Império de Diamante, obra brasileira de fantasia inspirada em culturas e mitologia da África, pretende se desdobrar em games, jogos de RPG e outros contos espalhados em coletâneas diversas
Sabemos, por experiência própria, que colocar numa mesma frase “império” e “diamante” dentro de um texto em um site de cultura pop pode desencadear uma terrível onda de mimimi. Aos noveleiros enrustidos, muita calma. Nada de Comendador aqui. Império de Diamante é um dos mais recentes lançamentos literários da Editora Draco, escrito pelo game designer brasileiro João Marcelo Beraldo. A versão eBook do livro foi lançada no fim de Janeiro, enquanto a versão impressa está prometida para chegar às livarias nos próximos meses.
Um dos grandes diferenciais da trama é a sua ambientação, na real, por se tratar de um livro de fantasia que não leva o papo para as inspirações nórdicas de elfos e anões, conforme manda a tradição tolkieniana. O texto de Beraldo é inspirado nos aspectos mitológicos do norte do continente africano, mas completamente ambientado em um mundo próprio, no continente de Myambe. “Imagine que um guerreiro tribal se tornasse imortal e, ao longo dos séculos, através de tentativa e erro, conquistasse todo o norte da África e parte do Oriente Médio”, revela Beraldo, em papo exclusivo com o JUDÃO. “Imagine que ele fosse cultuado como um deus-vivo, e que todas as outras religiões fossem tratadas como heresia. Agora imagine que, inesperadamente, o deus-vivo fosse mortalmente ferido em uma batalha”.
Pra ele, ficar preso nas versões da Idade Média da Europa Ocidental é um desperdício para um bom criador. “A história humana é complexa, cheia de particularidades, de ramificações e conexões. Entender um pouquinho disso ajuda a criar mundos e tramas críveis. E a história humana é gigantesca! Por que não na África, na Índia, no próprio Brasil colonial?”, aponta.
O livro, o primeiro de uma série batizada de Reinos Eternos, conta a história 20 anos após a última das conquistas do Império de Diamante. Desde então ninguém mais viu o Imperador. Aos poucos seu clero abandona as províncias conquistadas e retorna à capital. “Coincidentemente ou não, ao mesmo tempo uma seca começa a assolar o Império. A história é narrada pelos olhos de quatro personagens: um mercenário veterano que retorna à Myambe após um auto-exílio de 20 anos, um jovem sacerdote do deus-vivo capaz de compreender e falar qualquer língua conhecida, o general de uma província abandonada pelo imperador, e um guerreiro sagrado de uma religião perseguida e quase destruída pelo Império”, conta o escritor.
Cada livro da série é uma história independente passada em um canto diferente deste mundo – e o que liga as histórias é um dos personagens, no caso o mercenário que deixou Myambe por 20 anos para viajar o mundo. E detalhe: o segundo livro, Último Refúgio, que se passa em uma ilha inspirada na Índia Colonial, já está com lançamento planejado para 2016.
Beraldo, sem frescura, parece ter inspirações tão ambiciosas quanto as do próprio imperador de seu livro. Além de já pensar nele como a abertura de uma franquia literária, Império de Diamante traz no pacote uma série de expansões preparadas. “São todas peças independentes de uma grande história. Experimentar todos eles dará uma visão ainda maior”. O primeiro produto relacionado é um game online, gratuito, que se chama Necromante de Abechét, um jogo de investigação. “O jogo usa quadros do século 19 como cenário e personagens na investigação da morte do herdeiro de uma das províncias do Império. Esta história é mencionada brevemente no livro, onde o Necromante, o protagonista do jogo, aparece como personagem secundário”, explica.
Mais adiante será lançado o conto O Último Oráculo de Melkat, que conta do ponto de vista de outro governador de província o que aconteceu quando a última das mulheres que falam com espíritos foi capturada pelo Império. A história se passa em paralelo com o início do livro, onde o último oráculo aparece brevemente. Por fim, mais para o meio do ano, sairá o livro eletrônico Aventuras Eternas, trazendo um sistema de RPG próprio e com aventuras no Império de Diamante. “A ideia é dar nas mãos dos leitores a chance de criar suas próprias histórias. O sistema é feito para ser simples, mas completo, voltado para inspirar narrativa e imaginação ao invés de utilizar matemática pesada e depender demais da sorte dos dados”.
Fora isso há planos para mais projetos, entre eles um segundo jogo que conta sobre o período em que os mercenários que protagonizam parte da história servem como caçadores de recompensas no início do livro, e um terceiro que junta o trabalho do jovem sacerdote em editar a história do Império com a própria lenda do deus-vivo.
Nascido no Rio de Janeiro mas hoje “cidadão do mundo”, como ele mesmo define, João acredita que sua experiência profissional pode ter ajudado bastante no momento de pensar de maneira mais ampla e menos presa aos limites de uma página. “Sou game designer profissional, o que na prática significa que meu trabalho é criar jogos, do conceito original até a documentação que indicará à programadores e artistas o que precisa ser feito no jogo, à criação de conteúdo como personagens, histórias, fases, itens, etc”, detalha ele, que já trabalhou em jogos como Shiftlings, Gametracers, Mistério dos Sonhos, Marble Drop, o MMORPG Taikodom e o RPG Heroes’ Tears, da editora americana Knight Errant, entre outros. “Aprender a contar histórias em outros formatos ajuda a entender como cada mídia funciona. O jeito de se contar uma história em um jogo online é diferente de um jogo off-line, que é diferente de um livro, de um filme...”.
O escritor revela que aprendeu também a expandir um dos elementos mais importantes de toda narrativa: a construção de mundos. “Todo mundo precisa de uma base sólida onde ser construída, mas nem tudo precisa ser descrito em um livro. Em um jogo, essa base sólida, que pode significar dezenas ou centenas de páginas de texto e referências, serve para que a própria equipe (programadores e artistas em especial) entenda melhor como funciona o jogo. A equipe traduz essas informações em som, imagem e experiência de jogo”. Foi com esta base em mãos que ele decidiu o que seria contado no livro e o que se tornaria material para os jogos relacionados.
“Na literatura, é comum encontrar autores amadores fazendo infodump, aqueles blocos de texto explicativos demais”, confessa, de maneira discreta, sobre os colegas de profissão. “Trabalhar com jogos me ensinou a dissolver essas informações de outras formas, apresentando-as ao leitor (ou ao jogador) através da própria experiência vivenciada”.