primeira sala tenha que ser no porão, ao lado das caldeiras.
Pra piorar, Edwards e Cornelia acabam se rendendo a essa paixão entre eles, que tá absolutamente clara logo na primeira cena que dividem juntos. Isso num mundo que não aceitaria essa união tão improvável. O que o doutor receita pra superar suas próprias frustrações? Sair na porrada com pessoas aleatórias.
No nosso papo, até brinquei com o André Holland: o personagem dele se assemelha, de alguma forma, a Dr. Jeckyll e Mr Hyde – ou seja, o Médico e o Monstro. Um homem educado, inteligente, refinado e respeitado, mas que tenta esconder tudo que sente de ruim no lugar mais obscuro de sua alma, até que tudo isso explode em uma grande demonstração de ódio e raiva, praticamente numa outra personalidade.
“A segunda temporada faz a primeira parecer uma comédia romântica”
Só que esse ~modo de vida dá totalmente errado na – e, no final, isso custa muito caro, como descobrimos no primeiro episódio dessa segunda temporada: ele não pode mais atuar como cirurgião no máximo de sua forma (hey, sem spoilers além disso!). “Ele percebe o que isso custou. Eu acho que ele aprendeu a lição de que esse racismo é um problema muito maior do que pensava que era. Não dá pra ir num bar ou num beco escuro e bater numa pessoa esperando que isso resolva alguma coisa. Nessa temporada vamos ver ele lidando com isso numa escala muito maior. Eu acho que a lição que ele aprende é que precisa encontrar uma nova forma de luta”, define o ator.
Já que falamos do primeiro episódio dessa segunda temporada – que estreia no canal MAX do Brasil junto dos EUA, ou seja, nesta sexta (16), e com transmissão simultânea na HBO, além do YouTube –, dá pra dizer que, após assistí-lo, este capítulo funciona meio que como a calmaria depois da tormenta. Se tudo deu errado nos dois últimos episódios da primeira temporada, vemos que a vida sempre dá um jeito de seguir seu curso. De continuar.
Mas isso não vai durar, não. “Steve disse que a segunda temporada faz a primeira parecer uma comédia romântica”, explica André Holland. E, pelo jeito, ele tem razão.
O Dr. Thackery ainda sofre com um mundo que ainda pouco entende o efeito das drogas nos dependentes químicos (e será que, hoje, entendemos tanto assim?). O tratamento que finalmente dá certo é, ao mesmo tempo, o mais simples e o mais engenhoso: foco. Quantas vezes na vida nós não superamos as dificuldades justamente com foco?
Enquanto isso, Lucy está lá. Talvez não mais no céu com diamantes, sentindo falta daquele que foi, até hoje, o seu grande amor. Mas não se engane: já disse aqui que não estamos falando de uma simples série sobre o mundo de 1900. Lucy é forte, não é daquelas que chora pelos cantos a ausência do amado. Ela vai a luta, se destaca, algo que a Eve Hewson nos garante que irá se acentuar nos próximos episódios, mesmo após a volta do Thackery. “Lucy floresce bastante. Nós vamos ver na segunda temporada que tem um momento em que a Lucy decide dar o máximo de si profissionalmente, em ser uma enfermeira que bota a mão na massa. Ela se torna uma das melhores enfermeiras do hospital, o que é uma grande mudança em relação ao primeiro episódio da primeira temporada”.
Tem mais: também vai surgir um novo personagem, sobre o qual Eve não fala muito, e que irá se interessar por Lucy. Um triangulo amoroso surgindo aí?
Outra complicação pra vida da personagem nessa nova leva de episódios será familiar. “O pai da Lucy virá visitá-la, o que é um relacionamento interessante. [...] Essa cena com o pai, que vocês vão ver ainda, foi a mais difícil de gravar, muito emocional”.
Já o Dr. Edwards está num momento que ele pode (e precisa!) mostrar pra todos no hospital o quão capaz é – e provar que cor da pele ou origem não tem nada a ver com ser um grande profissional. Como a vida sempre dá voltas, Edwards vai justamente precisar da ajuda de Thackery pra contornar isso – que também vai precisar do auxílio do cara que ele tentou ESCORRAÇAR do Knickerbocker nos primeiros episódios, acredito eu que justamente pra superar todos os efeitos do vício em cocaína e heroína. “Eles vão formar um relacionamento colaborativo. Não dá pra dizer que vão ser amigos, mas vão colaborar um com o outro”. comenta Holland. “E, no final das contas, mesmo que eles não se deem bem, que não dividam as mesmas opiniões políticas, eles se respeitam como doutores”.
É tipo um ciclo que se fecha entre os três protagonistas.
E pelo que deu pra perceber dos primeiros minutos dessa segunda temporada, tudo que fez de The Knick genial no primeiro ano continua: a trilha sonora moderna, as cenas de cirurgias cheias de sangue e extremamente “gráficas” (como gostam de dizer os americanos) e a direção ágil de Soderbergh. Tá tudo lá.
“Foi meio que assustador [trabalhar com o Soderbergh]. Ele é incrível porque tem três cérebros trabalhando em um só. [...] Se você estiver errado, ele vai falar na hora. Se estiver certo, vai seguir em frente pra próxima cena, sem falar nada. Eu amo o quão honesto ele é”, diz Eve. “Ele realmente confia em nós, que façamos nosso trabalho e venhamos preparados, que tenhamos feito escolhas sobre o que queremos fazer. Não há tempo gasto com ensaios, ou até mesmo discutindo coisas. Você vai lá e quando percebe a câmera está ligada e está acontecendo”, conta Holland. “Como ator, é liberador e, ao mesmo tempo, assustador”.
Mas talvez mais assustador seja perceber que, nos últimos 115 anos, não evoluímos tanto assim. Por isso perguntei pro André Holland o que o Dr. Edwards pensaria ao ser transportado no tempo por outro doutor (WHO?), tanto sobre a evolução da sociedade quanto a da ciência. “Se ele acordasse em 2015, eu penso que ele estaria feliz por ver como fomos longe. Pra nós as coisas são melhores do que eram pra ele, com toda a certeza. Mas, sabe? Quando cavasse um pouco além da superfície ele perceberia que ainda tem muita coisa pra fazer”.
Que, então, The Knick continue nessa segunda temporada mostrando o quanto fomos ridículos e atrasados. E o quanto continuamos sendo. Assim, quem sabe, as gerações futuras possam aproveitar a série como algo sendo 100% ficção. Apenas uma produção educacional sobre tempos passados. Apenas.
O Judão viajou a convite da HBO Brasil