20.000 Dias na Terra: isto não é uma cinebiografia | JUDAO.com.br

E sim um exercício criativo que permite mergulhar na obra (e no ego) de Nick Cave

Uma história recorrente no filme 20.000 Dias na Terra é uma memória de Nick Cave de um show de Nina Simone, no qual, segundo sua lembrança, a lendária jazzista já idosa chega ao palco com dificuldade. Lenta, demora a se acomodar em seu assento, mas no momento em que encara a plateia pela primeira vez, sua expressão é de puro ódio. Na interpretação de Cave sobre o acontecido, a vida de um artista é um intervalo em aberto no qual o músico apenas aguarda o momento de subir ao palco e transformar-se.

O australiano Nick Cave não é um artista tradicional, antes de tudo. Assumidamente um músico que iniciou sua carreira de forma plástica, mimetizando o visual e postura de seus grandes ídolos, como Elvis, descobriu o punk no meio do caminho e virou uma espécie de crooner visualmente decadente – por escolha estética, claro. A escrita o chamou a encontrar uma voz que valesse a pena ser ouvida. Se suas motivações e arte não são convencionais, também não o seria um filme que fala de sua vida, ou melhor, da motivação por trás de sua arte. E é aqui que as coisas ficam interessantes.

Ignorando o tipo de documentário básico sobre uma figura pública, um gênero que costuma investigar a fundo momentos traumáticos, boas lembranças e outros temas que se encaixam entre a homenagem ao artista e a coluna de fofoca, Nick se nega a abrir demais sua vida pessoal. Em determinada cena, quando perguntado em consulta com seu terapeuta qual o grande medo que lhe ocupa a mente, não fala sobre a possibilidade de morte da mulher ou dos filhos: em seu lugar, diz ter medo de perder a memória. Para Nick, a memória é o que amarra os acontecimentos de sua vida, a interpretação de episódios, a recriação de lembranças. Tudo que habita sua cabeça é material de criação.

NickCave_01O simples ato de assistir TV e tomar conhecimento da existência de Miley Cyrus pode se eternizar em seu subconsciente e emergir em formato de música (como já aconteceu em Higgs Boson Blues). Retorcer a lembrança e colocar sua personagem em diferentes situações, reinterpretar locais da infância e acrescentar a eles possibilidades, dar novos sentidos a acontecimentos fictícios e recortá-los misturando fragmentos de verdade... Tudo isso é memória e seu medo de não poder acessá-la se justifica por ser o medo de esvaziar seu repertório pessoal e não poder transformá-lo em música.

É assim, meio sem querer, que os diretores/roteiristas Iain Forsyth e Jane Pollard entregam um resultado muito diferente do usual no campo dos documentários de música. Supostamente retratando o dia número 20.000 de Nick na Terra, eles não pedem a entes queridos que descrevam sua personalidade ou entrevistam amigos músicos para saber como Cave se inventa a cada dia como artista. É no processo geral que o incita a escrever que mora o centro do filme.

Muito diferente de Montage of Heck ou Amy, onde a figura trágica de seus protagonistas se sobrepõe aos discos que criaram em vida, o resultado aqui apresentado se move ao redor dos interesses do protagonista e não sobre sua figura, seja ela qual for: o humano, o compositor, o homem de família. Qualquer uma dessas observações não tem importância alguma diante da música em si. E por mais instigante que possa parecer ver o australiano vez ou outra falando de memórias específicas, tudo é reduzido a detalhe quando surgem cenas do músico se apresentando.

Se por se dar a oportunidade em fazer uma seleção do que acredita interessante em sua personalidade ganhamos um mergulho no ego de Cave, pense no quão interessante seria descobrir o que REALMENTE move seu artista favorito. Um vislumbre disso ganhou corpo em Chronicles, autobiografia de Bob Dylan. Muito criticada por passagens recheadas de licenças poéticas e histórias aparentemente reais que ganhavam contornos lúdicos, sua intenção claramente era tirar os pormenores de sua vida e ater-se a memórias que o motivaram a criar canções. O efeito final de sua obra e o processo criativo que o cerca são o que de mais valoroso Dylan (e qualquer artista) tem a dizer.

Se o método que leva Nina Simone a transformar-se em outra pessoa no palco, uma espécie de força da natureza que esquece momentaneamente quem é e assume uma personagem que possa se relacionar com o público no palco, é o que cria a aura por detrás de um artista, não seria melhor manter uma distância segura de nossos ídolos ao ouvir suas canções? Nick assim também o defende ao se negar em assumir o estereótipo de rockstar e querer se provar apenas um homem comum.

Evidente que a vida e as experiências de um artista impactam seu processo criativo e os demônios que enfrentou Nick durante sua vida são parte de seus produtos, mas querer desvendar minúcias de sua vida atrás de pistas que desmistifiquem o compositor delas tiram, sim, um pouco da graça em ouvir suas canções.

O fato é que, por mais que um diretor se debruce por horas a fio sobre filmagens e entrevistas, uma obra ficcional tem poucas chances de se aproximar de experiências reais. E se no fim de 20.000 Dias isso parece claro, que venham mais filmes explorando exercícios criativos como este e menos documentários analisando o ser humano por trás da obra.