Santo Forte começou bem, mas será que tem o corpo fechado? | JUDAO.com.br

Assistimos ao primeiro episódio da nova série Brasileira e conversamos com o Roberto d’Avila, diretor geral, que falou sobre digitalização, ousadia e religião

Suspense, religião e misticismo. É nesta trinca que promete se apoiar a série Santo Forte, primeira iniciativa do AXN produzida aqui no Brasil, em parceria com a Moonshot Pictures, que começou a ser exibida neste último final de semana.

Essencialmente, se trata da história de João da Cruz Forte (Vinícius de Oliveira, de quem vocês devem lembrar como o menino Josué de Central do Brasil), taxista simples que, por vezes, ao receber o pagamento pela corrida de seus passageiros, tem visões sobre eles e se sente na obrigação de ajudá-los — tudo porque, no passado, ele cometeu um ~grave erro e acaba se sentindo culpado o bastante pra sempre tentar resolver a questão. Vinícius tá bastante à vontade no papel principal – justamente o de um sujeito simples que, apesar do bom coração, não curtindo muito a ideia de ser o herói, que não sabe direito como resolver as coisas e acaba enfiando as caras, de peito aberto, sem medo de levar uma bala ou uma facada — até porque ele tem o corpo fechado. ;)

“A ideia veio da cabeça do Marc Bechar, que é o autor/roteirista”, conta Roberto d’Avila, diretor geral da série e produtor de TV veteraníssimo, em entrevista exclusiva ao JUDÃO. “O Bechar é norte-americano, radicado há muitos anos no Brasil. Quando ele chegou, uma das maneiras de treinar o português era ficar conversando com taxistas, andando de táxi pra cima e pra baixo. Os taxistas têm muitas histórias, né? Esse foi o princípio da coisa e daí desdobrou, incluímos outros elementos como o de realidade fantástica, por exemplo”.

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A trama se passa em um Rio de Janeiro que o material de divulgação da série define como sendo um lugar “longe daquele que atrai os turistas”. d’Avila explica que isso aconteceu naturalmente porque o roteiro estabeleceu que o protagonista mora na zona oeste do Rio, um lugar raramente visitado por turistas. “Ele circula muito pelo Centro, por bairros que não estão habitualmente retratados na dramaturgia de televisão, Catumbi, Rio Comprido, Tijuca, Maracanã, Santa Teresa, Glória, Catete, Flamengo, todo um outro lado do Rio mais próximo do Centro”, explica. “É como se fosse o outro lado do Cristo Redentor, o outro lado do Corcovado”.

Santo Forte tem uma fotografia linda e bastante diversa do subúrbio do Rio do Janeiro – que se casam na medida certa com tomadas inteligentíssimas que viajam pelo interior do táxi, do banco traseiro para os retrovisores, passando pelo banco traseiro e pelo câmbio manipulado nervosamente. O táxi é um personagem, aliás. E bem importante e retratado, diga-se.

Utilizando o misticismo como elemento narrativo em uma história ambientada no Brasil, com um taxista com poderes sobrenaturais, será que os produtores não teriam medo de causar algum tipo de reação negativa, justamente num país que hoje sofre com uma polarização religiosa tão cheia de polêmicas e embates via redes sociais? O diretor, que afirma não ter medo de polêmica, acha que não Santo Forte não entra neste jogo por não ter uma abordagem “maniqueísta” sobre o assunto. “Uma abordagem muito mais cotidiana, muito mais parecida com a experiência que os brasileiros têm com esse assunto. O brasileiro é um cara ecumênico: pode ser católico, mas ele eventualmente vai no espiritismo, eventualmente vai num pai de santo, num método de cura espiritual ou alternativo à medicina tradicional”.

Este lado, aliás, vai poder ser visto na série, já que a esposa de João, Dalva (Laila Garin), frequenta a igreja do irmão, um pastor evangélico. Do outro lado, o pai de santo de João, Celso (Thiago Justino), se torna seu mentor nesta jornada ao incorporar uma entidade que lhe dá uma série de conselhos para resolver os casos de cada passageiro. “A gente não faz isso opondo um ao outro, eles são da mesma família, convivem, cada um tem suas convicções, a gente trata isso tudo muito naturalmente”.

Todo esse elenco de apoio funciona como um relógio, do pai de santo que faz ele entender que tem uma missão a cumprir e uma dívida a pagar com as “as entidades” à esposa que não aguenta mais as mancadas que o marido dá, deixando ela e os filhos esperando enquanto está resolvendo alguma coisa misteriosa na rua.

Santo Forte segue uma tendência recente no país, a produção cinematográfica e televisiva começando a se arriscar mais em produções de realismo fantástico, um pouco de terror aqui, uma pitada de ficção científica ali. d’Avila diz que a TV paga permite este tipo de liberdade porque é um laboratório, um lugar de experimentação mais forte do que a TV aberta – até por trabalhar com recortes mais determinados de audiência, de perfil de programação e tudo mais. “A TV aberta tem obrigação de falar com mais gente, de agradar mais gente ao mesmo tempo”, opina.

“Ser brasileiro não define um gênero. Eu sou uma série de realismo fantástico”

A crítica de Roberto d’Avila, na verdade, diz respeito à toda a produção audiovisual brasileira – incluindo o cinema. Pra ele, nossos filmes são pouco ousados no que diz respeito a gêneros, sendo que o termo “cinema brasileiro” acabou virando quase que um gênero próprio. “Ser brasileiro não define necessariamente um gênero”. Ele lembra que que, quando você entra em qualquer plataforma on-demand, as coisas estão organizadas por gêneros: ação, aventura, infantil, romance, drama, comédia, etc. “Então, a gente pensa os produtos já nessa perspectiva porque esses gêneros não estão ali por acaso, o hábito de consumo das pessoas está ligado a isso. Não adianta eu dizer ‘ah eu sou cinema brasileiro, ah sou TV brasileira’, Não. Eu sou uma série de realismo fantástico, uma série dramática de realismo fantástico com uma certa dose de procedimento, como várias das séries estrangeiras têm”.

Roberto d'Avila no set de Santo Forte

Roberto d’Avila no set de Santo Forte

Aliás, é justamente esta pegada de “procedimento” que o diretor acredita que vai fazer com que Santo Forte funcione ao lado das séries que fazem sucesso no AXN, os chamados dramas procedurais como a franquia CSI, Criminal Minds e NCIS. Essencialmente, seriados de investigação, com um caso a ser destrinchado ao longo do episódio, sejam eles policiais, jurídicos ou médicos. “Santo Forte tem um elemento de suspense, de mistério, envolvendo esse realismo fantástico com a temática do João ter o corpo fechado, ter essa percepção em relação as pessoas e portanto esse sentido de missão”, pontua Roberto. “Todas as séries do canal têm sempre um sentido de missão desse personagem protagonista”.

Neste primeiro episódio, o rolo é o de uma simpática senhorinha que entra no táxi toda detonada. Ela diz que caiu, que é “coisa de velho”, mas assim que João toca na nota de R$ 100 que recebe dela, tem uma de suas visões. Envolvendo um garoto cabeludinho que parece ser um filho...ou neto. E que tem relação com um agiota chamado Barracuda. Aliás, outro grande acerto até aqui: Cassiano Carneiro (um dos rostos mais familiares do elenco, do qual você pode se lembrar tanto de Quem Matou Pixote? quanto da nova versão do Sítio do Pica-Pau Amarelo, dependendo da sua idade) aparece divertido e ao mesmo tempo ameaçador no papel do antagonista, que deve dar as caras mais vezes ao longo da temporada.

É fato que, pelo menos nesta primeira história, a série mostra menos da investigação de um CSI e mais de uma pegada sobrenatural tipo Medium ou Ghost Whisperer – só que com temperinho brasileiro, umas pitadinhas de Cidade de Deus aqui e ali. Mistura da boa, que não parece que combina mas que acaba dando certo. Fica, no entanto, a dúvida: será que Santo Forte resiste ao teste do tempo? É uma fórmula bastante interessante, mas que parece um tanto blocada. O taxista que pega um passageiro, tem uma visão, procura a ajuda do pai de santo, se mete a salvador, leva tiro na fuça, deixa a mulher em casa esperando... Enfim.

Os roteiristas vão ter que ser muito criativos para derivar isso ao longo de 13 episódios sem cansar o espectador. Mas, pelo menos com este primeiro episódio, conseguiram me deixar curioso o suficiente para conferir o que vão inventar no segundo. Já é um grande feito.

Diga-se de passagem, o AXN liberou o capítulo inaugural na íntegra na internet. Pra assistir, é só apertar o play aí embaixo. :)

Três décadas de audiovisual

Trabalhando há cerca de 30 anos com produção para TV e cinema, nos últimos anos Roberto d’Avila tem curtido a diversificação que a TV paga lhe permitiu, indo dos reality shows de moda (como Brazil’s Next Top Model, Por Um Fio, Desafio da Beleza) aos programas de gastronomia (The Taste Brasil, Que Seja Doce, Cozinheiros em Ação) – isso sem esquecer das passagens pelo policial 9MM e pelo drama com a premiada Sessão de Terapia. Tem algo que ele ainda quer fazer? “Eu te diria que eu quero crescer mais a parte de animação infantil aqui, que é uma coisa que eu tenho muito gosto, muita curiosidade e a gente fez pouco. A gente até fez associado ao Maurício de Sousa, Cine Gibi há uns anos atrás, foi a volta do Maurício de Sousa pro universo do longa-metragem. Isso é uma coisa que eu acho que a gente ainda não desenvolveu suficientemente aqui, eu acho que a gente tem mais gás pra dar”.

Ele se diz bastante entusiasmado com as novas tecnologias digitais, que impactam diretamente o seu processo criativo porque “a gente tem que repensar permanentemente como trocar a roda do carro com o carro andando”. Roberto conta que, em seu dia a dia, tem que permanentemente seguir as matrizes principais que norteiam a produção de televisão “mas ao mesmo tempo entender pra onde está indo o hábito de consumo das pessoas em função dessa oferta nova e diferente que existe hoje e tentar de alguma maneira se adaptar ou inovar, ser criativo o suficiente pra estar passos à frente”.

O produtor explica que houve um tempo em que a televisão era um lugar de prateleiras finitas: meia dúzia de redes nacionais e o que cabia naquelas horas. “As inovações que vieram depois é que mudam muito o cenário. O próprio advento da TV por assinatura, você tem duzentos canais competindo entre si. Portanto, você transformou o que era uma prateleira finita numa prateleira quase que infinita: some a isso todos os acessos com as novas tecnologias de vídeo on demand, de assinatura, de internet. E toda uma nova gama de conteúdos produzidos pelos próprios usuários, formatos diferentes, formatos mais curtos, vídeo, animação, game, são todas outras formas de entretenimento que competem necessariamente com a televisão”.

d’Avila ainda afirma que a televisão precisa ser repensada e reinventada, porque não dá mais para continuar fazendo tudo igual se fazia há vinte anos. “A maneira como você produz as suas coisas de modo a chegar a essa pessoa, seja de tamanho, seja de formato, seja de gênero, seja de técnica narrativa... Todos os elementos estão em cheque hoje em dia”.

Que bom. :)