Ou: porque amor, rock e camisas de flanela fazem todo o sentido…
Eu era um pivete de 12, quase 13 anos de idade, lá pelos idos de 1993, ainda muito pirralho para entender metade das coisas da vida mas com certa maturidade para sofrer aquelas agruras típicas de pré-adolescência, como as primeiras paixonites agudas no colégio (e as consequentes dores desses amores, já que namoro nessa idade nunca dá certo mesmo). Muito moleque para cair na noitada, mas com idade suficiente para passar as tardes com os amigos passeando no shopping, na praia ou no cinema.
E foi em uma destas tardes de 1993 quando, já dando indícios da paixão e do vício pelo cinema que ainda mantenho, levei um cano dos amigos e, sem muitas opções para me divertir, resolvi entrar sozinho em uma minúscula sala de projeção para assistir a um pequeno filme chamado Vida de Solteiro (Singles, 1992), de um sujeito ainda desconhecido do grande público chamado Cameron Crowe – na época lembrado apenas no circuitinho independente com o excelente Digam O Que Quiserem e ainda muito longe de atrocidades como Vanilla Sky e Tudo Acontece em Elizabethtown.
Neil Jordan, cineasta responsável por alguns neoclássicos como Traídos Pelo Desejo e Fim de Caso, disse certa vez que o cinema é a mídia mais completa porque é a única capaz de agregar todas as outras a favor do despertar de qualquer espécie de sentimento no indivíduo que está ali, absorvendo aquele conjunto de imagens e sons em movimento. E eu sempre penso nesta citação quando lembro desta tarde do pivete de 13 anos porque, ao final da projeção deste Vida de Solteiro, tudo fazia sentido e eu tive a sensação de finalmente, e tão cedo, ter compreendido o grande segredo da existência da humanidade (além de ter ficado absolutamente apaixonado pela Bridget Fonda, mas isto é um detalhe). Exagero?
Talvez sim, talvez não. Embora ostente hoje um insuspeito status de cult, Vida de Solteiro não foi lá um grande sucesso em sua época, tampouco é considerado pela crítica um trabalho tão marcante. É bem verdade, porém, que o cinema possui um caráter transformador para cada espectador, e um filme não precisa ser necessariamente o melhor do universo para ser impactante e formador de opinião na vida de alguém. E Vida de Solteiro, que está sendo relançado em BluRay nos EUA com um tratamento digno de clássico e uma infinidade de extras (E ESPERAMOS QUE CHEGUE AQUI, VIU WARNER?), é considerado por muitos um dos roteiros contemporâneos mais honestos e sentimentais no que concerne à sua linha central: a construção e a desconstrução dos relacionamentos amorosos na vida dos jovens adultos.
Não só isso: Vida de Solteiro ajudou a abrir caminho no cinema comercial para uma série de trabalhos com foco na chamada Geração X (cujos filhos mais conceituados são os primeiros longas de um certo Richard Linklater, além de outros “clássicos” da época como Caindo na Real) e chamou a atenção para um movimento musical que, ainda em seus primeiros passos, se consolidaria alguns anos à frente: o grunge, de onde surgiram nomes cultuados como Pearl Jam, Soundgarden, Mudhoney e aquela banda que você sabe bem qual é, entre outros – além do combo bandana, camisa de flanela e cabelos desarrumados.
Foi aqui também que começou a discutir-se assuntos de muito impacto na sociedade hoje, como a necessidade de se olhar para a sustentabilidade e a iminente invasão da tecnologia, ainda arcaica mas já próxima de como a conhecemos hoje, e sobre como se investia em relacionamentos em uma época na qual não haviam as facilidades da internet e das redes sociais – no máximo dos máximos, um BIP (e se você não faz ideia do que é isso, vai lá no Google pra você ver como nossa vida era difícil, hehehe).
Vida de Solteiro é tão amado pela parcela de cinéfilos/músicos que estavam na porta da vida adulta em plenos anos 90 porque falou sem rodeios e com uma sinceridade notável sobre as angústias e as vontades desta turma, empolgada e ao mesmo tempo desiludida e sem muitas perspectivas concretas, com sede de firmar uma carreira promissora e tornar-se um pai ou mãe de família moderno sem abdicar de sua juventude, com o desejo de encontrar a cara-metade que lhe compreenda integralmente sem precisar dar as costas para o maravilhoso mundo dos adultos solteiros.
A ideia de explorar este filão tão obscuro até então fez inclusive com que a Warner decidisse transformar o longa em uma série; por problemas de negociação, personagens e cidade foram trocados, conceitos foram levemente alterados e o seriado, que deveria se chamar Singles, tornou-se... Friends. Sim, esse mesmo.
Então, temos um grupo de amigos que moram em um mesmo condomínio em algum canto de Seattle, no início dos anos 90: Steve Dunne (Campbell Scott) é um jovem executivo em franca ascensão e um exímio representante da máxima “azar no jogo e sorte no amor”, só que ao contrário, e que quando não está mergulhado no trabalho persegue toda e qualquer bandinha de rock alternativo pelo submundo underground da cidade na companhia do fiel escudeiro David (Jim True); Janet Livermore (Bridget Fonda) é uma garçonete de uma cafeteria indie com poucas ambições na vida, mergulhada em um subemprego mas ainda assim feliz; e Debbie Hunt (Sheila Kelley) é tão obcecada em encontrar alguém para juntar as escovas de dentes que faz um vídeo de si mesma e manda para uma empresa especializada em unir desconhecidos com algo em comum – praticamente um vovô do Tinder. :D
A rotina desses amigos é aparentemente tranquila, mas não quando o lance é o amor. Steve apaixona-se pela ambientalista Linda (Kyra Sedgwick), que veio de um passado tenebroso com um suposto espanhol e, minutos antes de conhecer Steve em meio a um show do Alice In Chains, prometera que nunca mais se relacionaria com ninguém (o que traz, obviamente, uma série de problemas e crises ao novo casal, que nunca consegue entender se é melhor para ambos estar juntos ou muito longe um do outro). Janet é tão apaixonada por seu namorado, o descerebrado vocalista de banda de garagem Cliff Poncier (Matt Dillon), que decide torrar todas as economias entrando na faca só para agradar o sujeito, que não está muito interessado em um relacionamento monogâmico. David... bem, esse nunca dá certo com ninguém mesmo. E Debbie sofre todo tipo de metamorfose para se adaptar a qualquer cara aparentemente legal que apareça em seu jardim.
O enredo de Vida de Solteiro não tem nada além disso. São apenas amigos tentando se virar como podem na conciliação da satisfação profissional, pessoal e amorosa. O diferencial é a forma absolutamente sincera com que o roteiro de Cameron Crowe trata as questões abordadas: os personagens conversam o tempo todo, de maneira muito franca, sobre aquelas dúvidas comuns que surgem na cabeça de qualquer jovem adulto face a um mundo que ainda não domina. A galeria de personagens extremamente carismáticos e o uso de alguns recursos bacanas, como a divisão do roteiro em pequenos contos e a constante “quebra da quarta parede” para desabafar sobre algum pé-na-bunda sofrido no passado, ajudam bastante a fazer com que o espectador sinta-se envolvido, como parte daquela turma, e até com vontade de dar algum conselho ou alguns tapas na cara quando um determinado personagem começa a inventar um monte de “poréms” para não ficar com a menina que ama por puro medo de se dar mal.
Mas o grande trunfo de Vida de Solteiro, pelo qual o longa ficou conhecido, é mesmo sua trilha sonora. O universo musical de Seattle, que pouco depois ficou conhecido mundialmente como a capital do grunge, é quase um personagem aqui, já que serve de contraponto ao sentimento dos personagens, e muitos de seus rebentos participam ativamente do processo. A banda de garagem de Cliff, a infame Citizen Dick (uma clara referência a um grupo que não vingou chamado Citizen Sane), é basicamente formada por integrantes do Pearl Jam (Eddie Vedder, Stone Gossard e Jeff Ament) – eles respondem, por sinal, por uma hilária cena em que a banda lê uma crítica de jornal, uma referência direta ao passado de Cameron Crowe como jornalista (história retratada no definitivo Quase Famosos), e descobre que Cliff é tido como o único elemento ruim do grupo.
Há também diversas pontas de gente de calibre como Chris Cornell (o cabeça do Soundgarden e do Audioslave), Bruce Pavitt (fundador do selo SubPop, responsável pelos primeiros álbuns do Nirvana, Mudhoney, entre outros), Tad Doyle (o frontman da TAD, uma das principais bandas do movimento grunge) e o pessoal do Alice In Chains, que aparece interpretando um de seus maiores sucessos, Would?, em um boteco chulé onde Steve e Linda se conhecem. Alguns destes músicos declararam posteriormente que a experiência nos sets de Vida de Solteiro e algumas das brincadeiras executadas lá – como por exemplo a fictícia setlist da Citizen Dick, formada de canções que nunca existiram – serviram de inspiração para seus trabalhos no futuro: uma das faixas presentes na setlist, Spoonman, foi realmente gravada posteriormente pelo Soundgarden e inclusa em seu álbum Superunknown. A música de trabalho da Citizen Dick, Touch Me I’m Dick, é uma referência a uma das melhores gravações do Mudhoney, Touch Me I’m Sick.
O vinil da trilha sonora, por sinal – que eu tinha em casa e não sei mais onde foi parar :'( -, foi um grande sucesso de vendas no seu lançamento, três meses antes do filme, e alcançou facilmente o topo das paradas, com uma seleção de canções de Pearl Jam, Mother Love Bone (banda cujo falecido mentor, Andy Wood, foi a grande inspiração de Cameron Crowe para este filme), Smashing Pumpkins, Soundgarden e uma bela homenagem a um dos filhos mais notórios de Seattle, Jimi Hendrix (que aparece em uma cena emblemática do filme com uma de suas mais belas odes, May This Be Love). Infelizmente, a importância desta coletânea para a consolidação do grunge acabou ofuscando um pouco o longa-metragem como um todo. Hoje, muitos lembram do disco, mas sequer mencionam o filme...
Pouco importa. Vida de Solteiro é um daqueles “pequenos grandes trabalhos”, que merece e deve ser visto. Um filme que consegue ser absurdamente atemporal, mesmo que retrate um período tão específico. Um filme sensível e bastante contundente que pode até ser “regionalizado” demais, mas tem o poder de pegar pelo coração qualquer desavisado, principalmente aqueles na faixa dos 20 anos, cuja mente ainda é um turbilhão de ideias, dúvidas, meios, anseios – assim como pegou aquele pivete desavisado de 13 anos que, em 1993, recém-traumatizado pelo seu primeiro pé-na-bunda e abandonado pelos amigos que preferiram passar a tarde jogando Mega Drive, resolveu entrar em um cineminha minúsculo só pra saber qual era a daquele filme com o Eddie Vedder, e acabou sendo meio que marcado por isso... ¯\_(:))_/¯