Marvel, Ancião e whitewashing: uma triste questão de interesses | JUDAO.com.br

Você achou que a polêmica sobre o mentor do Doutor Estranho ia ser a respeito de ele ser vivido por uma mulher? Bom, parece que a coisa é bem mais complicada do que isso – e merece ser discutida

Quando a Marvel anunciou que o mentor ancestral do Doutor Estranho, o Ancião, seria na verdade A ANCIÃ e interpretada por Tilda Swinton, juro que achei que fosse ter mais chiadeira, tipo o Tocha Humana loiro e caucasiano sendo “transformado” em um homem negro no Quarteto Fantástico. “Ah, mas ele era homem nos quadrinhos, ficar mudando, que saco, como assim, mimimi”, aquela pataquada de sempre.

Eu, particularmente, adorei. Tilda é uma atriz incrível e, sendo franco, o fato do Ancião ser homem ou mulher não muda em rigorosamente nada o que o personagem significa e seu papel na formação do Doutor Estranho — até porque, em inglês, não há distinção de gênero. The Ancient One vale pra qualquer coisa. Desta forma, por que diabos não equilibrar mais o jogo e colocar outra na mulher na equação, que de preferência não seja o interesse romântico ou a dama em perigo? Pra mim, tá lindo. <3

O caso é que as questões acerca da escalação do Ancião não estavam encerradas. Porque a questão de gênero saiu de cena e entrou a discussão étnica — uma discussão justa, muito longe de mimimi. O assunto virou, ao lado da Scarlett Johansson como a protagonista Major da versão Hollywood do anime Ghost in the Shell, o whitewashing.

“O Ancião no filme do Doutor Estranho não precisa parecer o Lo Pan em Os Aventureiros do Bairro Proibido, mas existem maneira criativas de interpretar o personagem sem apagar uma pessoa asiática de uma narrativa inerentemente asiática”, diz Rebecca Sun, em artigo para o THR assinado em conjunto com Graeme McMillan.

Ghost in the Shell

Em entrevista ao THR, a própria Tilda Swinton deu uma resposta enigmática a respeito do assunto. “Bom, este não é um personagem asiático – é isso que preciso dizer para vocês a respeito. Nunca fui chamada para fazer um personagem asiático. Vocês terão que esperar para ver”. Não demorou muito até que a resposta viesse – e da boca da própria Marvel, vejam só. Demorou exatos cinco dias.

Ao Mashable, a companhia enviou um comunicado, assinado por um porta-voz oficial, no qual admite saber que o assunto é delicado, mas reforçando que tem um histórico de diversidade em seus filmes, deixando inclusive pra lá alguns estereótipos na hora de trazer o MCU à vida. “O Ancião é, na verdade, um título, não é um nome carregado exclusivamente por um personagem, mas sim uma espécie de ‘cargo’ passado de geração para geração. E esta encarnação em particular é celta. Estamos muito orgulhosos de ter a talentosíssima Tilda Swinton vivendo este personagem complexo e único”.

Tá legal, Marvel. Não vamos falar sobre o tal do passado de diversidade. Mas o que você tá dizendo pra gente é que o Ancião é tipo uma versão sobrenatural do Fantasma ou do Pantera Negra, certo? Legal. Mas... quando foi que isso surgiu mesmo? Porque, olha só, isso não existe no passado do personagem nas HQs, né? Não faz parte do CÂNONE oficial. E nem sou eu que tô falando, é a própria enciclopédia do seu site, querida Marvel.

“Ué, mas por que vocês tão falando disso se são tudo ‘nossa esqueça os quadrinhos‘?” Bom, sim, filme é filme, gibi é gibi, publicos diferentes, universos diferentes. Mas não lhes parece, hum, talvez um tanto conveniente demais que esta explicação tenha surgido exatamente agora? Quando todo este questionamento começou?

Ancient One

Numa entrevista ao Double Toasted, um dos roteiristas do filme do Doutor Estranho, C. Robert Cargill, soltou o verbo sobre o assunto, falando um tantinho de bosta, pra começar, ao dizer que os “social justice warriors iam reclamar de qualquer jeito”. Tenho uma preguiça gigantesca de quem usa este termo desta maneira pejorativa e BABACA, mas vamos seguir em frente.

“Este era o Kobayashi Maru da Marvel”, afirmou ele, em referência ao clássico cenário de treinamento dos cadetes em Star Trek no qual simplesmente não existia uma resposta certa. “Não existe outro personagem da Marvel que seja uma mina terrestre cultural tão grande. Tenho lido tudo que as pessoas estão dizendo e tem sido bem frustrante que a maior parte delas não tenha sequer pensado ‘por que eles fizeram isso?’. Bom, eu posso dizer. Cada decisão que envolve o Ancião é ruim e vem com um caminho no qual você está errado de qualquer forma”.

Cargill recorda ainda que, sendo uma espécie de monge tibetano, o Ancião é um estereótipo racista que vem de uma região do mundo com um histórico político complicadíssimo. O governo chinês não reconhece a legitimidade do Dalai Lama como líder do território e, até hoje, existe questionamento do Tibete sobre se a incorporação do território à China é legítima de acordo com o direito internacional. Não são raros os casos de artistas que foram proibidos de entrar na China por apoiarem abertamente o movimento Free Tibet, por exemplo. “Se fizéssemos o personagem ser tibetano de fato, corríamos o risco de simplesmente perder 1 bilhão de pessoas, correndo o risco de que o governo chinês decidisse não exibir o filme no país porque nos tornamos ‘políticos’ de alguma forma”, defende Cargill. Isso sem contar que, se escalassem um chinês como tibetano, outros problemas surgiriam. Ou japonesa, ou qualquer asiática. De fato, um problema quase sem saída.

Homem de Ferro 3

Em Star Trek, pelo menos, Kobayashi Maru servia pra aprender a falhar. É uma boa hora pra Marvel aprender a errar porque, infelizmente, Cargill está certo. Com um personagem tibetano, homem ou mulher, existe a chance de que o gigantesco mercado chinês fechasse suas portas — só como exemplo: Vingadores: Era de Ultron faturou por lá mais de US$240 Milhões. Só como comparação, o valor arrecadado no Brasil pelo mesmo filme foi de quase US$48 Milhões. É uma diferença BASTANTE considerável.

A China é tão importante nessas conversas que, vale lembrar, a versão de Homem de Ferro 3 lançada por lá tinha cenas estendidas do Dr. Wu (Wang Xueqi) e Wu Jiaqi (Fan Bingbing) — não por acaso, personagens chineses.

Ao mesmo tempo, fizeram as contas e comprovaram que, internacionalmente pelo menos, quanto mais diverso o elenco de um filme americano é, mais dinheiro ele faz. Pense nos estádios de futebol de hoje em dia, as chamadas ARENAS. Com ingressos mais caros, mesmo que não lote todos os lugares (ESPECIALMENTE os mais caros), o resultado final é ótimo. Mas com ingressos mais baratos, o estádio poderia ficar lotado e o resultado seria equivalente.

Claro, trata-se de teoria. E também de interesses: nem a Marvel, nem a Disney, nem qualquer outra grande corporação internacional tem qualquer outra coisa em mente que não os lucros. Ninguém, nesse nível, investe por amor à arte. É obviamente mais fácil garantir que a China não vá reclamar do que for feito a representar um personagem de maneira que faça mais sentido, especialmente no caso de asiáticos que... Bom, tirando o Glenn de The Walking Dead, consegue se lembrar rapidinho de algum outro personagem principal da cultura pop mainstream que seja asiático?

E aí voltamos ao problema original, o whitewashing. Pra ficar só na Marvel, Chloe Bennet. A Daisy Johnson de Agents of SHIELD, na verdade, se chama Chloe Wang, de ascendência chinesa. Outro dia ela explicou a razão da mudança (Bennet é o primeiro nome do pai): depois de nunca conseguir papel nenhum como Chloe Wang, “no primeiro teste que fiz depois de trocar o nome, me escalaram”, contou. “É só um pequeno fragmento de como as coisas funcionam em Hollywood”. O papel era de Hailey, na série Nashville. Alguns meses depois, foi escalada pra série da Marvel.

Hollywood é um homem, branco, jovem e heterossexual e, como tal, esperneia na esperança de que as coisas sejam como sempre foram. Por sorte, o mundo está mudando, independente da vontade dessa galera. O único problema é que são eles que controlam o que você vê e ganham o que você gasta. Isso, por enquanto, tá muito longe de mudar. E é uma pena.