Para combater a desinformação, ainda existe um LOOOOOOONGO caminho a seguir, tanto lá quanto cá, é bom que se diga.
Quando Umberto Eco disse, em 2015, que “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”, confesso que num primeiro momento me incomodei. Porque apesar de entender para onde o escritor e filósofo estava apontando com a sua frase, a generalização que ela permite colocaria num mesmo pacote também as muitas minorias oprimidas que conseguiram se encontrar, se fortalecer, se mobilizar e finalmente ter direito a (ou pelo menos, poder lutar para ter) uma voz que nunca antes foi tão ouvida. Meu medo era justamente que os imbecis que Eco critica usassem a sua própria frase para justificar o seu ponto de vista.
Mas nos últimos dois anos, nunca a frase de Eco fez tanto sentido. É lindo ver as portas que as redes sociais abriram, mas igualmente assustador ver que, em meio a uma crise de confiança no jornalismo, muitos destes imbecis cresceram no papel de porta-vozes de verdades absolutas. Aquelas que “alguém” está escondendo de você, aquelas que os jornais não contam, que os livros de história não mencionam ou distorcem, aquelas que só as mensagens do WhatsApp vindas de um lugar totalmente desconhecido e mencionando um cientista ou líder militar do qual ninguém nunca ouviu falar antes na vida são verdadeiras. Proliferaram publicações da “imprensa alternativa”, que existe só no Twitter ou no Facebook, que sabem mais segredos do que qualquer um — mas claramente também escondem uma significativa parcela de segredos para a sua existência enviesada.
É Terra plana, é kit gay, é antivacina, é nazismo de esquerda, é mamadeira de piroca, são os ETs reptlianos entre nós, são os maçons, os comunistas, os Illuminati. Jerry Fletcher, o personagem de Mel Gibson no filme Teoria da Conspiração, está mais vivo do que nunca. E certeza de que, se o filme de 1997 fosse ambientado duas décadas depois, o cara teria um canal no YouTube.
E por falar no YouTube, bom, parece que a plataforma de vídeos está de alguma forma querendo tomar uma medida para evitar a proliferação deste tipo de conteúdo. Na última semana, em seu blog oficial, o time anunciou que, da mesma forma que aconteceu há alguns anos com vídeos cujos títulos eram claros clickbaits (“você não vai acreditar no que acontece a seguir”), tomará uma série de precauções para diminuir a expansão de vídeos que, apesar de não chegarem a violar as políticas de comunidade da ferramenta, digamos que chegam bem próximos.
O que isso quer dizer, exatamente? O próprio YouTube explica: “conteúdo que possa desinformar os usuários de maneira prejudicial, tais como curas milagrosas para doenças graves, dizer que a Terra é plana, fazer afirmações claramente falsas sobre eventos históricos como o 11 de setembro”. Embora eles afirmem que isso vai afetar apenas 1% do que existe no YouTube atualmente (olha que tem chance de ser BEM mais...), a ideia é manter a “liberdade de expressão” sem perder a responsabilidade. Portanto, os vídeos estarão presentes no YouTube ainda, mas terão suas recomendações limitadas. É seguidor do canal, procurou claramente por isso na busca? Vai achar. Mas não importa quantos acessos ele tenha, não vai estar mais com tanto espaço na página principal ou mesmo como sugestão de próximos vídeos, sabe?
O crescimento dos canais de teorias da conspiração passou a ser um incômodo para as marcas que querem anunciar no YouTube. Sabe o Alex Jones, do InfoWars? Aquele sujeito que fez um vídeo dizendo que David Hogg, o jovem sobrevivente do massacre na Stoneman Douglas High School, em Parkland, Flórida, era na verdade um ator? Só porque ele se tornou um ativista a favor do controle de armas (o que, bom, seria bastante esperado, é preciso dizer)? Então. Este vídeo foi tão acessado que acabou indo parar na aba “Em Alta”, gerando aí uma corrida para a produção de outros vídeos semelhantes por outros criadores de conteúdo. O YouTube logo se mexeu, ficaram putos, deram strike no canal do Jones.
Só que a rede de canais ligada ao cara, vejam vocês, era regularmente monetizada, exibindo banners de Fox, Paramount, Nike, Acer e por aí vai. Claro que os anunciantes trataram de incluir estes canais em suas “listas negras”, não permitindo que a plataforma dos anúncios os vincule a estes conteúdos. Mas obviamente não bastou e o YouTube passou a ser cobrado para tomar uma atitude. Em março do ano passado, por exemplo, anunciaram que iriam começar a exibir, junto com os resultados de busca dos vídeos de teorias da conspiração, links para artigos na Wikipédia que ajudassem a desmontar estes papos.
Claro, a iniciativa pode parecer boa, mas tem alguns problemas, a começar pelo fato de que a Wikipédia também passou por alguns episódios nos quais sua confiança foi colocada em cheque — e terminando com o YouTube direcionando a conversa para fora de sua plataforma e em um site apenas de texto, quando poderia modificar seu algoritmo para direcionar o usuário para vídeos produzidos por criadores sérios e comprometidos a respeito do mesmo assunto, que existem aos montes. Seria um jeito de manter quem busca um vídeo dentro do ambiente de vídeo.
Os profissionais do YouTube que assinam a postagem do blog assumem que esta é apenas uma pequena mudança rumo a um processo muito maior, que combina machine learning (aka “máquinas aprendendo processos para que possam então conduzi-los sozinhas” ou então “se cuida, John Connor”) e o trabalho de uma equipe formada por pessoas reais. “Trabalhamos com uma equipe de analistas e especialistas de todos os cantos dos EUA para ajudar a treinar os sistemas automáticos que geram as recomendações”, explicam. Sim, a mudança começa primeiro por lá, como teste, para depois ir sendo implementada aos poucos em outros países.
A decisão é obviamente mais um dos muitos passos que o YouTube se viu obrigado a tomar nos últimos anos, ao ver o incômodo e a posterior debandada de potenciais anunciantes, que viam suas marcas sendo automaticamente veiculadas em vídeos de grande audiência mas com conteúdo controverso — de canais piratas que exibiam filmes/séries/desenhos completos até aqueles com enorme quantidade de palavrões, violência, referências a sexo ou drogas, enfim. As regras ficaram mais duras e determinados conteúdos passaram a perder visibilidade ou a possibilidade de monetização quase que automaticamente. Isso acabou tornando a vida de quem faz conteúdo de qualidade bastante complicada porque em alguns casos a linha é bastante fina. Mas enfim...
De resto, para quem está do lado de lá da tela, só nos resta dizer: desconfie sempre. De soluções milagrosas nunca antes divulgadas, de dicas fabulosas às quais apenas um grupo seleto de amigos do LedZappelin têm acesso, de mirabolantes teorias políticas ou científicas geniais que contradizem anos e anos de estudo de centenas de profissionais.
Busque outras fontes. Preferencialmente, fontes que não vivem envoltas em mistério, que dão a cara pra bater, assinadas por gente que existe DE VERDADE, com pontos de vista que não sejam exatamente os seus. Cruze informações. Apure. É complicado, eu sei. Jornalistas, aqueles reais, aqueles que exercem MESMO a profissão, fazem isso todos os dias. Mas é importante, num mundo como o de hoje, que seja mais crítico com o que você consome. É vital, até.
Ou então, muito provavelmente, você vai acabar sendo vítima dos imbecis que Umberto Eco menciona. Talvez até ecoando a mensagem deles. Ou talvez até — bate na madeira — se tornando um deles. Pensa nisso.