A guerra sem pretensões de Sam Mendes | JUDAO.com.br

Um filme tecnicamente impecável e totalmente pé no chão. Talvez até demais.

1917 tinha aparecido há um tempo atrás como uma ideia curiosa. Sam Mendes (que ganhou um Oscar por dirigir seu primeiro longa-metragem em 1999, um tal Beleza Americana) estaria repetindo a parceria com o lendário fotógrafo Roger Deakins (que ganhou um Oscar TARDE DEMAIS) para fazer um filme de Primeira Guerra Mundial totalmente em plano-sequência. O famosinho “sem cortes”. E aí ninguém mais lembrou do filme. Ele apareceu nos cinemas meio sem grande fanfarra, nenhuma campanha agressiva de marketing. E começou a engolir prêmio atrás de prêmio, juntando um monte de indicações aqui e ali, chamando a atenção de todo mundo que já estava apaixonado por filmes com “pretensões maiores”. E realmente, o que 1917 pensa de 1917 é seu trunfo.

No meio das trincheiras num 8 de abril abençoadamente nublado, em 1917, dois soldados, interpretados por Dean-Charles Chapman e George MacKay, recebem uma missão direta do general Colin Firt: atravessar uma zona de guerra surpreendentemente variada e entregar uma mensagem. A retirada das forças inimigas é um truque que enganou um coronel na tentação de “mais uma vitória”. Se os dois falharem, morrem 1.600 soldados numa investida tola e inútil, incluindo o irmão de um deles.

É dada a largada para uma jornada de muita sujeira, sangue, corpos e até mesmo surpresas, embora essas últimas sejam as menos impressionantes. 1917 tem a vantagem de ser tremendamente claro em seu propósito, tanto nos personagens como em seu próprio Cinema. Isto é um filme de guerra completamente “pé no chão”. Não há desenvolvimento de personagem que vá além de algumas frases ou fotos, não há exploração da natureza da guerra, não há comentário a respeito da razão pela qual esta gente decide se matar. O que existe são as lentes afiadíssimas de Deakins e o próximo passo dos heróis.

E a primeira coisa a se notar é que o “truque” dá muito certo. 1917 é um filme “de guerra”, mas que recicla muito bem o vocabulário cinematográfico de filmes de suspense e até de horror. Da claustrofobia de bases subterrâneas ao drama tétrico de olhar a morte nos olhos, você fica com o filme não importa o que aconteça. A ideia de fazer tudo em um só plano-sequência se torna a ALMA da produção, em especial por ser uma história que ocorre em tempo real. É um dos filmes mais imersivos já feitos sobre o tema, e ter quase nada de novo a dizer sobre o tema incomoda menos do que se pode pensar.

Há muito pouco cinema que observa a guerra. “Colocar o espectador na ação” é parte de um elemento glorificante do próprio ato da guerra. Os fatos, por mais horrorosos e fatuais que possam ser, ainda são reproduzidos como entretenimento. A adrenalina de momentos de tensão, muito bem encenados e capturados, joga pela janela qualquer chance que o público teria de “ponderar” sobre o que estão vendo. A ação normalmente anestesia o espectador e torna mais fácil identificar um lado como “mocinho” e outro lado como “bandido”.

Isso não é regra de TODO filme de ação, mas é como NORMALMENTE um filme de guerra é criado. Afinal, o cinema de guerra é parte de uma máquina de propaganda e ninguém nunca tentou negar isso. É claro, ainda temos filmes como Nascido Para Matar, de Stanley Kubrick, que subverte tanto da linguagem e da temática desse Cinema para afastar a cortina e mostrar o que realmente faz a guerra. Mas mesmo filmes como esse ainda são capazes de encontrar um público que vá enxergar, mesmo na crítica clara de conceitos como militarismo ou guerra, uma glorificação de valores que estavam ali muito antes do cinema. Às vezes, o problema é de outra natureza.

1917 não está interessado em dialogar SOBRE a guerra — e tanto seu roteiro quanto sua edição e as decisões de fotografia refletem isso. E por colocar-se como um filme nesses termos, ganha muito no quanto não é pretensioso. No quanto é honesto, cru e direto ao ponto. Centrar a jornada nos ombros de uns poucos personagens e colocar tudo através da visão deles ajuda a fazer isso. Como são personagens sem passado, com algumas nuances de personalidade mas nenhuma visão pessoal filosófica sobre o que estão fazendo ali, eles funcionam mais simplesmente como “colegas numa jornada de tensão e suspense” do que como personagens de fato.

Claro, a qualidade com a qual o filme atinge seus objetivos é o que o eleva. Se suas escolhas falhassem, se os momentos de quietude fossem “chatos”, se a ação fosse cômica ao invés de enervante, 1917 seria completamente esquecido. Mas Sam Mendes não é qualquer diretor. E céus, Roger Deakins não é qualquer cinematógrafo.

A câmera clara, invisível e cirúrgica de Mendes se mistura com a lente invasiva, humana e pessoal de Deakins para fazer com que esses soldados, seus olhos e suas lutas fiquem com você. O casting, que decidiu relegar mais um desfile de”“britânicos famosos num filme britânico” para papéis completamente coadjuvantes consegue tirar o estrelismo das pontas e usar o talento para momentos cirúrgicos, em especial com Richard Madden, que ganha o momento mais forte do filme, sem precisar desembocar para o melodrama.

Um roteiro simples, talvez demais, mas uma produção, planejamento e aspecto técnico bastante robustos são capazes de criar menos um filme e mais uma “experiência”, e existe uma nota de pessoalidade nisso. Mendes baseou a ideia nas histórias que ouviu de seu avô, Alfred Mendes, que lutou na Primeira Guerra e chegou a receber medalhas por bravura. E a experiência que é ver um filme imersivo desse entendendo que pessoas da sua família passaram por situações assim é algo com o qual poucos brasileiros podem se identificar. Talvez daí venham outras partes do sucesso e da proximidade que esses filmes tem com o público anglófono.

A guerra ainda é o “mal necessário” em 1917, mas também é um mal muito próximo e muito terrível. E se essa proximidade servir para alguma coisa, que sirva para lembrar, sim, do monte de gente de inúmeros países, culturas e línguas que perdeu a vida muitas vezes sem saber o porquê. Que possamos desviar um pouco do “entretenimento” e lembrar que a realidade pode ser feia, suja, e cheia de arames farpados.