De solução barata DIY a álbuns de inéditas lançados recentemente, John Carpenter é tão foda atrás das câmeras quanto nas partituras
Era Fevereiro de 1964 e John Carpenter tinha acabado de completar 16 anos quando se tornou um dos 73 milhões de americanos a assistir aos Beatles se apresentar pela primeira vez no Ed Sullivan Show. A partir daquele evento catártico que escreveu a história da televisão, o rock ‘n’ roll lhe abriu todo um novo mundo.
Filho de um virtuoso violinista clássico e professor da conceituada Eastman School of Music, o jovem Carpenter cresceu cercado (e influenciado) por música. Seu pai havia lhe colocado na cabeça que ele deveria aprender a tocar violino, mas acontece que, segundo suas próprias palavras, “não tinha talento algum” e isso, aliado ao fato de andar na escola com uma caixa de violino o tornar alvo de bullying, fez com que ele migrasse para o piano e em seguida, para a guitarra – maravilhado pela apresentação dos Beatles e como forma de sobrevivência social – montando uma banda de rock que perdurou pelo ensino médio e por todo seu estudo na Western Kentucky University, onde tocou baixo e cantou no Kaleidoscope, mesmo nunca chegando a gravar absolutamente nada.
Dez anos se passaram, Paul, John, George e Ringo já haviam se separado e seu debute na direção, o sci-fi de baixíssimo orçamento Dark Star, estava prestes a ser lançado no festival Filmex, em Los Angeles, e precisava de uma trilha sonora.
Carpenter resolveu procurar um compositor e, depois de conversar com alguns, inclusive Walter Carlos, pioneiro no uso da música eletrônica no cinema e responsável pela trilha de Laranja Mecânica, sem confiança em nenhum e na busca de uma nova linguagem sonora compatível com sua visão, decidiu que a solução mais rápida e barata para seu problema era ele mesmo conceber a trilha, ao melhor estilo DIY.
O bigodudo pegou seu sintetizador EMC VCS3 e sua guitarra, aproveitou toda sua experiência musical adquirida ao longo dos anos, buscou inspiração no rock, música clássica, numa mistura de Bernard Hermann, Kraftwerk e Mike Oldfield, e mandou ver na trilha de Dark Star.
Daí para frente, grande parte de seus longas tiveram sua assinatura, não só na direção, como na trilha sonora, sendo reconhecido como um dos primeiros a adotar o uso de sintetizadores nos filmes, além de criar uma espécie de marca registrada que acabou influenciando músicos com backgrounds muito distintos, do heavy metal à música experimental, e toda uma cena musical contemporânea – chamada de synthwave ou retrowave – construída a partir de meados dos anos 2000 às custas de um movimento throwback dos anos 80.
Taí, por exemplo, a trilha sonora de Stranger Things, que é John Carpenter cuspida e escarrada, que não me deixa mentir.
Talvez a sua mais icônica música-tema concebida esteja em Halloween – A Noite do Terror, de 1978. A canção minimalista que ao ouvir faz a máscara branca sem expressão de Michael Myers aparecer automaticamente em sua cabeça, surgiu durante um simples exercício praticando bongôs, ensinado pelo seu pai quando era criança. A trilha sonora atmosférica, que levou três dias para ser composta, definitivamente cola diretamente no sucesso do filme e toda sua construção, consistindo apenas em uma melodia de piano tocada em 10/8 e uma complexa métrica de 5/4.
Carpenter continuou trabalhando atrás das câmeras e das partituras em seus filmes seguintes, com destaque para A Bruma Assassina – considerada pelo próprio como seu melhor trabalho, Fuga de Nova York e Príncipe das Trevas, em parceria com o engenheiro de som Alan Howarth, e o clássico da Sessão da Tarde, Os Aventureiros do Bairro Proibido, onde misturava boas doses de rock com sintetizadores, evitando completamente os clichês de sonoridade chinesa.
O peso de sua assinatura musical única e inconfundível era tanto que, em O Enigma de Outro Mundo, onde a Universal não deixou que ele compusesse a trilha, assinada por ninguém menos que Ennio Morricone, o maestro italiano seguiu uma direção minimalista na composição ao melhor estilo Carpenter, como prova o arrepiante e repetitivo tema principal do “terror alienígena definitivo”.
Entre altos e baixos, a carreira de Carpenter seguiu até 2001, quando a bomba Fantasmas de Marte chegou aos cinemas. Originalmente uma nova sequência de Fuga de Nova York, que se chamaria Escape from Mars e traria mais uma vez Kurt Russell vivendo Snake Plissken — rejeitada pelo estúdio após a pífia performance de Fuga de Los Angeles na bilheteria — a produção de um grande estúdio gastou 28 milhões de dólares, arrecadou apenas 16 milhões, foi ENXOVALHADA por crítica e público e acabou queimando Carpenter em Hollywood, enterrando sua outrora brilhante carreira. Pelo menos a trilha sonora é das boas, feita em colaboração com um time peso-pesado de guitarristas do naipe de Steve Vai e Robin Finck, ex-Guns ‘n’ Roses e Nine Inch Nails.
Em 2015, aos 67 anos, de aposentadoria forçada, e recuperando-se de uma complicada cirurgia nos olhos, nosso João Carpinteiro, tentando se livrar do tédio, entre uma sessão de videogame e outra, começou a esboçar umas faixas em seu estúdio caseiro digital, que sua mulher, Adrienne Barbeau, a atriz que interpretou a radialista Stevie Wayne em A Bruma Assassina, lhe dera de presente, mostrando-as para o filho, Cody (tecladista do grupo de rock progressivo Ludrium) e o afilhado, Daniel Davies (filho de Dave Davies, guitarrista do The Kinks). Só de brincadeira.
Quando algumas dessas faixas foram parar na gravadora independente Sacred Bones Records, que já lançaram obras do Moon Duo, Zola Jesus, Crystal Stilts e vejam só, David Lynch, nasceu o álbum Lost Themes, onde Carpenter praticamente criou a trilha sonora de um filme, SEM um filme e, o melhor ainda, com zero pretensão mercadológica e comercial, apenas pra colocar para fora todo seu trabalho com composição em total liberdade, resultando em faixas propositalmente datadas como se lançadas há três décadas e com vida própria, não apenas um complemento, mostrando o quanto o sujeito manja do riscado.
Desde que partiu do pretexto do “se quiser algo direito, faça você mesmo”, Carpenter foi capaz de criar um estilo, reverenciado até hoje e que influenciou gerações, construindo uma forma única de apresentar a trilha sonora em seus filmes, bem diferente de músicas jogadas aqui e ali de forma aleatória, clichê ou modinha, como tantos blockbusters fazem hoje em dia.