Zoe Saldana, Nina Simone e o retrato dos negros no cinema | JUDAO.com.br

Porque pode parecer simples. Mas nem sempre é.

Antes de entrarmos no assunto “cinema”, é importante que você esteja familiarizado com o conceito do blackface – de modo geral, a representação de uma pessoa negra por meio da pintura corporal. Aparecido séculos atrás como parte de rotinas de comédia onde atores brancos se pintavam com carvão e reforçavam o vermelho dos lábios com a intensão de “interpretar com fidelidade” homens negros escravos ou livres para uma plateia de aristocratas.

A prática sobreviveu à passagem do tempo e ainda hoje se vê, vez ou outra, algum comediante pintando o rosto e ajudando a perpetrar estereótipos de raça, acentuados e ridicularizados por eles. O recado implícito da pintura na representação de uma raça é sempre associar certas características ou defeitos como exclusivos de uma parcela da população; se o personagem é ignorante ou malandro, a tinta preta logo trata de lembrar que esses aspectos de personalidade são inerentes ao povo negro, por exemplo.

Pois bem. Na última semana saiu o trailer oficial da cinebiografia inspirada na vida da cantora e pianista Nina Simone, escrita e dirigida por Cynthia Mort e com a atriz Zoe Saldana (a Gamora de Guardiões da Galáxia) no papel principal. Eis o ponto aqui: Nina era uma mulher negra de pele escura e nariz largo; Zoe, uma atriz negra de pele mais clara e nariz afilado. Com intenção de aproximar esses dois tipos físicos e criar uma semelhança entre as duas artistas, Saldana aparece no vídeo de divulgação do filme usando uma prótese de nariz e uma maquiagem que escurece sua pele, e imediatamente surge a pergunta: é blackface se não é realizado por um branco?

Não é a falta de semelhança nesse caso específico que gera tanta estranheza. Você mesmo já deve ter visto dezenas de cinebiografias em que ator e personalidade não dividem traços físicos significantes. O recente Steve Jobs de Michael Fassbender ou o Ray Charles de Jamie Foxx são exemplos de duas grandes atuações que extrapolam aparências e tornam mais relevante a composição de personagens criadas por seus atores. Em ambas as produções, entretanto, em algum momento a maquiagem, o design de produção ou o bom senso falaram mais alto ao estabelecer que só se pode forçar a semelhança entre duas pessoas numa obra de ficção até certo ponto.

É aqui que a decisão de “escurecer” Zoe Saldana para que se aproxime de Nina falha miseravelmente. Se a decisão da diretora e produtores fosse determinar que a norte-americana era a pessoa correta para o papel, pois então que a suspensão de descrença, sempre presente numa obra de ficção, fosse suficiente para explicar a escolha ao público.

Estabeleçamos, então, que era “sim” MUITO importante para os produtores do filme que a aparência de Nina se traduzisse de maneira evidente na produção: por que não, então, optar por uma atriz que se parecesse com a cantora para o papel?

O recado implícito aqui é de que, ainda em 2016, uma mulher como Nina Simone – negra de pele escura, cabelo crespo, nariz largo e corpo que foge dos padrões hollywoodianos de magreza – não possa ganhar uma representação fiel o suficiente da biografada por questões mercadológicas. A negação de casting a alguém que divida traços com a pianista é a retratação da falta de representatividade que o corpo da mulher negra recebe em produções que anseiam atingir públicos mais abrangentes. Como se não atender a pelo menos ALGUNS padrões de beleza estabelecidos pela indústria seja desobediência demais.

É em situações como esta que se perpetuam estereótipos negativos de raça, quando mulheres com traços étnicos evidentes são imortalizadas no imaginário coletivo por personagens como a escrava (tal qual a vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante Lupita Nyong’o em 12 Anos de Escravidão) ou a mãe abusiva (a também vencedora na categoria Coadjuvante Mo’nique por Preciosa). No caso de Nina, assim de cabeça, poderíamos cogitar Viola Davis, Uzo Aduba, Danai Gurira, Ms Lauryn Hill, Octavia Spencer, Jennifer Hudson e mais uma dezenas de atrizes.

nina_xlgÉ importante ressaltar, como apontado pela filha de Nina, Lisa Simone Kelly, que a crítica não é direcionada a própria Zoe por aceitar o papel. “É triste que ela esteja sendo atacada de maneira tão cruel por ser parte de algo muito maior”, disse a atriz e cantora, para a Billboard. “Está claro que ela trouxe o seu melhor para este projeto, mas infelizmente ela está sendo atacada quando não é responsável por escrever nenhuma daquelas mentiras”.

A principal crítica de Lisa é, na verdade, a respeito do retrato que a película fará do romance entre sua mãe e o empresário Clifton Henderson. “Isso nunca aconteceu”, diz ela, reforçando que Clifton é gay. “O projeto está amaldiçoado desde o começo. Claramente não é a verdade sobre a vida da minha mãe – e todos sabem disso. Esta não é a forma pela qual você quer que as pessoas que você ama sejam lembradas”.

O ponto é que Zoe já disse em inúmeras entrevistas, inclusive anteriores ao início das gravações do filme, que se identifica como uma mulher negra e de raízes africanas mesmo tento ascendência porto-riquenha e dominicana – o que nos EUA geralmente a relacionaria à comunidade latina. Sem mencionar o fato de que para qualquer atriz o papel de protagonista num projeto que retrate a vida de Nina – artista tão importante não apenas por sua carreira musical mas também no avanço do movimento dos direitos civis – dificilmente seria rejeitado.

A atenção no direcionamento correto de crítica é importante para evitar o preconceito fundamentado no colorismo – que é basicamente relacionar o poder de questionamento de uma pessoa negra baseado no quão escuro é seu tom de pele.

Antes de argumentar que a pintura corporal aplicada em Zoe é nada mais que a tentativa de uma retratação mais fiel de um biografado, como a prótese facial usada por Meryl Streep em A Dama de Ferro (2013) na interpretação de Margareth Tatcher, por exemplo, tente imaginar o desconforto de uma pessoa negra ao ver um cartaz de comediantes brancos usando blackface para demonstrar como ser negro era tomado como animalesco tempos atrás – e em como a memória retorna fresca ao assistir o trailer de Nina agora em 2016.

E se ainda assim a falta de Nina Simone se fizer presente, tente o documentário What Happened Miss Simone? (2015) – e deixe que a própria voz da artista conte a história de sua vida.