É sobre eu, você e o mundo que vamos deixar para as crianças que vão ver essa história na tela grande
Judy é uma coelhinha do interior que acha que qualquer um pode ser qualquer coisa – principalmente em Zootopia, cidade que tem isso justamente como mote. Tipo São Paulo, que também soa toda presunçosa com o seu “não sou conduzido, conduzo”.
É um lugar mágico, dominado por animais de diversas origens, climas e costumes que viviam uma utopia. Mas não uma perfeita, daquela dos livros teóricos. Era um mundo que dividia naturalmente os predadores e as caças.
O grande sonho de Judy é ser policial, um trabalho normalmente reservado aos grandes animais. Mas ela é persistente quando se trata dos seus sonhos e se inscreve na corporação, tem um treinamento difícil, mas finalmente ela é aprovada e destacada a trabalhar na cidade tão sonhada. Como guarda de trânsito, sim, mas consegue.
Ao chegar lá, porém, ela descobre que a realidade é bem diferente do que ela imaginava. Existe muito preconceito com os animais menores, como ela.
Pra ajudar, no meio do primeiro dia de trabalho, Judy conhece Nick, uma raposa trambiqueira que comete pequenos crimes e que gosta de se aproveitar dos outros para ganhar vantagem. E não preciso nem dizer o quanto coelhos não curtem raposas, né?
Na versão em português, Judy é dublada pela Mônica Iozzi (em inglês, é a Ginnifer Goodwin, de Once Upon a Time), que faz um trabalho MUITO legal e, aqui pro Brasil, se torna um dos acertos do filme. Já o Nick é dublado pelo Rodrigo Lombardi (Jason Bateman, no original), que acaba fazendo uma voz um pouco mais MACIA do que deveria, mas isso é detalhe — e, bom, não chega a surpreender.
Se no mundo real temos lugares como Chinatown ou a Liberdade, na cidade zoo temos a comunidade dos elefantes, dos ratos, dos animais árticos e por aí vai. Tudo pensando como se tivesse sido criado pelos próprios animais, e não pelo homem e, depois, adaptado para o uso dos animais — um ótimo jeito para apresentar Zootopia, a cidade, e ver com um pouco mais de atenção o trabalho de todos os animadores da Disney.
Só que qualquer cidade não é nada sem seus habitantes — e é a partir deles que a história se movimenta. A maior parte dos problemas de relacionamento em Zootopia começa porque os seus moradores levam ao pé da letra preconceitos MILENARES, da época que todos viviam no meio da selva. “Coelhos são fofinhos”, “raposas são FDPs”, “leões mandam na porra toda” e por aí vai. Um lado não se mistura com os outros – e a utopia na qual todo mundo pode viver acaba se tornando uma grande segregação.
Se você trocar elefantes, macacos, ratos e LEMMINGS por etnias, minorias, o lugar onde cada um nasceu, bom... O que você tem é, basicamente, o mundo real.
Quando falamos em animações assim (principalmente as da Pixar), há aquela história para a criançada e o subtexto para os adultos, pra todo mundo poder curtir o filme junto. Nesse filme, porém, é tudo uma coisa só. A grande mensagem, contra o preconceito, é clara para todo mundo — seja pra criança de de 8 anos que não tem muita noção do que é isso, seja pro adulto de 44 que já até passou da hora de ter esse tipo de coisa na cabeça.
O que parecia ser um enredo comum sobre “dois desconhecidos em busca de um mistério”, quase buddy cop movie, evolui para algo mais denso em que Judy, a heroína fofinha da Disney, mostra todo o seu preconceito, repetindo um discurso pronto e sem sentido. Ela — como a maioria dos habitantes da cidade — usa diferenças físicas e o “DNA” para justificar a segregação.
Piora: as atitudes da protagonista levam a uma grande polarização, separando as pessoas em dois grupos. Medos e preconceitos são usados para justificar medidas extremas, seja de qual lado for, tornando Zootopia extremamente real e atual. A grande diferença aqui é que Zootopia é realmente habitada por seres de diversas raças, espécies, origens e anatomias, por mais que tenham evoluído para se tornarem mais próximas... Enquanto nós, humanos, somos de uma única espécie.
Dá pra dizer que o filme funciona como uma metáfora sobre a tão cantada “the land of the free”: assim como a AMÉRICA, Zootopia seria o lugar onde todo mundo teria a liberdade de ser quem bem entender. Só que, na prática, não é bem assim, e na primeira oportunidade que se tem encarceram quem é diferente. (Não, ninguém chega propor a construção de um MURO pra isolar o local do resto do mundo, isso seria idiota até para personagens de desenho animado.)
É aí que a utopia do título, do filme da cidade, se encaixa: seja aquela real ou a da animação, é “um lugar que não existe”, como diz a própria tradução da expressão grega.
E se você acha tudo isso muito distante, veja seu Facebook. Repare que aqui no Brasil também estamos extremamente polarizados, justificando isolamento ou atitudes drásticas com base em ditas “diferenças” de quem tá do outro lado.
Zootopia acaba não sendo só mais uma animação da Disney, mas sim um filme necessário, que todas as crianças (e os pais, primos, irmãos, tios, gente que não conhece UMA criança...) precisam assistir. É a animação mais incrível de toda a história da Disney? Não é. Vai ter uma música chiclete que vai grudar na cabeça de todo mundo? Não — e eles até ZOAM esse fato. Mas é aquela que pode mais ajudar as nossas crianças a serem algo melhor do que nós, no futuro. E, quem sabe, também abra os olhos de quem não é tão mais criança assim.
Utopias nunca vão existir, mas o que Zootopia mostra que não podemos cruzar os braços e achar que, do jeito que tá, tá bom.