Suplemento do aguardado retorno oficial do icônico Mundo das Trevas joga a empatia no ralo em determinado trecho — e aí a nova versão da editora leva um baita puxão de orelhas de sua empresa-mãe
A grande graça do chamado Mundo das Trevas, a clássica ambientação RPGística da qual fazia parte Vampiro: A Máscara e que se tornou uma febre em mesas repletas de dados e planilhas nos anos 90, era o seu toque de realidade. Vampiros, lobisomens, magos, espíritos, fadas e a porra toda eram seres sobrenaturais que existiam nas sombras da sociedade em que vivemos.
Diferente de um Dungeons & Dragons da vida, o mundo no qual as aventuras se passavam era o nosso, urbano, contemporâneo, ruas, carros, prédios e boletos pra pagar — só que tinha uma camada gótica que as pessoas comuns definitivamente NÃO conseguiam enxergar, com uma pitadinha de teoria da conspiração envolvida. Afinal de contas, a grande PINÁCULO do WoD é retratar a luta das criaturas das trevas por sua própria humanidade, para que não percam o que ainda lhes resta enquanto tentam se fazer passar pelos mortais que por vezes lhes servem de alimento, outras de diversão e outras de proteção.
Quando este ano finalmente foi lançada a tão aguardada 5a edição de Vampire: The Masquerade, este elemento definitivamente não se perdeu. “Este livro contém linguagem visual e escrita de natureza madura, incluindo violência, temas sexuais e linguagem ofensiva. Pede-se a discrição do leitor”. O aviso clássico, que se lia nas publicações da franquia mais de uma década atrás, continuam por aqui, continuam impressos, continuam valendo.
Mas o que parece que ficou faltando, isso sim, foi um bocado de NOÇÃO DA REALIDADE. Porque, para um jogo cujo objetivo é servir como forma de usar os vampiros como extrapolação do mundo ao nosso redor, faltou um pouco da palavrinha mágica chamada EMPATIA.
Neste nosso texto de Fevereiro de 2017, te contamos em detalhes sobre como a White Wolf, editora responsável por Vampiro e seus derivados, acabou sendo comprada pela empresa sueca de games Paradox Interactive, transformando a WW em “uma subsidiária que tem total liberdade de ação, podendo inclusive negociar contratos de licenciamento para jogos digitais, físicos, eventos e ainda produtos para TV/cinema não apenas com a Paradox mas também com qualquer outra empresa do mercado”. Muito que bem.
Bem antes do lançamento desses primeiros jogos de “ficção interativa” da 5a edição sequer sonharem dar as caras, muita gente já os questionava, em especial pela presença pouco ortodoxa do falastrão Zak Sabbath. Quando os primeiros testes da versão de Vampiro começaram a ser feitos, surgiram alguns questionamentos sobre como a violência envolvendo questões sexuais era tratada de maneira mais exagerada do que deveria. Antes que alguém sequer pense na frase, pois é, pessoas queridas, não estamos mais nos anos 90, o mundo mudou, AINDA BEM. Sigamos em frente.
Os beta-testers parecem ter sido ouvidos até certo ponto, a produção seguiu, o jogo foi lançado. E aí que começaram a sair, com publicação via editora Modiphius Entertainment, também os suplementos da parada.
Um dos primeiros, Camarilla, a ser lançado em breve, é justamente uma reapresentação da organização global mais estruturada dos sanguessugas, em especial os mais velhos, em torno da regra conhecida como A Máscara — a manutenção do segredo dos vampiros justamente para evitar que eles se tornem alvo de uma nova Inquisição. Em nome de sua própria sobrevivência, a Camarilla joga sujo, manipula, mente e cria ilusões aos olhos dos meros mortais. E foi AÍ que a parada pegou pesado.
De acordo com o livro, a Chechênia, uma das repúblicas da Federação da Rússia na região do Cáucaso, é um país isolacionista secretamente dominado pelos vampiros, em sua grande maioria.
Mas sabe aquele lance da perseguição que o governo checheno faz a quem é LGBT? Lembra daqueles campos de concentração para homossexuais que foram denunciados a partir de 2017, verdadeiros antros de horrores aos quais era levados gays sequestrados e mantidos sob tortura? Então, o livro da Camarilla nos conta que é tudo mentira. Que na verdade esta é uma imensa campanha de “desinformação” conduzida pelos vampiros para mascarar a sua existência, impedindo que a imprensa internacional descubra a verdade.
PORRA, WHITE WOLF. Sério?
Tamos falando de uma parada que é um CRIME contra a humanidade e que está sendo deslegitimada de uma forma tão imbecil, tratada como se fosse absolutamente nada? Daria tranquilamente para colocar esta MESMA situação dentro da ambientação sem tirar a sua força, tratando-a como deve ser tratada: uma ação de MONSTROS. “Num país dominado por vampiros, existe um campo de concentração que reacende o pior que existe na humanidade e faz com que meros mortais sejam ainda mais cruéis do que os próprios mortos vivos”, por exemplo, seria uma saída interessante. Forte, soco na cara, não foge do assunto, fica dentro da temática... mas não passa pano deste jeito ridículo.
Quando as versões digitais do livro começaram a circular, claro, qualquer um com pelo menos metade de uma alma ainda em funcionamento se indignou com este retrato absurdo. E a situação escalou. E foi parar, obviamente, nos ouvidos dos figurões da Paradox. Que perceberam que, bom, dar este tanto de liberdade editorial pra White Wolf caminhar com as próprias pernas talvez não tenha sido a melhor das ideias no momento.
Revelação de campos de concentração para LGBTQ+ na Chechênia foram tratados como campanha de “desinformação” conduzida pelos vampiros para mascarar a sua existência
“Olá. Meu nome é Shams Jorjani, VP de desenvolvimento de negócios da Paradox Interactive e gerente interina da White Wolf Publishing. Gostaria de informar que algumas mudanças serão implementadas na White Wolf, começando imediatamente”, começa o comunicado oficial com ares de “fodeu a porra toda, rapaziada”. No texto, bastante elogiável pela seriedade com que trata o assunto, a Paradox bate no peito e assume a bronca: diz que tanto as versões em PDF quanto impressas do livro da Camarilla e do suplemento dos Anarchs, que também menciona a história desta forma, serão modificadas, com todo o trecho da Chechênia sendo removido. Sim, as entregas vão atrasar. Só que não para aí.
“Em termos práticos, a White Wolf não vai mais funcionar como uma entidade separada. O time será reestruturado e integrado diretamente à Paradox — e eu pessoalmente vou gerenciar as coisas durante este processo. Estamos recrutando novas lideranças que vão guiar a WW criativa e comercialmente em direção ao futuro”. A ideia aqui é que a galera do lobo branco fique responsável por algo chamado “gerenciamento de marca”. Eles vão desenvolver os princípios, a sua vida, o seu guia para o Mundo das Trevas. E então algumas empresas licenciadas serão convocadas a criar novos produtos dentro deste novo mundo. “A White Wolf não vai mais desenvolver e publicar estes produtos internamente. Esta era a ideia desde o começo e agora é hora de fazer acontecer”.
Isso é o que se chama de TOMAR UMA PORRA DUMA ATITUDE, gostaria de deixar claro.
Por mais que deixe claro que o Mundo das Trevas é um produto de horror, e que o horror explora naturalmente as partes mais sombrias da nossa sociedade, da nossa cultura e de nós mesmos, sem medo de explorar temas difíceis ou sensíveis, jamais deveria fazê-lo sem entender sobre QUEM estes assuntos tratam e o que isso significa para estas pessoas. “O mal verdadeiro existe em nosso mundo e não podemos nunca desculpar os seus responsáveis ou diminuir o sofrimento das vidas de verdade. No capítulo sobre a Chechênia, perdemos isso de vista. O resultado foi um trecho que lida com uma tragédia em andamento no mundo real de uma maneira cruel e desrespeitosa. Deveríamos ter identificado isso durante o processo criativo ou mesmo na edição. Isso não aconteceu e gostaríamos de pedir desculpas”.
Ôpa. Espera aí. Fizeram merda, tomaram uma atitude séria e ainda se desculparam? E detalhe, sem dizer “desculpe A QUEM SE SENTIU OFENDIDO”, que é basicamente a frase para quem NÃO queria pedir desculpas?
Uau. Isso é algo raro de se ver não só no Mundo das Trevas ou no mundinho da cultura pop, mas na vida real. E por isso, os caras da Paradox merecem DEMAIS o nosso respeito.