Tormenta: RPG de fantasia feito no Brasil, pros Brasileiros | JUDAO.com.br

Batemos um papo com os criadores do sistema nacional mais popular do país…e também o mais jogado entre todos, brasileiros ou gringos

Assim que soltamos aqui no JUDÃO uma matéria sobre a chegada de Pathfinder ao Brasil, Rogério Saladino e J.M. Trevisan vieram, cada um a seu modo e em ocasiões diferentes, conversar comigo para questionar uma única frase: “chega a versão em português de um dos RPGs contemporâneos mais populares do mundo, pronto para desafiar a hegemonia de D&D e GURPS”. Para ambos, se quiser buscar a liderança aqui no Brasil, Pathfinder precisaria passar primeiro por um nome que há alguns anos já vende mais do que os dois clássicos publicados pela Devir: Tormenta.

Cenário de fantasia medieval (elfos, orcs, dragões, magos, anões, bárbaros, aquelas paradas) criado por Saladino, Trevisan e Marcelo Cassaro nas páginas da finada revista Dragão Brasil, lá pelos idos de 1999, Tormenta é ambientada no riquíssimo continente de Arton – o mesmo da cultuada HQ Holy Avenger, primeira semente do projeto que originaria o role playing game.

Utilizando inicialmente versões para AD&D, GURPS e 3D&T (sistema próprio criado por Cassaro, de simples entendimento para os recém-chegados ao mundo do RPG), Tormenta usaria ainda a licença de jogo aberta do Dungeons & Dragons, o chamado d20. Atualmente, em sua versão “revisada, expandida e aprimorada”, Tormenta é lançado pela Jambô Editora – e com diversos suplementos e complementos chegando às lojas todos os meses.

Este é, aliás, um dos principais trunfos de Tormenta em comparação aos seus concorrentes gringos. “Tormenta existe! O jogo tem lançamentos periódicos, enquanto os últimos lançamentos de D&D e GURPS saíram muitos anos atrás”, diz Guilherme Dei Svaldi, um dos editores da Jambô, em entrevista ao JUDÃO. “Há uma porção de vantagens: material produzido em português, custo muito mais barato que os concorrentes (o concorrente recém-chegado custa mais do que o dobro do Tormenta!), dezesseis anos de material pronto e compatível, romances, contos, mangás... Tem muita coisa para consumir e aprender sobre o cenário”, explica Trevisan. “Tormenta pode não ter sacis e curupiras, mas foi feito tendo o brasileiro em mente”.

Tormenta_01Para Saladino, um dos grandes incentivos para que o jogador iniciante opte por Tormenta é que o jogo “fala a língua dele” não apenas por ser todo em português, mas também por ter sido feito com o estilo brasileiro de jogar. “Nós colocamos nos livros todo o retorno que temos dos leitores e fãs que nos escrevem e entram em contato com a gente. Nós ouvimos os fãs e leitores e fazemos o jogo com a cara deles, com o que eles querem e usam nas mesas de jogo. Assim, não colocamos apenas a nossa experiência, mas também a deles”.

Além disso, eles fazem questão de destacar que Tormenta tem uma característica muito forte que é permitir ao jogador um leque de opções enorme, logo no livro básico. “Raças, classes, habilidades, locais exóticos e, principalmente, estilos diferentes a serem usados nos jogos. Tormenta RPG pode ser jogado no estilo clássico de AD&D, ou usando animes e mangás como inspiração, ou num clima mais pesado, mais sombrio, ou ainda como um jogo de ação que beira a dos super-heróis... tudo logo de cara, de acordo com o que o jogador quiser”, opina Saladino.

“Você pode tanto rolar uma aventura ou campanha estilo dark fantasy, explorando as Áreas de Tormentas ou as intrigas profundas dos nobres em Ahlen, quanto inventar uma masmorra inteira feita de pudim e criada por Nimb, o Deus do Caos, da Sorte e do Azar. Ambos os estilos cabem no cenário sem estranhamento nenhum. No decorrer da existência de Tormenta, houve quem achasse isso uma desvantagem. Nós sempre achamos que era um ponto a favor e o tempo mostrou quem estava certo”, completa Trevisan.

Botando a mão na consciência e avaliando que, diacho, Tormenta já tem seus 16 FUCKING ANOS, Saladino e Trevisan afirmam que têm muito orgulho do rumo que as coisas tomaram. “Além de ter um número absurdo de fãs, jogadores e leitores, é impressionante ver como nós fizemos um cenário, um RPG que sobreviveu – ou melhor, que superou todos os problemas e dificuldades que se diziam que existiam no mercado”, avalia Saladino. Seu parceiro, no entanto, confessa que, pra ele, Tormenta ainda é aquele jogo que ele fez com os amigos. “Por isso me surpreendo pacas quando alguém agradece e fica feliz quando a gente aparece em evento. Mas olhando para trás, somos sobreviventes, né? Existe toda uma leva nova no RPG nacional, mas da velhíssima guarda praticamente só sobramos nós. E isso é um baita feito”, diz. “Também chegamos naquele ponto em que nossos fãs da época da Dragão Brasil já são adultos, trabalham e, em alguns casos, tiveram suas carreiras profissionais influenciadas pelo nosso trabalho. E isso é muito louco”.

Quando Saladino fala em “todos os problemas e dificuldades”, está se referindo a um obstáculo que era muito comum para Tormenta na época de seu lançamento: o preconceito por se tratar de um RPG brasileiro. E isso quando a internet por aqui ainda era uma coisa que apenas engatinhava e as redes sociais eram só um sonho distante. “Infelizmente, sempre vai ter gente que vai falar mal do seu trabalho, por diversos motivos. Mas, ao mesmo tempo que tinha gente com preconceito com Tormenta, tinha muita gente que gostava bastante dos livros, do RPG, quadrinhos e etc. A gente confiava (e confia) no cenário e no sistema”, diz Saladino. E Trevisan emenda: “Você tem que ter confiança no que faz, independente do que o público diz para o bem ou para o mal. O Cassaro sempre ensinou isso para a gente. E é verdade. Uma hora você tem que bater no peito e enfiar na cabeça que sabe o que está fazendo, e que a meia dúzia que fala mal vai ficar para trás ou crescer ou sei lá. Senão você fica maluco”.

Uma década e meia depois, no entanto, eles avaliam que o mercado no Brasil continua bastante frutífero para este hobby. Para Trevisan, existe uma espécie de ilusão de que não existe mais interesse. “Provavelmente alimentada pela falta de grandes eventos exclusivos ou de espaços em loja para jogar”, arrisca. Mas Saladino celebra os bons resultados da Jambô, que lança “livro atrás de livro”. E ainda reafirma que as edições esgotam e precisam ser reimpressas. “Me recuso a acreditar que o povo compre livros para não jogar. Não temos grandes eventos ou grandes booms, mas o que temos hoje é um crescimento embasado, lento e contínuo do RPG no Brasil”, explica. “Um embasamento sólido do hobby – e a prova disso é a existência de um mercado independente de RPG, uma mostra que os jogadores, mestres e escritores brasileiros estão crescendo no hobby, procurando e fazendo novas opções”.

Mestre Arsenal, Lisandra e Paladino: três dos personagens recorrentes de Holy Avenger/Tormenta

Mestre Arsenal, Lisandra e Paladino: três dos personagens recorrentes de Holy Avenger/Tormenta

Ambos, aliás, não têm qualquer medo de que os RPGs no formato digital matem a experiência das planilhas e dados. De acordo com Trevisan, pra deixar esta ideia de lado basta apenas observar o ecossistema dos streams de partidas de RPGs de mesa. “O cara entra para assistir, conhece gente no chat e acaba montando o próprio grupo online. Às vezes chega a também criar um canal, que vai trazer mais gente. Se você parar para pensar direitinho, vai ver que é praticamente a mesma dinâmica que ocorria nas lojas com espaço para jogar na década de 90, como a Forbidden Planet, aqui em São Paulo”, relembra.

Pro Saladino, é uma excelente forma de manter juntos aqueles grupos de jogadores que param de jogar pela questão da falta de tempo, ocasionada pelo trabalho, família, etc., o que impediria o deslocamento para um local específico. “Ou não poder reunir todo o grupo num mesmo lugar, num mesmo dia. O jogo online é uma forma de resolver isso, e acaba mantendo mais gente no hobby”.

Por sinal, como uma espécie de evolução da chamada Estalagem do Macaco Caolho, programa de debates sobre RPG transmitido ao vivo por eles via YouTube e Hitbox, com participação do público, acaba de entrar no ar a Guilda do Macaco. “É a primeira campanha transmitida online oficial de Tormenta, com participação de gente muito legal, incluindo eu e o Rogério Saladino. Poder assistir à parte dos criadores de Tormenta jogando é um baita bônus para os nossos fãs”, orgulha-se Trevisan.

Recentemente, eles tiveram a chance de lançar seu primeiro game inspirado no RPG de mesa, Tormenta: O Desafio dos Deuses, um beat ‘em up para PC e Mac todo custeado via financiamento coletivo. E pode vir mais coisa nesse sentido. “Agora que já aprendemos como a coisa funciona”, brinca Trevisan. “Também estamos de olho em plataformas como Fantasy Grounds e Roll20. Nossa ideia sempre foi tratar Tormenta como uma franquia com vários tipos de produtos diferentes além do RPG”. E ele ainda sacaneia: “Vamos lançar paus de selfie em formato da Holy Avenger, livros de colorir para adultos, uma linha de moda inspirada nas roupas do Mestre Arsenal e o perfume do Tork”.

Além do game, dos romances e dos mangás (Holy Avenger ganhou recentemente a companhia de Ledd, escrito por Trevisan) que se passam no mesmo universo de Tormenta, a Jambô acaba de ampliar a linha ao lançar, vejam vocês, um livro-jogo da franquia.

Com roteiro de Svaldi, Ataque a Khalifor segue a mesma pegada dos livros-jogo que eram febre entre os RPGistas brasileiros do começo dos anos 1990. Basicamente, você vai lendo a história como num romance comum mas, em determinado momento, é convocado a tomar uma decisão pelo personagem: se quiser fugir sem lutar com o vigia da masmorra, vá para a página 12; caso queira se engajar num quebra-pau com o sujeito, siga para a página 15. E você leitor é que vai moldando os rumos da história. A trama de Ataque a Khalifor fala sobre uma horda de goblinóides que conquistou o continente sul e agora se volta para as terras do Reinado.

“As outras duas novidades terão que esperar um pouquinho mais”, dispara Svaldi, cheio de mistério. “São linhas de produtos novas, não de RPG, mas relacionadas”. Card games, talvez? Action figures? Hummmm. Os fãs das antigas já ficam salivando pela tão anunciada, tão aguardada e tão adiada série animada de Holy Avenger, que depois se tornaria “apenas” um filme de animação (e que, segundo consta, chegou a passar pelo processo de captação de recursos). Mas, pelo menos neste papo, o trio prefere manter tudo no mais absoluto silêncio.

O que já podemos adiantar é que eles já começaram a pensar em comemorações especiais para os 20 anos da saga, em 2019. Detalhes? “Está tudo nas mãos confiáveis de Nimb. Se eu contar, vou ter que matá-lo”, diz Trevisan.

Rola o D20 que eu quero ver, então. ;)