Universo Desconstruído, uma coletânea de contos de ficção científica organizada por mulheres e para mulheres nasceu, segundo as autoras, de um incômodo: a falta de obras deste gênero que representassem bem as mulheres
“Me desculpem se ofendo 50% da população mas é preciso dizer que, quando o assunto é escrever ficção científica, este ainda é um terreno puramente masculino”. Esta é uma das resenhas de leitores da página da Amazon para o livro Dark Beyond the Stars, uma antologia de histórias escritas apenas por mulheres e ainda inédita no Brasil. “Eu aplaudo as moças por tentarem, mas sugiro que elas desistam de tentar ir mais longe. Deixem o gênero para aqueles de nós que sabem escrever sci fi, que são bem versados em suas muitas nuances...”.
Detalhe importante aqui: esta não é apenas a crítica de um fã. Mas sim a crítica de um autor. No caso, Jack Eason, escritor do livro The Guardian – que a própria Amazon descreve como sendo “uma novela de ficção científica erótica”.
“Os conservadores acham que a gente não sabe escrever sobre isso e que nem deveríamos nos aventurar na área, o que é um sinal significativo de como esses fãs conhecem pouco a ficção científica”, explica Amanda Mendes, mais conhecida pela alcunha de Lady Sybylla, geógrafa, mestra em Paleontologia e, principalmente, também escritora de ficção científica. Ao lado de Aline Valek, ela foi responsável pela publicação de Universo Desconstruído, uma coletânea brasileira de ficção científica feminista, “que é um sub-gênero da ficção científica bem mais publicado lá fora do que aqui, onde algumas obras de referência nunca foram traduzidas”. Como a própria Dark Beyond the Stars, aliás. ;)
Segundo ela, o Universo Desconstruído nasceu de um incômodo: a falta de obras neste tipo de literatura em particular que representassem bem as mulheres. “Fizemos tudo muito rápido. Em poucos meses, nós convidamos os autores, escrevemos os contos, revisamos, diagramamos e a capa ficou pronta. A ideia de ser gratuito é algo que sempre esteve na nossa cabeça, porque era a única maneira de atingir as pessoas da forma como queríamos”, explica ela. O único “pagamento” é um tweet ou um post no Facebook. Nada além disso. :)
Além de contos da própria Sybylla e de Aline, rolaram colaborações de Thabata Borine, Dana Martins, Camila Mateus, Gaby Ventura, Lira Lybero, Alex Luna, Ben Hazrael e Leandro Leite. Isso mesmo, homens e mulheres, tudo junto e misturado. “Tivemos homens, mas eles também souberam trabalhar com temas importantes sem recorrer aos velhos estereótipos de gênero que nossos escritores brasileiros de ficção científica usam tanto”. Mas ela faz questão de deixar claro: em essência, o livro é uma coletânea organizada por mulheres e para mulheres.
Os autores se inspiraram não apenas em escritores de ficção científica como Ursula K. LeGuim, Philip K. Dick, Isaac Asimov e Margaret Atwood como também em séries e filmes como Battlestar Galactica e Blade Runner, além de notícias polêmicas da época como o Estatuto do Nascituro e a “Bolsa Estupro”, ideias apoiadas pelas bancadas religiosas do Congresso Nacional. “A ideia era poder discutir vários assuntos das pautas feministas através da ficção científica, podendo criar alguma reflexão nos leitores”.
“Apresentamos algo que atraiu dois lados que, normalmente, não parecem ter algo em comum”
Sybylla conta ainda que foi emocionante receber mensagens de mulheres, adolescentes e adultas, dizendo que se sentiram contempladas e abraçadas pelas personagens dos dez contos — e que isso as ajudou a voltar a ler ficção científica ou então a conhecer melhor tanto o gênero quanto o feminismo. “Nós apresentamos algo que atraiu dois lados que, normalmente, não parecem ter algo em comum. Homens também surgiram dizendo que agora tinham uma outra visão de feminismo por causa da coletânea”.
Mas... claro que apareceram aquelas pessoas, que são homens, mandando as autoras lerem mais ficção científica e dizendo que elas jamais deveriam ter usado este tipo de literatura para fazer crítica social e feminista. “Quem falou isso foi um escritor nacional, o que mostra como boa parte do nosso fandom desconhece ficção científica”. Vamos aqui usar a frase de alguém com certa relevância para o gênero no cinema: o sul-africano Neill Blomkamp. “Recorro à ficção científica não para prever o futuro, mas para comentar o presente de forma alegórica”, afirmou ele, em entrevista para a revista Galileu. Ou seja... ;)
“Como a repercussão foi grande, nós decidimos tornar o Universo Desconstruído em um selo”, conta ela, empolgada, sobre os planos futuros. “Tanto que a segunda publicação foi O Sonho da Sultana, o primeiro conto de ficção científica feminista, escrito em 1905, por uma ativista dos direitos das mulheres (Roquia Sakhawat Hussain) do que hoje é Bangladesh. Esperamos trazer mais obras de domínio público para disponibilizar gratuitamente”. Além disso, uma nova coletânea está chegando, prevista para sair ainda em 2015, com detalhes ainda mantidos em segredo. “Deve sair no final de dezembro, presente de Natal pra galera. Teremos cordel, afrofuturismo, psicodelia e muita gente de talento escrevendo”.
Sybylla diz ainda que elas discutem sobre novos formatos, como quadrinhos e jogos de RPG. Só que... “Bem que a gente gostaria. Mas tudo no UD é voluntário, ou seja, os autores não são pagos, nem a ilustração da capa. É complicado pedir que as pessoas invistam em um projeto que não envolve dinheiro. A gente convida na camaradagem pela importância de ter uma coletânea como o UD, mas dependemos da boa vontade das pessoas”. Para os leitores do JUDÃO que também produzem gibis ou jogos de mesa... Fica a dica. ;)
Além de escritora, Sybylla é uma leitora alucinada e lamenta, inclusive, que a ficção mais conhecida seja apenas aquela clássica, Dick-Asimov-Clarke e as obras mais recentes acabem desconhecidas pelos leitores – em especial aquelas nas quais a mulher é retratada de maneira mais inteligente e sem estereótipos babacas. Ela cita John Scalzi como bom exemplo de escritor que consegue fazer personagens críveis, personagens com quem podemos nos identificar em obras como Lock In e a série Old Man’s War. “Margaret Atwood, em O Conto da Aia, faz uma crítica pesada à cultura do estupro e ao fundamentalismo religioso nos EUA. Becky Chambers escreveu um livro incrível com personagens fantásticos, homens, mulheres, aliens, chamado The Long Way To a Small, Angry Planet. Sherri L. Smith escreveu Orleans, inspirado no que aconteceu em Nova Orleans depois do Furacão Katrina e trata de racismo, meio ambiente, fundamentalismo e mães solteiras de maneira excelente”.
Anotou tudo? Então toma aí pra você procurar os nomes de algumas escritoras brasileiras de ficção científica, além daquelas que participaram da primeira edição do Universo Desconstruído: MM Drack, Roberta Spindler, Priscila Barone, Cristina Lasaitis, Bárbara Morais, Alliah, Cristina Frentzen, Chaiene Santos, Carla Ferreira, Jossi Borges e Clara Madrigano. Todas em plena atividade, aliás.
“O problema é que um escritor ser de uma minoria já o torna um alvo, já o torna algo subversivo. Então sempre vão esperar que sua obra seja ‘subversiva’. Ora, se os escritores colocam suas visões de mundo em suas obras, isso só deveria enriquecer a literatura”, opina ela que ainda lembra, por exemplo, de toda a polêmica em torno dos Hugo Awards deste ano.
Premiação para os melhores trabalhos e realizações de fantasia ou ficção científica do ano anterior, o Hugo é entregue todo ano durante a World Science Fiction Convention (ou WorldCon). Essencialmente, quem escolhe os vencedores do Hugo são os integrantes da World Science Fiction Society (WSFS) e também os participantes do evento. “É o mais próximo do gosto do público que nós teremos”, diz ela. Mas este ano, grupos de autores que batizaram a si mesmos como Sad Puppies e Rabid Puppies questionaram a escolha, levantando a hipótese de uma espécie de “conspiração literária” para favorecer obras escritas por minorias ou com foco de crítica social. “Se tem tantos escritores de minorias ganhando prêmios, é um reflexo do gosto do público e não de uma conspiração”, crava Sybylla. “Mas vários autores, tanto lá fora quanto aqui no Brasil, apoiaram os Puppies. O fato é que os membros pagantes com direito a voto recebem um pacote de leitura com as obras indicadas ao Hugo e quem leu foi categórico: as obras dos painéis deles eram muito mal escritas”.
Pra ela, o grande problema é que os tais Puppies conhecem pouco a ficção científica. “Eles não estão chateados pelo o que o gênero se tornou e sim pelo que sempre foi. Mulheres, negros, gays, pessoas trans sempre escreveram, organizaram eventos, encontros, fanzines, revistas. Sempre. Se eles estão ganhando prêmios é porque foram invisibilizados durante anos e agora estão aparecendo”. E completa, com uma frase que define tudo muito bem. “Tem espaço para todo mundo aqui”.
Literalmente, se for o caso. :)