A divertida e honesta produção com ares de filme B conquistou a galera da internet pré-redes sociais – mas a bilheteria acabou ficando MUITO longe do que o estúdio esperava depois de tanto barulho
Cobras num avião, os inocentes passageiros de um voo aterrorizados por um monte de serpentes. Simples assim. O conceito é totalmente autoexplicativo, não precisa de duas páginas de resumo, QUIÇÁ nem de uma sinopse muito elaborada de sequer um parágrafo. Dez anos antes dessa história se tornar assustadoramente verdadeira em um vôo doméstico de Torreon para a Cidade do México (é sério), ela se tornou uma inesperada mistura de horror camp com comédia de ação em Serpentes a Bordo, estrelado por Samuel L.Jackson.
Tudo começou em 1997, quando o produtor Craig Berenson pegou o projeto em mãos. Na época um executivo da Patchwork Productions, subsidiária da Dreamworks, ele apareceu dois anos depois em uma reunião informal com o conceito baseado em um roteiro de David Dalessandro: Venom. Sua apresentação para o restante dos executivos foi mais ou menos assim: “Pegue os dois maiores medos que as pessoas têm – cobras e avião – e coloque-os juntos a mais de 9.000 metros de altura para ver o que acontece”. A sala inteira se revoltou. Por pouco ele não foi vaiado. Mas Berenson levou como um bom sinal: “Uma reação visceral é metade da batalha ganha. Sob meu ponto de vista, valeu ouro”, conta ele, para o site especializado em répteis (!) Reptiles (ah, vá).
Mesmo assim, ele foi lá e conseguiu um acordo de lançamento com a MTV Films / Paramount, que acabou sendo abortado por conta dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Como pensar em fazer um filme-catástrofe nos ares depois de tudo que aconteceu no WTC? O cara, contudo, não desistiu e, depois de alguns “vais-e-vens”, as negociações de Berenson fizeram com que o projeto fosse adquirido pela New Line. Foram dois anos de roteiros reescritos até que o projeto acabou caindo nas mãos do diretor Ronny Yu (Freddy x Jason).
Mas não demorou muito e, quatro meses depois, Yu abandonou a produção por conta das sempre presentes “diferenças criativas e orçamentárias”. Sua última contribuição aqui foi justamente conseguir a presença do astro Samuel L.Jackson, com quem trabalhara em Fórmula 51 (ou Rachas, Baladas e um Louco de Kilt, de 2002). Bastou apenas um e-mail para que Jackson se interessasse pelo filme, que reunia três de seus pilares favoritos: filmes de monstros, horror moderno sem compromissos e, conforme garantia a presença de Yu, artes marciais.
A própria New Line não botava uma fé que Jackson estivesse realmente interessado no filme. Mas o pior é que era verdade. “Meus agentes finalmente entenderam que eu só faço o que eu quero”, brincou ele, em comunicado oficial da época. Mesmo assim, o estúdio ainda estava cabreiro de lançar uma parada chamada Snakes on a Plane — o que acontecia também com a distribuidora nacional, que chegou a cogitar a mudança para um título do tipo O Voo do Pânico. “Como alguém poderia levar um filme chamado Snakes a Plane a sério?”, ponderou Russell Schwartz, presidente de marketing da New Line, em um artigo antigo do EW.
Bom, Samuel L. Jackson era uma dessas pessoas que tava levando a coisa bem a sério e, quando o sujeito chegou ao set de filmagens em Vancouver, no Canadá, e descobriu que a película tinha sido renomeada para Pacific Air 121 (o nome do avião do filme), por muito pouco a vaca não foi para o brejo. Ele acabou fazendo uma pressão publicamente, ao trazer o assunto à tona durante as entrevistas de divulgação do tenebroso filme O Cara, também da New Line. “O título ainda é Serpentes a Bordo, certo?”. E então, enquanto o Facebook ainda tinha meros dois aninhos de idade e o Twitter era praticamente um recém-nascido, a caixa de pandora se abriu e a internet explodiu.
“De fato, o título do filme foi escolhido de acordo com o nome adotado por milhares de sites na internet”, conta Elissa Greer, do departamento de marketing da New Line, em entrevista à agência de notícias AFP. “É extraordinária a forma como este fenômeno ganhou vida própria”. Com Samuel L.Jackson como seu principal porta-voz, agora a parada se chamava OFICIALMENTE Snakes on a Plane. “O título do filme é tão claro e direto. Você sabe exatamente o que vai receber”, tentou explicar, na época, Brian Finkelstein, criador do site Snakes On a Blog (que não existe mais, antes que você tente acessar) e um dos grandes incentivadores do lançamento.
Este, aliás, foi apenas um dos milhares de sites, blogs, fotologs, fóruns e afins dedicados ao filme. Mesmo antes da palavra “meme” ganhar a força que tem hoje, a galera já estava fazendo uma montagem atrás da outra, sugerindo inclusive possíveis continuações como Snakes on a Train, Snakes on a Bus ou Snakes on a Submarine. Vieram trailers, animações e vídeos com finais alternativos, paródias, fanfics, além de uma enorme quantidade de materiais como canecas, bonés e camisetas, todos obviamente não-oficiais.
“Geralmente, vemos este tipo de energia sendo gerada por algo como ‘Star Wars’, que tem um elo de ligação estabelecido com o público”, opinou David Waldon, autor do livro Snakes on a Plane: The Guide To Internet Ssssssensation, em entrevista à revista Entertainment Weekly. “As pessoas sabiam pouquíssimo sobre o filme quando começaram com isso e continuam sem saber mesmo agora”, brincou.
Mas o novo diretor, David R. Ellis, um ex-dublê que já tinha um relacionamento de longa data com a New Line graças ao seu trabalho no surpreendente Celular: Um Grito de Socorro, sabia que precisaria dar um tratamento diferente ao filme agora que ele tinha se tornado um fenômeno na internet. E toma fan service com uns dias a mais de refilmagem pra garantir um pouco mais de pimenta, com cenas de sexo, violência, sangue, palavrões e a porra toda. As cenas a mais ainda foram menos do que aquelas que o próprio Jackson queria mas, mesmo assim, o que era originalmente pra ser PG-13 acabou se tornando R, pra alegria da galera (a gente te explica a diferença nesta matéria aqui).
Por sinal, a icônica frase que Sam Jackson diz em toda a sua gloriosa badassness, “Enough is enough. I’ve had it with this motherfucking snakes on this motherfucking plane”, não estava no roteiro original. Ela veio justamente de um vídeo feito por um fã e acabou incorporada ao produto final.
O resultado foi um filme bem verdadeiro, goste você ou não do que caralhos isso significa. O clima de filme B/trash, a trilha exagerada, o sangue em doses cavalares, as mortes bizarras, os diálogos forçados, as risadas, os sustos gratuitos e, principalmente, Samuel L.Jackson. Cool como sempre em seu papel obrigatório de policial durão e cheio de frases de efeito, repletas de “motherfuckers” e “damns”, o sujeito rouba a cena.
O início é típico daquelas produções de orçamento barato lançadas direto para o mercado de vídeo: o jovem surfista platinado Sean Jones (Nathan Phillips, de Wolf Creek) está no Hawaii, passeando de moto. Quando ele resolve parar no meio do nada para tomar um energético e descansar um pouco, se depara com um sujeito pendurado pelos pés em uma ponte. Escondido no meio do mato, ele vê o notório gângster Eddie Kim (Byron Lawson, o Lee Chen da série futurista Jeremiah) se aproximando com um taco de beisebol nas mãos. Chama sua vítima de “procurador”, daqueles de filmes de tribunal. E…wow! Mesmo estando de terno branco, Kim enche o sujeito de porrada, espirrando sangue para todos os lados. Está feito. Um obstáculo a menos. Assustado, Sean foge e acaba sendo visto pelos capangas de Kim.
Já em casa, Sean descobre que o tal chinês é, na verdade, um escorregadio chefão do crime de Los Angeles, sobre quem a polícia ainda não conseguiu encontrar nenhuma evidência concreta – embora as acusações sejam muitas. Não demora até que ele seja descoberto pelos criminosos e também por um certo agente do FBI de nome Neville Flynn (Jackson). Agora, a testemunha que faltava para colocar Kim atrás das grades precisa ser enviada para LA o quanto antes, para se apresentar diante do tribunal. Sean será escoltado por Flynn na primeira classe de um avião comercial – e, ao descobrir esta movimentação, o mafioso bola um plano mirabolante: embarcar ilegalmente no avião uma caixa com mais de 450 cobras venenosas.
Um mecanismo previamente preparado liberta os bichos no meio do voo, enquanto um feromônio especial colocado no sistema de circulação de ar vai ser responsável por fazer os animaizinhos ficarem irritadiços e prontos para atacar qualquer um que virem pela frente. O resultado são picadas e mordidas em todos os lugares possíveis e imagináveis do corpo humano e um caos total dentro do South Pacific Air 121. Pois é, agora você sacou todo o plano de Kim: se não podemos matar Sean Jones, vamos derrubar o avião da forma mais insuspeita possível. Genial, não? ;)
O grande ponto de Serpentes a Bordo, no entanto, é que a bilheteria não fez jus ao que a New Line Cinema esperava depois de todo o hype na internet, toda a loucura no painel do filme em plena San Diego Comic-Con, toda a cobertura da imprensa especializada. Vamos nos lembrar mais uma vez: o ano ainda era 2006. Com um orçamento de US$ 33 milhões, o filme fez pouco mais de 1 milhão a mais do que isso dentro dos EUA. Uma performance modesta, que no entanto acabou complementada pelo que rolou globalmente, chegando às cifras totais de US$ 62 milhões. Não é pouco. Mas, definitivamente, estava muito longe daquilo que os executivos do estúdio imaginavam.
“As pessoas estavam esperando um grande blockbuster – e qualquer coisa que fosse menos do que um blockbuster seria chamado de fracasso”, afirma o antigo fã Finkelstein, ouvido pela revista The Atlantic alguns anos depois.
Especialistas do mercado de entretenimento, no entanto, defendem que o problema foi colocar tanta força assim nas mãos dos fãs, reescrevendo o filme para que ficasse EXATAMENTE como eles queriam. Um editorial do Rotten Tomatoes afirma: “Serpentes a Bordo sabe que é um filme estúpido e bobo, mas eis o tamanho de seu autoconhecimento: ele dá ao público o que ele acha que quer de uma maneira tão tediosa que se torna menos um filme cult que vai inspirar fanfictions e mais uma fanfiction por conta própria”. E eis que completa um artigo do Collider: “Ao invés de ouvir o que a internet acha que uma produção deveria ser, Hollywood deveria dar ouvidos às pessoas contratadas para fazer aquele filme”.
Bom, aí nós temos o Zack Snyder para tornar esta discussão um pouco mais complicada, não é mesmo? ;)
De qualquer maneira, Samuel L.Jackson é daqueles que, até hoje, defendem o filme como ficou. “Fodam-se os críticos”, disparou em 2014, quando perguntado a respeito de Serpentes a Bordo durante as entrevistas de divulgação de Capitão América: O Soldado Invernal. “Eu ainda escolho fazer certos filmes porque eles seriam filmes que eu veria quando era moleque”, explica. “Então, quando as pessoas criticam Serpentes a Bordo, eu fico, ‘Foda-se’, sabe? Este é um filme que eu veria quando era moleque, então estou satisfeito de me ver nele”.
Pra gente, é isso, Sam. :D