Barrados no Shopping: quando ser nerd ainda não era cool | JUDAO.com.br

Ou: quando Jay & Silent Bob eram dois nerds brasileiros pés-rapados. Ou quase isso.

O ano era 1995. Exatos 20 anos atrás. Duas décadas, putz. Os mais jovens talvez nem tenham a noção exata de como isso era, mas aquele era um mundo sem esta verdadeira orgia de filmes baseados em HQs nos cinemas. Ainda faltavam três longos anos para o Blade ganhar as telonas e agir, ainda que involuntariamente, como o pontapé inicial que resultaria no cenário cinematográfico Marvel que a gente vê hoje.

Se aquele era um mundo sem gibis adaptados para os cinemas, também era um mundo sem qualquer esperança de ver um fã de quadrinhos devidamente retratado num filme. Sheldon Cooper e seus parceiros, pffff, nem sonhavam em nascer.

Mas era também um mundo no qual não era a coisa mais legal do mundo sair por aí dizendo que é nerd, fã de gibis, estas paradas aí. O Homem-Aranha era apenas uma vaga lembrança dos mais velhos, os X-Men não eram ninguém, o Homem de Ferro era um grande ponto de interrogação. E ser nerd, cara, não era fácil. Conseguir comprar gibis, camisetas, bonecos e outras coisinhas, gente, era uma missão (quase) impossível. Não existiam todas estas lojas aí. E conseguir informação a respeito, putz, como fazê-lo em uma época em que a internet ainda estava engatinhando? Sites gringos eram raros, brasileiros ainda estavam engatinhando. JUDÃO não existia, A-Arca também não... Existia a tradicional revista Wizard – mas que tinha que ser importada, né?

O ano era 1995. Foi quando o Kevin Smith lançou seu segundo filme, Barrados no Shopping ou, se preferir, Mallrats. E foi quando eu e o camarada Paulo Martini nos tornamos Jay e Silent Bob, nos primórdios da internet nerd BR.

Um ano depois de sua elogiada estreia independente, O Balconista, Smith ganhou o apoio (e o valioso orçamento) de um estúdio pra pirar e ousar ainda mais. Mais uma vez baseado em suas próprias experiências pessoais e em seus amigos excêntricos, ele criou uma espécie de prequência d’O Balconista, com todas as referências possíveis entre personagens. O tema de Barrados no Shopping, novamente, era o amadurecimento – que permearia boa parte da obra do cineasta. Nascia o chamado Universo View Askew (batizado em homenagem à produtora de Smith) que, a exemplo do que rola hoje no mundo cinematográfico da Marvel, conectava as histórias de todos os filmes de Kevin Smith, tendo Nova Jersey e os papos sobre gibis, sobre Star Wars e a porra toda como pano de fundo.

Aqui no Brasil, um site de humor começava a se tornar sensação entre aqueles sujeitos chamados de internautas, que faziam buscas no Cadê e no Altavista e usavam o Netscape como navegador. Atendendo pelo nome de PutaQuePariu.com (nem adianta tentar acessar, o domínio foi perdido e, da última vez que checamos, foi parar nas mãos de um site pornô – boa sorte!) e pelo apelido carinhoso de PQP, criação do mesmo Fábio Yabu dos Combo Rangers e trazendo o criador omelético Marcelo Forlani no time, ele começava a despontar pelo ladinho mais nerd da coisa. Assim que este que vos escreve e seu eterno parceiro Martini, o Paulo, entraram na iniciativa, passamos a escrever bastante sobre cinema, sobre RPG e, obviamente, sobre HQs. A semente dos sites nerds de hoje estava plantada.

Uma das graças da PQP é que não usávamos nossos nomes verdadeiros e tampouco nossas próprias imagens. Eu adotei a alcunha de El Cid (figura histórica espanhola que batizou também um personagem de RPG com o qual eu jogava) e Paulo virou o Fanboy, dã, por motivos óbvios.

Eu e Paulo penamos pra encontrar personagens/atores que pudessem ser nossos avatares – Yabu, tirando onda, era o George Clooney; e o Forlani, claro, tornou-se o David de Estranhos no Paraíso (com quem ele é efetivamente BEM parecido). Mas e a gente? Precisava ser uma dupla, porque boa parte de nossos textos eram a quatro mãos. Batman e Robin? O Gordo e o Magro? Tico e Teco? Não, nada disso.

A resposta veio quando descobrimos um filme chamado Barrados no Shopping.

Na trama, os amigos Brodie (Jason Lee) e TS (Jeremy London) levam pés na bunda de suas respectivas namoradas e, pra passar o tempo e reclamar da vida, vão dar um rolê no shopping local. Neste verdadeiro microcosmo, eles enfrentam os futuros sogros, descobrem os novos rolos de suas garotas, reencontram velhos amigos e tomam, cada um a seu modo, verdadeiras rasteiras da vida. Brodie é a grande estrela do filme. Um alucinado por gibis de super-heróis, passa o filme inteiro fazendo referências que são exatamente as discussões que todo bom fã já teve na mesa do boteco – afinal, será que Lois Lane, como terráquea, teria a estrutura física adequada para ser mãe de um filho do Super-Homem? Talvez fizesse mais sentido ser a Mulher-Maravilha?

Em um momento memorável, quando encontra Stan Lee, que veio para uma sessão de autógrafos na loja de quadrinhos, segue-se uma sessão de perguntas e respostas hilária sobre as partes baixas dos integrantes do Quarteto Fantástico: o pênis do Senhor Fantástico estica? O do Coisa é feito de pedra laranja?

Além de Brodie, o elemento que mais marcou Barrados no Shopping foi definitivamente o maior espaço dado à dupla de traficantes de maconha conhecida como Jay & Silent Bob (vividos por Jason Mewes e pelo próprio Smith) – que em O Balconista foram apenas coadjuvantes e aqui roubam a cena ao revisitar cenas clássicas do Batman de 1989, de Superman II e, claro, ao surrar o pobre coelhinho da Páscoa, aquele bastardo.

Estavam definitivamente escolhidos os avatares que representariam respectivamente eu e meu bro, Paulo Martini.

Durante anos eu fui o Jay – por mais que não seja alto, jamais tenha usado o cabelo comprido como o dele e tampouco seja loiro. Mas veja: tanto aqui quanto nos EUA, Barrados no Shopping só se tornou de fato cult quando chegou às locadoras, estes atuais monumentos ao OCASO do mercado de home video. Lá fora, o filme foi um fracasso de bilheteria nos cinemas e, aqui na terrinha, nem chegou a ser lançado nas telonas. Mas tanto lá quanto cá, Barrados no Shopping parece ter sido redescoberto só no formato VHS (se você não sabe o que é isso, bom, sinal de que tem um abismo de idade entre nós), por um pequeno público seleto de nerds que se enxergaram no personagem de Brodie e na extensa lista de piadas que, até então, eles só via reproduzidas em seu grupinho nichado de amigos. “Uau, tem mais gente como eu?”. Bem por aí.

Eu, por exemplo, sempre fui um rato de locadora. Todo final de semana lá estava eu, garimpando novidades, querendo descobrir diretores. Nem lembro quem diabos descobriu Barrados no Shopping. Mas me lembro claramente que a coisa se tornou uma febre entre os nerds de Santos, minha terra natal. Vi sozinho, vi com o Paulo, vi com os camaradas do curso de quadrinhos que eu fazia. Barrados no Shopping me levou a descobrir quem era este tal de Kevin Smith. Me fez correr atrás de O Balconista. Me fez acompanhar a carreira dele com afinco, me fez decepcionar com Dogma, me fez chorar com Procura-se Amy. Me fez ir ver Pânico 4 só por causa da participação especial do Jay e do Silent Bob.

E Barrados no Shopping, vejam só, fez com que eu e o Paulo fôssemos Jay e Silent Bob durante muitos anos. Lembra que eu falei lá em cima sobre uma internet ainda começando a caminhar, sobre a seca de sites especializados em cobertura de cultura pop, sobre a dificuldade da galera conseguir informações confiáveis a respeito? Pois é. Teve gente, e muita gente mesmo, que achava que o Jay e o Silent Bob eram mesmo El Cid e Fanboy. Recebi, sem sacanagem, uma dezena de e-mails ao longo de todo o tempo em que a PQP existiu dizendo que adoraram a nossa performance em Barrados no Shopping. Os primeiros eu achei que estavam brincando. Mas a troca de mensagens deixava claro, diabos, que eles estavam falando sério.

Quando um visitante fiel do site me conheceu pessoalmente em um Encontro Internacional de RPG, se surpreendeu genuinamente. “Mas, ué, você não era aquele maluco loiro, de touca na cabeça?”. Não, não era. =D

Quem acompanha a gente no @JUDAONews, lá no Twitter, obviamente já sabe que Kevin Smith anunciou que vai fazer uma continuação pra Barrados no Shopping, com a maior parte do elenco original já devidamente confirmada. Confesso que estou curioso para ver como Smith vai conduzir a trama com Brodie agora ambientada em um mundo no qual os nerds estão por toda as partes, com filmes da Marvel e da DC disputando espaço a tapa nas salas de cinema e com astros, com sites e mais sites nerds espalhados por aí nos mais diferentes tamanhos e formatos, com memorabilia dos supers circulando pra lá e pra cá...

E diabos, com o Ben Affleck (amigo de Smith e um dos antagonistas de Barrados no Shopping, ainda em começo de carreira) interpretando a porra do Batman! :D

Sei que vai ser um baita besteirol. E, honestamente, não me importo – porque é isso que eu quero ver mesmo. Um besteirol sobre fãs de quadrinhos, falando merda sobre quadrinhos e que, ainda por cima, tem um tremendo significado emocional pra mim? Tô dentro.

Talvez eu até meta uma peruca loira, uma touquinha e vá aos cinemas disparando “snoochie boochies”, só pra ver se alguém da velha guarda me reconhece. Que acha, Martini? Topa um cosplay de boné e sobretudo em nome dos velhos tempos?