Este é basicamente um resumo de Não Pare Na Pista, a cinebiografia do mago
Toda vez que alguém menciona Paulo Coelho, eu lembro desta história clássica: era a áurea (?) época na qual a Editora Abril detinha os direitos sobre a publicação do RPG AD&D (Advanced Dungeons & Dragons) aqui no Brasil. Durante uma das Bienais Internacionais do Livro, em São Paulo, a editora montou um estande temático pra divulgar o jogo: em forma de castelo, com livros de RPG por todos os lados e devidamente guardado por um cidadão trajado como cavaleiro medieval. Vendo uma baita movimentação num estande perto do seu, o “cavaleiro” resolveu saber do que se tratava. É claro que, conforme ele se aproximava, o povo ia dando espaço pro cara passar – e você não sairia da frente de um infeliz de armadura e com uma espada em mãos? Eis que o sujeito chega a uma mesa e dá de cara com o mago bestseller Paulo Coelho, distribuindo autógrafos em seu livro mais recente. Sem saber o que dizer, o escritor levantou os olhos e arriscou um solícito “Pois não?” Seguiu-se o diálogo:
– Tu és o mago de plantão?, disse o cara de armadura.
– É, acho que sou eu sim – respondeu Paulo com um sorriso no canto do rosto.
– Por acaso tu encantas espada? – perguntou o cavaleiro.
– Não – respondeu o mago escritor.
– Talvez tu encantes escudo? – perguntou o cavaleiro.
– Não – respondeu o mago escritor.
– Então tu encantas armaduras? – perguntou o cavaleiro.
– Não – respondeu o mago escritor.
– Então que MERDA de mago você é? – bradou o cavaleiro, que deu as costas e saiu andando, deixando a multidão e o próprio Paulo Coelho aos risos...
A história, um clássico do universo RPGista brasileiro, pode ou não ser verdadeira. Isso pouco importa. Porque ela só ajuda a deixar claro que, assim que assumiu sua faceta de escritor, depois do sucesso de O Diário de Um Mago e O Alquimista, Coelho tornou-se uma espécie de personagem de si mesmo. Mais mito do que homem. Nem todos, claro, podem chegar ao extremo de acreditar que ele tem poderes mágicos. Mas criou-se uma espécie de fantasia ao seu redor sobre sua sabedoria, seu conhecimento sobre as energias do universo, seu relacionamento com o plano astral. Pode ser que ele mesmo tenha alimentado esta fantasia. Pode ser que toda a aura mística que ele colocou em sua literatura tenha ajudado a dar mais força para uma espécie de “eu lírico” que substituiu o “eu verdadeiro”. Tanto faz. O fato é que este Paulo Coelho de hoje, místico e mítico, é do tipo “ame ou odeie”. Apesar de ser um dos escritores mais vendidos e traduzidos no mundo, ele está longe de ser uma unanimidade.
O JUDÃO teve a chance de bater um papo exclusivo com os irmãos Julio e Ravel Andrade – que interpretam, respectivamente, as versões adulta e adolescente de Paulo Coelho na cinebiografia Não Pare Na Pista. E ambos concordaram que se criou, em alguns segmentos, uma espécie de “preguiça” com esta figura romantizada de Paulo Coelho, o mago, em especial no que diz respeito à imprensa. “Não só na imprensa”, relembra Julio, “mas também no meio em que eu circulo. Muitos amigos artistas fizeram cara feia quando souberam que eu interpretaria o Paulo Coelho no cinema”. Dá para dizer, praticamente, que o Paulo Coelho é o equivalente literário ao artista plástico Romero Britto. Como disse o colega Rodolfo Viana neste texto do Brasil Post, parece que se tornou “de bom tom” dizer que não gosta de Paulo Coelho. Mesmo que nunca se tenha lido uma linha do que ele escreveu.
Primeiro longa-metragem de ficção do documentarista Daniel Augusto, Não Pare Na Pista é um filme irregular, mas acerta especialmente quando ajuda a desconstruir este Paulo Coelho abençoado pelo universo. A trama caminha contando praticamente três histórias em paralelo, em três momentos cronológicos distintos: o Paulo Coelho adolescente (vivido com brilhantismo e uma poderosa intensidade por Ravel Andrade), cheio de conflitos com o pai conservador e caretão; o Paulo Coelho jovem (em grande momento de Julio), descobrindo a si mesmo criativamente em meio a um mundo de sexo, drogas e rock ‘n roll; e o Paulo Coelho atual, de 2013, também vivido por Julio, de volta ao Caminho de Santiago com a esposa para procurar algo que nem ele sabe direito o que é. A ideia da narrativa não-linear até que funciona, pelo menos à princípio. Mas calma que a gente chega lá.
Para quem tem resistências a Paulo Coelho, pode ser revelador descobrir que ele chegou a ser duas vezes internado como louco, ainda jovem, submetido a tratamentos psicológicos de choque (em alguns casos, literalmente). Queria ser escritor em uma época na qual a profissão era marginalizada, não era compreendida pelos mais velhos como algo que “colocasse sustento na mesa da família”. Tinha problemas de relacionamento pessoal, se achava horroroso, mal tinha amigos e não conseguia se aproximar do sexo oposto.
Conforme caminha alguns anos adiante, o filme continua interessante por revelar os bastidores da produção de Paulo como compositor musical. Morando com o avô, bem mais tolerante às suas loucuras do que o pai, ele começa a fazer experiências sensoriais, usando todos os tipos possíveis de drogas, escrevendo uma revista sobre alienígenas e seres de outras dimensões, envolvendo-se com um bando de hippies dentre os quais conhece seu primeiro amor de verdade (a espanhola vivida por Paz Vega, que continua sensual até dizer chega, mas com o passar dos anos). É neste contexto que ele conhece a obra mágica do ocultista Aleister Crowley, desenvolve o conceito da Sociedade Alternativa e passa a trabalhar ao lado do cantor baiano Raul Seixas. Aqui, Não Pare Na Pista brilha e encanta.
Aliás, justiça seja feita, é preciso abrir aqui um parênteses: mas que trabalho sensacional faz Lucci Ferreira na pele de Raul. O tom de voz, o sotaque, os trejeitos, é tudo tão perfeito, tão verdadeiro, tão natural e orgânico, que faz a gente ter vontade de ver o ator viver Raulzito em um filme específico sobre ele, sobre sua trajetória, sobre as loucuras do saudoso Maluco Beleza. Fica a dica, senhores produtores.
A química entre Julio e Lucci faz, isso sim, a gente ter vontade de que Não Pare Na Pista – título, aliás, de uma das mais explosivas canções da dupla – se focasse mais neste período. Mas acontece que não. O filme segue em frente. E se rende, então, à tentação fácil de explorar o lado “sobrenatural” do “mago”. Quando Paulo Coelho começa a ouvir as vozes dizendo que “é o discípulo que escolhe o mestre”, quando começa a repetir incansavelmente que basta pedir ao universo que ele vai te atender, quando viaja para a Europa e conhece um tipo misterioso que o coloca no Caminho de Santiago para entender a si mesmo e ao papel de Deus, tendo como prêmio uma determinada espada...aí a coisa fica enfadonha demais. O ritmo cai, fica tudo muito lento, cansativo, e parece que o filme parou na pista. E acaba ficando mais longo do que deveria. A jornada de auto-descobrimento caberia na adaptação de um de seus livros. Mas, aqui, acaba ficando deslocada, em especial pelo ritmo ditado nos atos anteriores. Tudo se torna muito etéreo e pouco palpável.
Detalhe importante: quando vemos o Paulo Coelho mais velho, careca e de cabelos brancos, quem está ali é o mesmo Julio Andrade de sua versão entre vinte e trinta anos. Confesso que o Julio, gente boa, até que se esforça. O cara já tinha chamado atenção como o Gonzaguinha na biografia para os cinemas do rei do baião, Luiz Gonzaga. Mas o lance é que a maquiagem criada por Stephen Murphy (que trabalhou em O Labirinto do Fauno e na franquia Harry Potter) não convence. Está forçada demais, causa estranhamento imediato, desde a primeira vez em que o ator entra em cena. Chega a beirar o bizarro. Quando você começa a se dar conta, o peso da interpretação de Julio vai por água abaixo, dando-lhe ares de caricatura. Simplesmente não precisava. Lucci, por exemplo, não se parece fisicamente com Raul. Mas ele se transforma em Raul usando apenas o poder da interpretação. O recurso, sendo honesto, era desnecessário.
Eu, honestamente, não tenho nada contra Paulo Coelho. Já li dois livros dele que achei, hum, OK. Não marcaram a minha vida mas, vamos ser francos, estão longe de ser o que alguns coleguinhas chamam de “literatura barata”. A primeira hora de Não Pare Na Pista pode ajudar a mostrar um outro lado de Paulo Coelho, longe desta imagem imediata de guru espiritual que temos quando lembramos dele. Já é um considerável avanço. Quando se humaniza o autor, talvez se tenha um outro olhar sobre sua obra.
Embora, confesso, adoraria saber que ele sabe uma magia para encantar escudos. Ia virar o ídolo dos jogadores de RPG. Sem precisar rolar um único D20.