Tentando se estabelecer na indústria musical desde 2012, Jered Eames criou uma série de farsas ao seu redor para garantir uma turnê europeia que pudesse ajudar a lançar seu nome — mas que o transformou numa das histórias do ano no mundo da música
“Se vocês estão lendo isso, então vocês são parte da ilusão”. A mensagem, em tom de provocação e um tantinho de desafio, encerra um curto comunicado oficial do músico americano Jered Eames, que atende pela alcunha de Jered Threatin, em seu seu site oficial. “O que são fake news? Eu transformei o que era somente um espaço vazio em uma notícia internacional”. No fim, o sujeito parece REALMENTE acreditar que não apenas fez uma coisa legal, mas que ENFIM conseguiu atingir o seu sonhado objetivo.
Olha só, “legal” mesmo, de fato, a história não é — mas é, isso sim, talvez uma das histórias mais bizarras e ao mesmo tempo mais maravilhosas da cultura pop no ano, algo que fez o jornalista especializado em música que habita em mim ficar absolutamente obcecado por todos os detalhes que envolvem a banda de um homem só vinda de Los Angeles e que era uma enorme mentira tão bem contada que acabou agendando uma enorme turnê europeia sem que ninguém sequer desconfiasse que ia ser um fiasco.
Eames é natural de Moberly, no Missouri, uma pequena cidade com menos de 14.000 habitantes. Sua primeira banda, na qual compunha, gravava boa parte dos instrumentos e tocava baixo ao vivo foi o combo de black/death Saetith, mais pesadão e extremo, que chegou inclusive a lançar dois EPs, em 2007 e 2010. O cara também chegou a tocar baixo, por um curtíssimo período de tempo, na banda de black metal tradicional Abigail Williams, uma espécie de fenômeno cult underground na Terra do Tio Sam — mas o período foi tão, mas tão curto que a própria banda parece ter se esquecido disso até HOJE.
De qualquer maneira, com o Saetith, digamos que Eames fez lá um sucessinho na comunidade metálica local, chegando inclusive a tocar em eventos com grupos do porte de Arsis, A Life Once Lost e The Black Dahlia Murder. Um de seus principais apoiadores e também integrantes do grupo era justamente seu irmão, Scott, guitarrista. Mas alguma coisa não deu certo no meio do caminho, porque em determinado momento não apenas eles se separaram enquanto banda como, desde 2012, os irmãos Eames não se conversam mais. No fim, Jered se mudou pra Califórnia e montou um novo projeto, o Threatin, que se tornou também seu sobrenome artístico.
Afastado da família, sem dar notícias inclusive para o próprio pai, Jered contou somente com o apoio da esposa Kelsey para lançar, em 2015, o single Living Is Dying, que dois anos depois daria origem ao álbum Breaking the World, no qual Jered Threatin tocava todos os instrumentos e fazia rigorosamente tudo do jeito que bem entendia.
Este teria sido, segundo disse Scott em comunicado oficial, o principal motivo do rompimento artístico dos dois: a dificuldade em compartilhar os créditos e os holofotes. Isso e, claro, a certeza de que seria capaz de QUALQUER COISA para alcançar a fama, fazendo desde pequenas manipulações até mentiras descaradas que pudessem mostrar que o sujeito tem mais relevância no cenário do que realmente tem. Atualmente integrante do Thy Antichrist em suas apresentações ao vivo (sob a alcunha de Wicked One, do jeito que se espera de toda boa banda de black metal) e também de sua própria banda macabra, o Nevalra, Scott se surpreendeu inclusive — e talvez principalmente — com a pegada sonora do Threatin.
Afinal, estamos falando de um hard rock que chega a flertar um tantinho com o metal mas sem exageros, numa pegada bem mais comercial, suave, quase pop, com a voz do líder chegando até mesmo a soar um tanto Michael Jackson. “Eu sou um cara tranquilo, mas são as coisas sombrias e malvadas que mexem comigo. Ele era exatamente assim também. Bandas como o Behemoth eram o que nos empolgava. Anos atrás, ele teria rido disso que tá lançando aí. Eu nem consigo entender esta música que ele tá trabalhando — não é o cara que eu conheço. Pra mim, parece um ato de desespero do tipo ‘tô indo pra LA, preciso fazer acontecer'”, afirmou ele, em entrevista ao MetalSucks, de longe um dos melhores e mais bem-humorados sites sobre rock pesado atualmente e que, assim como eu, ficou igualmente obcecado por toda a saga do Threatin.
Bom, se Jered Threatin lançou um single e depois seu álbum inaugural, qual seria o próximo passo natural? Uma turnê, certo? Então... mas uma pequena turnê suada e cheia de perrengues em casas de show apertadas nas cidades do interior dos EUA, ganhando pouco e ralando muito, como se imaginaria que qualquer banda independente faria, não era o impulso que o sujeito queria dar na sua carreira. Pois então ele fez seus corres, contratou três músicos para tocar com ele e agendou uma pernada de shows pela Europa. E foi aí que começou a grande história do heavy metal em 2018.
No dia 1o de novembro, abertura da turnê europeia do Threatin em Londres, a casa de shows The Underworld, na qual eles tocaram, foi para as redes sociais reclamar que, apesar do agente da banda ter dito que eles tinham vendido 291 ingressos antecipados, apenas TRÊS pessoas tinham aparecido. Dias depois, um relato semelhante veio da casa The Exchange, na cidade de Bristol, com polpudos 180 ingressos tendo sido vendidos com antecedência mas sem um único gato pingado aparecendo para a apresentação. Se não fossem alguns poucos nomes da lista de convidados da banda de abertura, o quarteto teria tocado para uma casa completamente vazia.
O evento feito pela banda no Facebook para anunciar esta apresentação, em particular, tinha uma questão bastante interessante: mais de 100 das pessoas marcadas como “vou comparecer” moravam aqui no Brasil, de acordo com seus perfis. Logo, uma investigação a fundo provou que o mesmo acontecia com os eventos do restante da turnê. Likes comprados de perfis falsos, você deve estar pensando? Pode apostar. Mas calma que a história só piora. Ou melhora. Não sei bem.
Enquanto o assunto ia se espalhando e uma busca simples pelo YouTube por outras possíveis apresentações do grupo geravam resultados como ESTE, claramente uma montagem pra parecer que o Threatin já tinha tocado para uma plateia lotada e absolutamente selvagem, a galera começou a se conversar. Tipo as bandas de abertura. Adam Gostick, cujo grupo The Unresolved tava fechado pra abrir para o Threatin no dia 8 de Novembro, no Asylum 2 em Birmingham, recebeu uma mensagem dos caras do Ghost Of Machines, a tal banda de abertura que botou meia dúzia de sujeitos pra dentro da casa em Bristol, que cantou a bola do que tava pegando.
“Falamos com o Asylum e eles nos disseram que também receberam a informação de que todos os ingressos da noite tinham sido vendidos, mas aí foram ver e NADA. Zero. Então, eles liberaram a entrada naquele dia pra galera de graça”. Adam lembra que sua banda foi convidada pra abrir pro Threatin por um cara chamado Casey, de uma empresa de nome StageRight Bookings. “Ele falava bastante do Threatin, vendeu bem os caras. Durante a noite toda, eu não o ouvi trocar uma palavra com qualquer pessoa que não fosse da sua própria equipe. Só ouvi a voz dele fora do palco duas vezes. Uma quando os caras da Robannas Studios [empresa local] apareceram reclamando que o Threatin não tinha pago o equipamento de amplificação de som. E outra foi quando ele disse um singelo ‘obrigado’ quando segurei a porta pra ele”.
Eram umas 13 pessoas no lugar quando eles tocaram. “O engenheiro de som, o bartender, 10 pessoas que trouxemos e talvez um cara que realmente comprou ingresso”
Já deu pra sacar o que rolou? A gente te explica: tudo indica que não apenas a tal StageRight Bookings, que negociou com as bandas de abertura e com as casas de espetáculos, é uma empresa falsa como o tal do Casey também não existe e é ninguém menos do que o próprio Jered.
Uma busca no site da tal empresa de agenciamento, por exemplo, vai te mostrar os nomes de alguns artistas que simplesmente não existem mas que tem uma combinação interessante de nomes genéricos com alcunhas que parecem ser versões ligeiramente alteradas de nomes de artistas mais conhecidos. Michael Nicolas, Adam Gray, Gary Allan? Ou bandas Newport, Sunrise Station, Curve? Uma tal Fiona que, talvez, pudesse ser a Fiona Apple? E uns certos Third Eye, que podiam ser o Third Eye Blind? E sabe quem está no elenco de ações europeias: Threatin, mas é claro.
Mas sabe o que estes tais Bryan Guy, Michael Anthony, Fiona, Cars, Braid e Gary Allan, que estão na lista da StageRight Bookings, também têm em comum com Jered, este menino maroto? A mesma gravadora, olha só. Uma certa Superlative Music Recordings. Que teria sido fundada em 2006, que teria mais de 200 álbuns lançados, diversos hits no top 40 (de onde?) e mais de 10 milhões de unidades vendidas, que teria escritórios em Los Angeles, Nova York e Londres, mas sobre a qual CURIOSAMENTE ninguém na indústria ouviu falar (por mais que ela seja descrita como uma parceria com a SPV, gravadora independente alemã que é um dos maiores nomes do heavy metal europeu... e que também não faz ideia de quem diabos estamos falando).
Entrar na página do Facebook da “empresa”, com meras 1.800 curtidas e um monte de fotos genéricas (além de homenagens ao Chris Cornell e ao Chester Bennington, só pra dar aquela disfarçada), só ajuda a provar que tem caroço neste angu.
E pra completar, o Threatin também criou um site especializado em rock pra dar suporte pra ele (e, óbvio, dar uma força no algoritmo das buscas do Google, veja você)! Quem nunca tinha ouvido falar do Top Rock Press, não é mesmo? Aquele responsável pelas entrevistas em vídeo que, no fim, ele acabou tirando de seu canal no YouTube? Aquele com um monte de notícias antigas, de lá de 2016 (desde o lançamento do novo disco do Metallica até o início da turnê de despedida do Black Sabbath), além de umas notinhas diretas do Blabbermouth.net? E aquele que, numa matéria especial dentro de “Featured Artists”, dá ao Threatin tamanho destaque que, na biografia da banda em seu próprio site, aparece uma certa premiação “Top Rock Artist of the Year Award”. E não era justamente esta validação que ele tava precisando????
Mas... me diz aí, quem foi que fez o site de notícias mesmo? Uma tal Universal Web Group — empresa que CURIOSAMENTE foi a mesma que fez o site do Threatin. E eis que o círculo se fecha. De novo.
Era óbvio que, quando a merda batesse no ventilador, os músicos contratados por Jered fossem ficar sabendo e acabassem indo tomar satisfações quando tudo isso começou a se tornar público, primeiro na VERDADEIRA imprensa especializada em rock/metal e depois na imprensa mais generalista, tipo a própria BBC. Não demorou para que o guitarrista Joe Prunera e o baterista Dane Davis vazassem da turnê, deixando Jered e o baixista Gavin Carney sozinhos para dar cabo dos poucos shows que ainda restavam de pé.
Tudo indica, claro, que nenhum dos três sabia de todo este ECOSSISTEMA falso que o tal Jered Threatin criou ao seu redor, mas conforme eles foram tendo que pagar pela própria comida, por mais que tenham recebido uma parte da grana e tenham conseguido garantir as passagens de ida e volta, começou a ficar claro que aquela não era uma turnê como qualquer outra.
“Eu só queria deixar claro que Joe, Gavin e eu não fazíamos ideia”, afirmou Dane Davis. “Joe e Gavin são caras muito legais, muito talentosos. Foi simplesmente chocante o que aconteceu e ainda estamos tentando colocar nossas cabeças no lugar. Eu sei que muita gente tem muitas questões sobre o que rolou. Eu também tenho. Foi surreal”. Prunera fez questão de reforçar o que o camarada de alguns dias de palco disse, pouco depois, numa entrevista pro MetalSucks. Eles se conheceram, Threatin incluído, seis semanas antes do embarque pra Europa. Foram muitos e muitos ensaios pra pegar as músicas, trabalhando duro num período curto de tempo. “Depois que tudo explodiu e as notícias começaram a correr, ficamos horas acompanhando a mídia. Aí o Jered desceu as escadas e basicamente disse ‘eu não sei o que fazer’. E nós ficamos dizendo que não queríamos tocar, que não deveríamos tocar”.
Foi simplesmente chocante o que aconteceu e ainda estamos tentando colocar nossas cabeças no lugar. Eu sei que muita gente tem muitas questões sobre o que rolou. Eu também tenho. Foi surreal
Nada de comportamentos estranhos tanto por parte dele ou da esposa, que acompanhou a viagem inteira no papel de gerente de turnê. Calmos, tranquilos, pacíficos, sem aquela coisa tipicamente Los Angeles de sexo, drogas e rock n’ roll. Mas por que diabos eles não assinaram nenhum contrato registrando a contratação dos músicos? “Obviamente não foi uma coisa esperta da nossa parte, mas pensamos que tudo que tínhamos visto até ali era legítimo, logo assumimos o risco e não nos preocupamos”. OK, quem trabalha com música sabe que não são raras as vezes em que acordos são travados apenas com um aperto de mãos. Mas junta tudo agora pra ver se não faz sentido?
Viajando de lugar pra lugar numa Sprinter alugada e ficando todos juntos no que se conhece por lá como um “aparthotel”, com dois quartos divididos entre Jered e Kelsey de um lado e o restante num outro (sendo que geralmente um acabava mesmo tendo que dormir no sofá), ele acabou sabendo pouco sobre a vida pessoal do frontman. Mas tinha certeza, pelo que Threatin deu a entender, que cada show teria por volta de 1.000 a 1.500 pessoas na plateia, ah, isso tinha. “Ele se colocou no papel de vítima, reforçando que a gravadora existe, dizendo que era só o artista, que aparecia pra tocar e ponto”.
No fim das contas, segundo apurou o MetalSucks, Prunera voltou pra Las Vegas, em sua casa, enquanto Davis tirou uns dias de folga e ficou com a família que tinha em Belfast para poder usar a passagem de volta que já estava comprada para o final da turnê. O coitado do Carney, no entanto, não tinha a grana pra comprar uma passagem adiantada pra casa e, como não conhecia ninguém no Velho Continente, acabou ficando ao lado de Jered porque, desta forma, pelo menos teria um lugar pra se acomodar e ainda teria o retorno de volta pra casa garantido. Ou pelo menos esperava que sim. No fim, com a repercussão, sua família pediu que ele voltasse antes e o cara acabou concordando.
Só que, surpreendentemente, o baixista não se diz totalmente convencido de que Jered é um trapaceiro e tampouco parece preocupado com a cobertura da imprensa sobre o assunto... ainda que pareça meio confuso. “Se tudo que ele me disse e que eu vivi com ele for verdade, eu trabalharia com o cara novamente, sem problemas. Gostei do tempo que passamos juntos. Mas se tudo for uma farsa, então eu vou ficar muito desapontado”. O mais legal é a utilização da palavra “se”, né? ;)
A coisa mais estranha desta história toda é que o tal do Jered, apesar de tudo, não deixou de pagar quase ninguém, ainda que com atraso. E isso inclui as casas de shows. Porque vejam, normalmente, a casa vai lá, convida as bandas e paga ou uma porcentagem das vendas de ingressos ou então uma taxa fixa (em alguns casos, até faz uma combinação das duas coisas). Mas quando vem um promotor externo procurar a casa, como foi neste caso, aí funciona de outro jeito: porque ele tem que pagar uma taxa ANTES para o lugar, tendo então a chance de recuperar esta grana com a venda dos ingressos. O local deposita sua confiança no promotor, acreditando que ele vai trazer gente pra casa, ampliando venda de ingressos e, claaaaaro, o consumo (principalmente de bebidas e comidas) lá dentro. Todo mundo ganha.
Logo, Jered Threatin, no papel do tal Casey Marshall da StageRight Bookings, realmente “alugou” cada uma das casas, convidando as bandas que entrou via grupos locais do Facebook de cada região. E a responsa de vender os ingressos tava sob responsabilidade dele — POR ISSO as casas de shows acreditaram no que ele dizia e garantia ter vendido. Mas a grana, de qualquer forma, meio que já tava paga pra eles, então... “Este tal Casey Marshall nos pagou 780 libras (quase 4.000 reais) adiantado, então não nos preocupamos em fazer checagem de antecedentes”, afirmou um representante do The Underworld, em Londres. “Vimos os vídeos no YouTube e ficamos chocados que qualquer um quisesse contratar a casa para este cara, mas recebemos a grana mesmo assim, garantindo um dia de trabalho pro nosso time”.
O mesmo vale pro pessoal do Asylum, em Birmingham. “O adiantamento foi pago meses antes. E quando pedimos informações sobre a venda de ingressos, nos falaram que 171 tinham sido vendidos. Tivemos sorte que outras casas de shows nos procuraram e informaram sobre o ocorrido. Falamos com as bandas de apoio e decidimos seguir em frente por causa deles, porque todos trouxeram pessoas. Mas claro que tivemos uma curiosidade mórbida pra saber a resposta para toda esta charada. Provavelmente tenha sido o show mais estranho com o qual nos envolvemos. Basicamente, eles pagaram uma boa grana pra ensaiar (e eles precisavam) em diferentes lugares em todo o Reino Unido”.
Para o irmão de Jered, Scott, a sensação é de total desapontamento. Ele garante que, não, a grana não foi pedida pra ele e nem pra ninguém de sua família. Mas Threatin deve ter se endividado um bocado pra conseguir garantir esta verba, já que não estamos falando de um cara rico, bem de vida. “Na minha opinião, com a mesma quantidade de esforço e dinheiro, não tenho dúvida, com o talento dele, ele poderia ter feito algo bem melhor de uma maneira mais legítima e respeitável”.
Nós aqui do JUDAO.com.br tentamos a todo custo entrevistar Mr. Jered Threatin, mas até o momento não conseguimos contato. A última atualização dele nas redes sociais foi mesmo o seu enigmático comunicado oficial, tentando nos convencer de que foi tudo de caso pensado. Continuamos tentando. Porque temos certeza que VAI VALER A PENA.