Uma discussão cinéfilo-religiosa a respeito do novo filme do diretor Ridley Scott
A gente já sabe de toda a treta na Coreia do Norte e em Culver City, Califórnia, com o filme A Entrevista, coisa e tal. Mas teve uma ooooooutra treta, também envolvendo uma produção hollywoodiana, um país longínquo e uma cultura “diferente”, que por pouco não passa despercebida. Na semana passada, o filme Êxodo: Deuses e Reis, superprodução épica e histórica do diretor Ridley Scott, foi vetado das salas de cinema do Marrocos. O motivo? Uma comissão formada pelo Centro Cinematográfico Marroquino e pelos Ministérios da Cultura e da Comunicação se incomodou com a figura de uma criança interpretada como sendo a encarnação de Deus que se comunica com o Moisés vivido por Christian Bale. E isso depois do filme ter sido inicialmente liberado e até exibido em algumas salas do país.
A medida está causando uma baita polêmica por lá – meios de comunicação e representantes do governo que não têm ligações religiosas ficaram indignados, enquanto os religiosos islâmicos bateram palmas. O problema é uma cena na qual o garoto chega a dizer a Moisés a famosa frase “EU SOU” que, no hebraico antigo, é o verbete que originou o termo JEOVÁ, sinônimo de Deus. A imprensa internacional, claro, bate fortemente na atitude, que está longe do discurso de tolerância que o Marrocos tanto defende e tanto quer vender.
O grande lance é que sendo o garoto “aquele que falou com Moisés”, os muçulmanos entendem (por eliminação?) que ele é Alá. Afinal, Moisés é extremamente importante na religião muçulmana também. E, entendam, “com Alá não se brinca”, da mesma forma que não se brinca com a figura do profeta Maomé. Alguns chargistas que o digam. :P
Eis que em seu filme, Ridley Scott então escolhe dar uma forma ao personagem de Jeová – no caso, um garoto birrento e mimado, um moleque irritado e irritante que só quer mostrar sua autoridade...e que apenas o Moisés de Christian Bale consegue ver. É uma postura até certo ponto corajosa, coisa que Hollywood evita arriscar. Basta lembrar da animação O Príncipe do Egito, que trata rigorosamente da mesma passagem da Bíblia e que faz questão de abrir o filme se defendendo, dizendo “Este filme é baseado numa das pedras fundamentais de três das maiores fés religiosas do mundo. Tentamos adaptar o material mantendo o máximo de respeito”. No encargo da produção, Steven Spielberg, um dos mais bem sucedidos magnatas do cinema, e também um respeitoso membro da comunidade judaica de Hollywood. Na animação, o princípio bíblico de “Deus não tem forma” é, mais uma vez, reproduzido à risca com a tradição dramatúrgica de não creditar o intérprete de Deus (dublado pelo mesmo dublador de Moisés, Val Kilmer) e, é claro, pelo fato de que a Voz de Deus vem da sarça ardente, e nada mais.
O grande erro de Scott não foi ter retratado Deus, não foi ter lhe dado forma. O erro fundamental dele é que, em sua visão desta passagem bíblica, simplesmente não se decide sobre como vai falar de Deus. A ideia do cineasta era seguir pelo atual viés do cinema histórico que tenta diminuir o sobrenatural das histórias e achar “razão” nas narrativas. Lembram do Troia com Brad Pitt, que falava da Guerra de Troia sem mencionar a participação dos deuses do Olimpo? Era isso que Scott tinha se proposto a fazer. Falar de Moisés e da libertação dos hebreus do Egito sem apelar para a “magia” da Bíblia.
O diretor declara que era a pessoa perfeita para essa história, já que, sendo “agnóstico”, precisaria criar um filme capaz de convencer a si mesmo (Agnóstico é alguém que acredita em algo mas que não sabe dizer se é Deus). O lance é que, muitos anos atrás, Scott declarava aos quatro ventos que era ateu. Alguma coisa mudou no meio do caminho? Talvez.
Só Moisés vê o menino. Então, ele pode estar louco? Claro, pode ser. Tudo leva a crer que sim, Moisés quer criar uma guerrilha, uma rede de guerreiros treinados que tenta sabotar o Egito de dentro para fora, guiado pelo que diz uma visão. No caso, a visão de um menino cheio de mimimi. Moisés, até então, é um homem cético e racional, que só acredita no que é palpável, aquela coisa. Mas quando o Bat-General do Egito tenta fazer tudo com as próprias mãos e falha, aí é que Scott escorrega. Porque o garoto birrento bate no peito e passa a chamar para si a autoridade “divina” e o poder sobre a natureza. E de cético, como num passe de mágica, Moisés se torna um homem de profunda fé.
Sabe aquela visão “científica”, mais “real”, sem a necessidade de recorrer aos “mitos”? Tudo por água abaixo. Os efeitos especiais espetaculares mostram as pragas do Egito rigorosamente da mesma forma que elas são relatadas na Bíblia, acredite você ou não no livro sagrado – a nuvem de gafanhotos, as rãs, a água em sangue, aquele negócio todo. A tal razão que Scott buscava desaparece no ar, em especial na cena da abertura do Mar Vermelho. É como se, lá pro final de Troia, o diretor resolvesse fazer com que Zeus aparecesse resolver o conflito. Scott parece ter se empolgado com a possibilidade de fazer melhor do que a clássica sequência de Os Dez Mandamentos e BOOM!, até um meteoro surge na jogada.
A trama fica nesse vai e vem até o fim. Quero falar da Bíblia com um toque de realidade ou quero usar a própria linguagem da Bíblia? Sem um novo ponto de vista, sem se decidir para onde quer ir, o filme é inútil. Não é Troia e nem Fúria de Titãs. Fica num incômodo meio do caminho.
Êxodo: Deuses e Reis é um perfeito espetáculo Hollywoodiano. O visual é fantástico, os efeitos são surpreendentes...mas o roteiro é fraco. Raso, superficial. As ideias por trás do filme se sustentam quase tão somente sobre os ombros do carisma do protagonista – e nem mesmo o Bruce Wayne consegue salvar o barco afundando. Quase todo o elenco de apoio está estranhamente ruim. Atores de talento renomado como John Turturro, Sigourney Weaver, Ben Kingsley e Aaron Paul se perdem no filme.
Uma coisa, todavia, é preciso dizer: a comparação de Êxodo com Noé, outro filme bíblico lançado este ano e que tinha a mesma tendência, digamos, realista, é injusta demais. Aronofsky é Aronofsky e Ridley Scott é Ridley Scott. O Aronofsky de Noé é um diretor e um criador infinitamente mais pensante que o Scott de hoje em dia. As mudanças que eu, como cristão, vi em Noé são muito, MUITO úteis ao desenvolvimento questionador, à reflexão ética, moral, espiritual e religiosa. Êxodo é só um filme bobo.
Eu realmente me deparei com alguns absurdistas “estilo FOX News” na internet boicotando o filme de Ridley Scott, dizendo que era “o filme mais perigoso para a fé já feito”. Sério, cara? Êxodo: Deuses e Reis não é o fim da Bíblia. Se liga. Não vai acabar com a fé, com a Igreja, com as sinagogas, mesquitas. Não vai nem acabar com a carreira do Ridley Scott, que é um diretor genial, mas que todos querem ver voltar realmente à ativa depois de uma série de fracassos (Eu quero acreditar em Blade Runner 2. Mas me falta fé).
Eu sou 100% a favor de respeitar a religião e crenças do próximo, mas sou 100% a favor de QUESTIONAR. Isso não anula o respeito. Em toda a minha experiência pessoal espiritual, Deus, quando questionado, responde. Se Deus é Deus, e ele procura um relacionamento com suas criaturas, sendo que somos limitados em todas as esferas, não é de se esperar que iremos questioná-lo? E que, se ele é real, (e ele é), ele vai responder? Do jeito dele, mandando o Batman libertar o povo. Mandando o Filho dele ser pregado numa cruz pelo Mel Gibson. Ensinando o Russell Crowe a tomar um porre.
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Silas Chosen foi convidado pra escrever esse texto. Ele é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.