Whiplash: Em Busca da Perfeição | JUDAO.com.br

No que parecia ser uma trama simplória, J.K. Simmons rouba a cena com um personagem sádico e fora de controle, em uma atuação digna de premiação

Em um bate-papo de mesa de bar, Terence Fletcher (J.K. Simmons, o J. Jonah Jameson dos primeiros filmes do Homem-Aranha) conta a Andrew Nieman (Miles Teller, o novo Reed Richards do vindouro Quarteto Fantástico) a breve história de um aspirante a saxofonista que errou algumas notas em um concerto e viu seu mentor tacar-lhe um CHIMBAL em sua direção por conta deste erro. Debaixo de risos da platéia, o músico voltou pra casa e chorou durante toda a noite; acordou na manhã seguinte disposto a praticar violentamente, porque prometeu a si mesmo jamais ser motivo de risadas novamente. Um ano depois, este músico iniciante, Charlie Parker, já era aclamado mundialmente como “o melhor saxofonista de todos os tempos”, ganhou o notório apelido de “Bird” e hoje, 60 anos após sua morte, ainda é lembrado e ovacionado por qualquer especialista em jazz.

A história de como Bird tornou-se Bird (aquele mesmo, retratado no igualmente surpreendente filme de Clint Eastwood com Forest Whitaker) é um resumo direto ao ponto do visceral e claustrofóbico Whiplash – Em Busca da Perfeição, segundo longa do promissor Damien Chazelle e vencedor da última edição do festival de Sundance. Os fins justificam os meios? Até que ponto somos capazes de suportar horrores para chegarmos onde queremos chegar, para sermos lembrados por gerações, para nos tornarmos um Charlie Parker?

Ou seja, amiguinhos roqueiros desavisados: este é um filme sobre jazz – apesar do nome, Whiplash, a referência aqui não é à música do Metallica, mas sim à música de mesmo nome composta pelo saxofonista Hank Levy. Inspirado nas experiências pessoais de Chazelle como baterista na escola, o filme trata de um lado muito comum do jazz contemporâneo, talvez pouco conhecido do público, essa “busca pela perfeição” que o subtítulo brazuca sugere. Treinar, treinar, se arrebentar até encontrar o acorde perfeito. Jazz não é música de tiozinho, querido leitor. Não por acaso, “Whiplash” é, na tradução literal do inglês, a correia do chicote. Terence Fletcher aprova a escolha com louvor. Porque ele saberia bem como usar um chicote.

Até esta conversa de mesa de bar que eu mencionei no começo do texto, Nieman, jovem recém-chegado ao Conservatório Shaffer, considerada a melhor universidade de música dos Estados Unidos, já terá descoberto a resposta a estas perguntas na raça. Vindo de uma família sem grandes nomes, vivendo à sombra do fracasso do pai (Paul Reiser) e sedento de vontade de ser um grande baterista, Nieman logo é notado por Fletcher, o mais respeitado e temido professor de Shaffer. Quando o jovem músico torna-se integrante da banda oficial do Conservatório, banda esta na qual Fletcher é o maestro, o pesadelo começa: dono de métodos bastante agressivos, Fletcher não medirá esforços, palavras e ações para transformar Nieman em seu Charlie Parker pessoal. E dá-lhe suor, (muita) humilhação, (muito) sangue e uma ou outra lágrima até que isto aconteça – se é que pode acontecer.

Whiplash é um daqueles trabalhos miraculosos, que aparecem de tempos em tempos, com um suposto fiapinho de enredo que, na prática, apresenta um mar de possibilidades. A sinopse pode até sugerir um filme sobre um “embate entre aluno e professor”, mas estamos falando de muito mais do que isso. Logo de cara, já é possível entender que Andrew Nieman é alguém preparado para sacrificar o que for preciso para atingir seu objetivo – em dado momento, o personagem discute abertamente o conforto que sente em não ter amigos, já que amigos podem ser empecilhos no que tange à sua disciplina. Em outro momento, explica com uma conformidade absurda que não namora porque sabe que dormirá com a namorada pensando na bateria. “Prefiro morrer falido aos 34 anos e ser tópico de uma conversa do que chegar milionário aos 90 anos sem ser lembrado por ninguém”, conclui.

Nada, porém, poderia prepará-lo para o diabólico Terence Fletcher. Um homem capaz de questionar seus alunos sobre seus traumas de infância somente para usar estes traumas a seu favor durante um ensaio. Um homem capaz de humilhar seus alunos e forçá-los a tocar por horas e horas e horas, até banhar os instrumentos a sangue (algo que acontece, por sinal, em vários momentos da fita). Um homem capaz de jogar um “foda-se” na cara de um aluno que chegou atrasado e seriamente machucado a um ensaio, porque acabara de sofrer um acidente de carro. Um homem que defende abertamente que só o esforço desmedido é capaz de criar um mito, e só a raiva alimenta o esforço. Os fins justificam os meios?

A obsessão destes dois personagens, em criar uma lenda e em ser esta lenda, e os consequentes duelos psicológicos (e verbais e às vezes até físicos) oriundos desta obsessão, gerarão momentos memoráveis durante a curta duração do filme. E quantas vezes, afinal, já quisemos ser melhores no nosso trabalho só pra esfregar na cara do chefe que somos capazes?

J.K. Simmons, por sinal, é o grande catalisador de Whiplash. Embora Miles Teller tenha uma atuação bastante contundente, definitivamente não é possível olhar em outra direção quando o sádico Simmons está em cena, espumando e destruindo tudo à sua volta. O personagem é tão cheio de camadas que somos incapazes de entender suas reais intenções ao longo da fita. Posso dizer que Simmons habitará todos os meus pesadelos nos próximos dias.

J.K. Simmons, o diretor Damien Chazelle e Miles Teller

J.K. Simmons, o diretor Damien Chazelle e Miles Teller

Whiplash é bastante correto tecnicamente falando e não traz grandes novidades ao modus operandi de um filme deste gênero. A força, de fato, está nos personagens, magistralmente construídos e interpretados, no excepcional domínio de cena do diretor Damien Chazelle (mais filmes, por favor!) e na mensagem de sua trama, que não só pontua a necessidade de entrega total quando se objetiva ser grande, mas também nos lembra a todo momento que, mesmo com muito suor e sangue derramado, talvez nem todos consigam fugir do ostracismo. Somos a todo instante obrigados a confrontar esta realidade: ter o nome gravado na história é para poucos, e certamente muitos de nós veremos, com o tempo, nossos sonhos morrerem para dar lugar a uma mesa de escritório, um trabalho burocrático e o puro anonimato – embora seja fácil ter um pouco de esperança no momento em que Andrew Neiman, sem largar as baquetas e mesmo com as mãos em carne viva, arranca um sorriso bem discreto, de canto de boca, do rosto do implacável Terence Fletcher.

Resta saber se Damien Chazelle, que provou ter potencial para ser grande com este seu magnífico trabalho, será um Charlie Parker no futuro. A platéia ele já tem.