Série conta a trajetória de um dos mais importantes grupos do rap americano — que tinha rigorosamente tudo para dar errado, mas desafiou sociedade e mercado formando a sua própria “Liga da Justiça”
Não foi exatamente de braços abertos que o anúncio da série An American Saga, a narrativa ficcional sobre os primórdios do Wu-Tang Clan, foi recebido — por ser uma produção de Robert Fitzgerald Diggs, aka RZA, o líder de um dos mais importantes e influentes grupos do rap americano, houve lá uma pitada de dúvida.
O medo é que, tudo bem, estamos falando do cara que plantou as sementes da banda, que reuniu o restante dos integrantes em torno de um ideal, que compôs e produziu grande parte dos discos (incluindo os solo de certos membros do time). Mas e se a história girasse em torno dele? Se Bobby fosse o único protagonista? Faria sentido? Seria justo com quem sempre esteve ao seu lado?
Bom, pra quem assistiu à série documental em quatro partes Of Mics and Men, este era de fato um receio infundado. Porque ali está tudo, sem máscaras, sem rodeios. As tretas entre os caras, os questionamentos ao “comando” de RZA, as discordâncias sobre o tal “disco secreto” que foi parar nas mãos de um milionário escroto, e até algo que pouca gente esperava: os dedos apontados para o próprio irmão de RZA, Mitchell “Divine” Diggs, outrora empresário do grupo. Verdade rasgada, nua e crua, uma tensão palpável, mas do tipo que ainda assim não tira deles o selo de “família”. Daquele tipo que grita, esperneia, discorda. Mas ainda assim... “família”.
Aliás, recomendo fortemente pra quem realmente se interessa pela história destes caras, ver Of Mics and Men ANTES de assistir aos dez episódios de An American Saga, que teve sua primeira temporada encerrada oficialmente pelo Hulu na semana passada. Um serve lindamente como prelúdio e preparação para o que está por vir no outro. É um complemento ideal.
E também recomendo, de verdade, que não apenas os fãs ou iniciados ao universo do Wu-Tang assistam ao desenrolar desta saga americana. Porque é não apenas a origem de um ícone da música (você pode nem fazer ideia do que se trata, mas muito provavelmente já viu o símbolo amarelo deles por aí numa camiseta, num adesivo, numa tatuagem, isso é fato), mas também uma PUTA história e com um PUTA elenco sobre como a música tem poder para mudar uma vida. Ou muitas, num caso como este. Sobre como rimas e versos podem ser uma âncora de esperança pra quem só conseguia enxergar no crime uma saída para uma vida melhor.
An American Saga se passa inteiramente em Nova York, mas poderia tranquilamente ser São Paulo, Rio de Janeiro, ou qualquer grande capital brasileira com as dores únicas de suas periferias, que formam uma espécie de mundo à parte pra quem só tá ligado no próprio umbigo. Estamos no final dos anos 1980 — e a Estátua da Liberdade e a Ponte de Manhattan, aqueles elementos que a gente tão bem conhece dos filmes gringos, estão bem distantes, ao fundo, enxergando de longe o que acontece na vida real. Nos bairros pobres, no coração de uma família como a dos Diggs, na qual uma mãe solteira trabalha como garçonete pra ajudar a sustentar seus quatro filhos, sem a presença dos pais, que sumiram. O mais velho encontra no tráfico de drogas a chance de ajudar este núcleo a continuar de pé, tentando minimamente criar um futuro para os mais jovens. E se cria uma espécie de acordo tácito com a mãe: o dinheiro entra mas ninguém fala muito sobre o assunto.
Te parece familiar?
O jovem Bobby (Ashton Sanders, de Moonlight, ótimo em sua mistura de olhar de frustração e sorriso contido de esperança), que no futuro se torna o RZA, quer tentar fugir daquilo que parece ser o seu destino, seguindo a sina do irmão mais velho. No porão da casa, junta um monte de equipamentos velhos para tentar fazer o seu som, misturando e remixando os vinis antigos que vive caçando na loja de discos local sempre que sobra um trocado. Seu sonho é viver de música, é gravar seus sons demo numa fita cassete e espalhar por aí, pela rua, pelo mundo. Divine, seu irmão, acha tudo uma loucura. Diz o tempo todo que é melhor deixar estes DEVANEIOS idiotas de lado e crescer, assumir a responsabilidade pela comida na mesa da família.
E quer saber a grande merda? Bobby não consegue enxergar outra saída. Ele acha que Divine infelizmente tem razão. Porque eles, assim como quase todos os jovens negros retratados na série, vivem em comunidades pobres, esquecidas pelo governo, vistas com desconfiança pelos brancos, que se tornam sinais de alerta na cabeça de qualquer empregador quando eles vão atrás de uma oportunidade, por menor que seja, para abrir um caminho diferente. Não rola. É mais fácil, então, distribuir cocaína, tirar uma grana e ter sempre uma pistola na cintura, desde cedo, desde sempre, para garantir o sustento. O cara cercado de puxa-sacos armados até os dentes e mulheres lindas, cordão de ouro pesado no pescoço, é o ídolo, inspiração suprema.
Ao redor de Bobby, que aos trancos e barrancos começa a contaminar uma galera com o seu sonho de rap, orbitam não apenas seus primos Gary (GZA, ainda atendendo pelo codinome The Genius) e Anson (que se tornará o Ol’ Dirty Bastard e que aqui conta com uma performance inconfundível do ator TJ Atoms, incorporando de maneira quase perfeita todos os trejeitos e tiques do finado rapper), mas também amigos como o grandalhão, ex-jogador de lacrosse, que um dia vai atender pelo apelido de Method Man.
Todos, de alguma forma, envolvidos com o crime. E alguns deles, inclusive, inimigos mortais, que quase mataram um ao outro, como Sha (Raekwon) e seu parceiro Dennis (Ghostface Killah), que se envolve secretamente com a irmã de Bobby e Divine, Shurrie (aliás, outro incrível destaque aqui pra Zolee Griggs, que segura benzaço, quase sozinha, uma trama secundária sobre o papel da mulher neste rolê todo). As rivalidades entre regiões da cidade, entre bairros, comunidades, existem e são reais, vivas, pulsantes, se tornando verdadeiras guerras pelo negócio das ruas — e Bobby, enquanto elemento centralizador de cada uma destas histórias, chega inclusive a ser considerado um traidor. Ele quase desiste. Mas segue em frente.
Depois de ser descoberto por uma gravadora, que resolve transformá-lo numa espécie de ídolo teen de um R&B pop sob o codinome Prince Rakeem — em um dos episódios mais maravilhosos da série, aliás, gravado quase todo em plano-sequência numa pegada bem documental — Bobby se frustra com toda a merda de “negócios são apenas negócios, lide com isso, ‘bora pro próximo da fila” e percebe que o segredo é trabalho em equipe. É todo mundo se ajudar. É formar um CLÃ.
E misturando um rap árido e duro sobre a realidade de pólvora e sangue das ruas com referências a gibis (Dennis, por exemplo, adora o Homem de Ferro) e filmes de artes marciais (em especial Shaolin and Wu Tang, de 1983, ao qual eles assistem infinitas vezes em fitas VHS emprestadas, decorando as falas e trazendo até sons de gritos de guerra e zunidos de espadas para as músicas), começam a surgir canções em que os mais diferentes cantores se revezam. E quando Bobby finalmente se dá conta dos ensinamentos do movimento surgido no Harlem conhecido como Five-Percent Nation, uma espécie de filosofia com base originária no islamismo que diz que os negros são os pais e mães da civilização e o verdadeiro “deus” no qual se deve acreditar é justamente o negro asiático original, então ele tem uma luz. “Wu-Tang Ain’t Nuttin ta Fuck Wit”, diz um dos irmãos mais novos de Dennis, na cadeira de rodas. O recado tá dado pros personagens e pro espectador.
An American Saga é uma história maravilhosa e bastante real, contemporânea, sobre um bando de moleques que resolvem lutar contra a porra do papel que a sociedade lhes impõe. Eles tinham tudo pra dar errado mas deram certo, do seu jeito, a seu tempo. Quando a fita com a música experimental Wu-Tang: 7th Chamber vai parar nos aparelhos de som das ruas depois de circular de maneira displicente pela mesa de uma executiva de gravadora desinteressada, parece um golpe de sorte. Parece apenas e tão somente uma sacada do destino. Mas longe, muito longe disso.
Porque dois dos melhores episódios da série, daqueles que mais emocionam, que fazem engasgar, são justamente os relacionados com MORTE. Quando morrem, um nas mãos de um rei do crime local e outro sob a violência policial depois de se impor contra os homens de farda (e o uso da metáfora da pomba, prestem atenção, é MARAVILHOSO), dois grandes amigos desta galera toda, a dor, a tristeza, a angústia, a raiva, tudo ali misturado, não é apenas por ter perdido um alguém querido. É por saber que aquele deitado no caixão poderia ser o mesmo que está chorando. Podia ser eles. E aquela senhora desesperada, sofrida, podia ser a mãe DELES. Ali os olhos se abrem e eles começam a se decidir que precisam fazer alguma coisa. Usar a raiva do mundo pra lutar contra a vida de um jeito diferente.
“2 de novembro era finados, eu parei em frente ao São Luís do outro lado / E durante uma meia hora olhei um por um e o que todas as senhoras tinham em comum / A roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura / Colocando flores sobre a sepultura / Podia ser a minha mãe, que loucura!”, canta o Mano Brown na letra de Fórmula Mágica da Paz, uma das faixas mais fortes dos Racionais MCs.
Pode ser Park Hill ou Stapleton. Mas também pode ser Capão Redondo.