Com os ideais imutáveis do heroísmo ou os pés fincados no chão, os dois Universos cada vez mais representam quem os lê
Tá na regra: a Marvel Comics sempre busca, de alguma forma, refletir o mundo dos leitores nas histórias em quadrinhos, enquanto a DC Comics funciona melhor como escapismo, como uma realidade intangível cheia de heróis em cidades ficcionais, ideais imutáveis do heroísmo. Não que exista certo ou errado aqui, é apenas questão de escolha.
O ano de 2016 é um exemplo dessas diferentes abordagens: enquanto a Casa das Ideias promove uma segunda Guerra Civil – ao mesmo tempo que os EUA, o Brasil e o MUNDO se dividem –, a Distinta Concorrência promove um Renascimento, um grande reajuste cronológico e que busca ressaltar as características clássicas dos seus personagens (mas, ainda assim, promovendo também novos enredos e a diversidade). Por tudo isso, esses temas também tiveram espaço importante nos painéis de HQs na San Diego Comic-Con, que rolou na última semana.
“Nós estamos tentando criar gibis diferentes para pessoas diferentes e falar sobre o mundo real”, disse o editor-chefe da Marvel, Axel Alonso, após ouvir de um professor afirmar que tem usado as publicações da Casa das Ideias como ferramentas educacionais na sala de aula. “Quando ouvimos que alguém como você está usando nossas revistas para ensinar, é o inverso do que ouvimos na internet”, completou o editor, cutucando aqueles (poucos, mas que fazem barulho) que criticam a editora por justamente “desinformar” as pessoas.
Nós estamos tentando criar gibis diferentes para pessoas diferentes e falar sobre o mundo real
“Pensamos sobre a nossa época, estamos procurando revistas que pareçam reais. Nós estamos procurando ter um elenco de personagens que seja o mais abrangente possível, para as pessoas que os escrevem, as pessoas que os desenham... Nós tropeçamos, mas nos levantamos, aprendemos com isso. Estamos tentando criar HQs diferentes para pessoas diferentes, e estamos procurando falar do mundo real, que nos afeta. É Nova York, não é Gotham”, comentou Alonso, já aproveitando para dar a cutucada anual em uma Distinta Concorrência...
“Nós temos muito conteúdo por aí, mas no final das contas esses heróis são exemplos e o trabalho de contar histórias sobre eles é importante”, completou Sana Amanat, diretora de Conteúdo e Desenvolvimento de Personagens na Marvel. “Quando eu a [G] Willow [Wilson] estávamos falando sobre a Ms. Marvel há alguns anos, estávamos conversando sobre alguém por aí que representasse as jovens garotas que não se sentiam confortáveis com a sua própria pele e como podemos contar uma história edificante. Há cinco anos não poderíamos vender um gibi como esse, mas agora os fãs estão nos apoiando. Nós podemos continuar contando esse tipo de história, e você está nos trazendo toda uma nova geração de fãs de quadrinhos”.
No domingo, no já tradicional painel Women of Marvel, que reúne diversas mulheres que trabalham na Casa das Ideias (seja de quadrinhos, licenciamento, TV, cinema...), a editora deu os números dessa representatividade: agora são 20 títulos mensais da editora que são estrelados por mulheres. Porém, uma fã perguntou para Sana onde ela queria estar daqui cinco anos, já que tanto foi conquistado nos últimos cinco. Ela respondeu que espera que a Marvel não precise mais contar o número de revistas com mulheres ou minorias. “Nós queremos chegar ao ponto no qual criadores e personagens de todos os gêneros e etnias sejam normais”.
Só que pra isso acontecer, o mundo precisa superar o atual momento de divisão e ódio. A própria Marvel vem dando a sua contribuição para isso em Civil War II, que começou com toda aquela discussão sobre a excessiva vigilância e se mostrou uma alegoria pro #BlackLivesMatter. “Nós pensamos que havia certos elementos do zeitgeist que estavam preocupando as pessoas”, disse Alonso no painel específico sobre a saga na SDCC, afirmando que eventos como Civil War II ajudam a abordar assuntos “tão diversos quanto a discriminação racial”. “Nós queremos estar do lado certo da história, mas, no final das contas, nós apenas queremos contar boas histórias, e falar sobre o mundo que vemos através de nossa janela”.
Nós queremos chegar ao ponto no qual criadores e personagens de todos os gêneros e etnias sejam normais
Pra traduzir parte desse espírito, a Marvel tem feito coisas como “dobrar” personagens. Temos dois Homens-Aranha, dois Thors, dois Capitães América, uma Ms. Marvel e uma Capitã Marvel... Cada um representando um aspecto diferente da sociedade – o que, também, tem levantando críticas. No painel sobre a nova fase da editora, chamada Marvel NOW!, um outro fã questionou se isso não estaria tirando a relevância desses mesmos personagens. “Você tem dois Capitães América, cara – um é um agente da HYDRA, o outro é um afro-americano vestindo vermelho, branco e azul. O que poderia ser mais relevante para a nossa época do que isso? Há uma tensão, e nós sabemos. Isso faz histórias ainda mais interessantes... Eu acredito que o Universo Marvel é um lugar saudável por causa disso”, disse Alonso.
Já está garantido que esse “espelho da realidade” continuará após Civil War II. O tagline de Marvel NOW! é justamente “Divided We Stand”, mostrando que a divisão provocada pela guerra seguirá pelos meses seguintes – já prevendo, infelizmente, que a eleição nos EUA, a crise dos refugiados na Europa, o EI, Brexit, Golpe e tantas outras coisas vão deixar cicatrizes que demorarão pra sarar.
O resultado disso tudo está nos números: 2015 foi um ano ótimo para os gibis, em geral, nos EUA. Esse ano, depois de um tropeço nos primeiros meses, teve agora em junho o melhor mês de vendas em quase 20 anos. Há uma série de fatores que contribuem com isso – a Guerra Civil é um deles, como também a recuperação da DC e as novas versões de heróis clássicos. Porém, a chamada CAUDA LONGA, de publicações com baixas tiragens e que ficam além da 300ª posição na tabela de mais vendidos, tem crescido mais que os 300 primeiros. E lá estão também muitas publicações segmentadas e diversas.
Quer dizer, então, que quadrinhos precisam retratar uma merda de universo porque retratam um mundo de merda? Não necessariamente A DC Comics trouxe de volta o Superman clássico (ou quase isso, mas é o pré-reboot de 2011) como parte do Rebirth, que notoriamente funciona melhor como aspiração de herói perfeito. Hal Jordan, o Lanterna Verde mais famoso, também está de volta à velha forma e lutará uma batalha galáctica contra o medo no novo gibi Hal Jordan and the Green Lantern Corps. Ainda assim, o “pé-no-chão” ainda está lá: a editora introduziu um Super-Man chinês e ainda terá Green Lanterns, um gibi protagonizado por Simon Baz (um muçulmano) e Jessica Cruz (uma latina).
Opção, dentro das duas editoras, é o que não falta.
Aliás, na SDCC a DC revelou, ainda que sem muitos detalhes, que nas próximas edições o Super-Man chinês lutará contra uma nova versão dos Combatentes da Liberdade, “vilões” que lutam pela democracia na China. Tá aí um contexto que pode render uma ótima história, caso não fique preso naquele olhar americano habitual. Como o gibi é escrito por um filho de chineses, Gene Luen Yang, há uma chance de acertarem.
O grande problema da DC nessa Comic-Con foi o timing: forçada pelo começo de ano fraco, a editora correu com o Rebirth e chegou ao evento com praticamente todas as cartas na mesa, algo que não aconteceu com a Marvel, que tinha algumas na manga. Porém, isso só foi mais um capítulo nessa briga eterna (mas cheia de amor) entre as duas grandes editoras.
No final, o que importa é que os leitores (e o resto do mundo) ganham muito com isso. ;)