A realidade às vezes parece ficção. Esse documentário sobre a Cientologia é um desses casos.
A realidade às vezes parece ficção. Eu falei um pouco sobre isso em um post de alguns meses atrás sobre o Capital no Século XXI, do Thomas Piketty. Os fatos ou situações se apresentam de forma tão surreal e inacreditável que é difícil considerá-los reais.
Veja, por exemplo, este vídeo e me diz se dá para acreditar que isso é a vida real. Não é o trecho de um filme. Isso é um vídeo vazado e viralizado no YouTube. E isso é a realidade.
É de momentos surreais assim que é feito o documentário da HBO Going Clear: Scientology and the Prison of Belief, dirigido pelo vencedor do Oscar e experiente Alex Gibney. O filme caiu com uma bomba nos Estados Unidos, trazendo à tona denúncias graves contra a controversa igreja da Cientologia, religião que tem como mais notáveis “apóstolos” Tom Cruise e John Travolta.
O filme parte do surgimento da Cientologia, pelas mãos do escritor de ficção científica e polêmico L. Ron Hubbard. Após amargar tempos de vacas magras graças ao pouco rendimento que seus livros garantiam, ele resolveu colocar em prática sua teoria de que o melhor meio para ficar rico seria criar uma religião.
Após lançar um livro no começo dos anos 50 misturando conceitos de psicanálise e um crescente interesse das pessoas em assuntos esotéricos e — especialmente — de fora do planeta, Hubbard enxergou um caminho para pavimentar seus ambiciosos planos.
A Cientologia começou a conquistar jovens adeptos em torno de um líder carismático e que, a cada dia, acreditava mais nos conceitos que ele mesmo criou. E olha que esses conceitos são bem exóticos. Basicamente, a humanidade seria infestada de espíritos de alienígenas pecadores que foram atirados em vulcões por um deus maligno há bilhões de anos.
Tá bom pra você?
Após a morte de Hubbard em 1986, quando ele basicamente vivia escondido e recluso em algum lugar na Califórnia, entra em cena um dos personagens mais apavorantes que eu já vi em um filme: David Miscavige.
Going Clear tem como base um livro de mesmo nome, escrito por Lawrence Wright, e lançado no Brasil com o nome de A Prisão da Fé, pela editora Companhia das Letras. Assim como o livro, o documentário tem como fonte pessoas que ocuparam cargos importantíssimos dentro da organização da Cientologia. E é muito surpreendente como essas pessoas decidiram se expor dessa forma, contradizendo publicamente as coisas que até poucos anos atrás defendiam também em público.
Entre essas pessoas consta também o diretor e roteirista Paul Haggis, vencedor do Oscar por Crash. Cientologista por cerca de 30 anos, ele é uma das poucas celebridades a se posicionarem publicamente contra a igreja. E é um dos principais personagens do documentário.
A maioria delas, recai diretamente sobre Miscavige. Elas vão de violência ritualísca, homofobia, lavagem cerebral, ameaças contra pessoas que criticam a religião, diversos tipos de chantagens, mentiras a — acredite — até um complô para separar Tom Cruise de sua ex-mulher Nicole Kidman!
Também é assombrosa a versão do filme sobre a relação de John Travolta e a igreja. Uma das primeiras celebridades a engrossarem suas fileiras, cientologista há cerca de 40 anos, Travolta seria até hoje chantageado para seguir defendendo a instituição de Miscavige, tudo porque os cientologistas teriam um vasto arquivo contendo inúmeras confissões do ator, colhidas em sessões de audições, principal ritual da cientologia que funciona de modo muito parecido com a confissão para a igreja Católica.
Se você somar essa informação com os rumores sobre a suposta homossexualidade de Travolta, que chegaram aos sites de notícias e tabloides em 2012, dá para acreditar na versão defendida pelo filme, não dá?
A relação de Travolta com a igreja é tão profunda que, em 2000, ele produziu e estrelou a bomba A Reconquista. O filme foi baseado em um livro de Hubbard que faz parte da mitologia da Cientologia. E, cabe repetir, é uma bomba sem precedentes.
Tantas denúncias, somadas às inacreditáveis imagens de eventos da Cientologia recheados de simbolismos nazistas, fazem de Miscavige um personagem digno de um filme perdido de James Bond estrelado por Roger Moore e passado nos anos 80.
Ele é retratado em Going Clear como um homem ambicioso, paranóico e ciumento, com séria mania de grandeza. E, mesmo com tudo isso — ou, mais provavelmente, por conta disso tudo — transformou sua religião num império com propriedades espalhadas pelo mundo, avaliadas em mais de US$ 3 bilhões.
Aliás, cabe a Miscavige também o mérito de ter conseguido oficializar a cientologia como religião, garantindo a isenção de impostos tão sonhada por qualquer “líder religioso”. A estratégia narrada no filme para conseguir tal feito, aliás, é tão brilhante quanto deplorável e assustadora.
Não é preciso dizer que o ataque incisivo de Going Clear gerou uma forte reação da Cientologia e de Miscavige após o filme ter sido exibido na HBO. Em um comunicado publicado pelo The Wrap, a igreja afirmou que “Alex Gibney (diretor do filme) é exatamente como suas fontes em seu filme — nenhuma acusação é muito irresponsável para ser feita. Não importa a falta de comprovação e provas, vale tudo para promover seu filme.”
Obviamente Travolta também saiu em defesa de sua igreja, acusando Going Clear de mentiroso e dizendo que se recusou a ver o filme.
Já na Inglaterra, os advogados da igreja estão em uma batalha para proibir sua veiculação, conforme esta ótima matéria do Guardian. O livro em que ele foi baseado nunca foi lançado por lá, já que a editora Transworld desistiu da publicação por orientação jurídica.
Enquanto isso, no Brasil, nem sinal de Going Clear. A HBO ainda não se pronunciou sobre uma possível exibição por aqui. O que é uma pena.
Organizações pseudo-religiosas se beneficiando de isenção de impostos, praticando lavagem cerebral e promovendo o ódio? Bom, não preciso dizer que temos alguns exemplos por aqui, não é? Seria bem esclarecedor que a audiência brasileira tivesse a acesso ao filme.
Um filme, aliás, que não conta apenas com o peso de suas denúncias e surrealismo de suas imagens para conquistar. A mão firme do diretor cria uma narrativa envolvente e precisa. E faz de Going Clear mais um produto exemplar de uma incrível geração de documentaristas que está jogando luz sobre assuntos polêmicos e necessários.
Até a HBO se decidir a exibir ou não, procure Going Clear. Você sabe o caminho. E nunca mais olhe para Tom Cruise da mesma forma.
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