O roteirista, que agora vai assumir o gibi do Homem de Ferro, pode não ser unanimidade absoluta. Mas depois de uma década de sadismo (!) e viradas rocambolescas, ele deixa UMA mudança fundamental e muito bem-vinda na vida de Peter Parker
O ano de 2018 começou cheio de novidades nos escritórios da Marvel Comics, daquelas que mexem definitivamente com as estruturas. Teve mudança de editor-chefe — sai Axel Alonso e entra C.B. Cebulski, queridinho de muitos autores mas já devidamente apanhado na polêmica de ter usado o pseudônimo Akira Yoshida durante alguns anos, fingindo ser um autor oriental — e até um de seus maiores e mais representativos nomes, Brian Michael Bendis, praticamente um garoto-propaganda da Marvel nos últimos anos, migrando de vez para as páginas da DC.
Pra completar o ciclo, só o que faltava era uma daquelas viradas de equipe criativa totalmente inesperadas, um anúncio que faz os fãs se perguntarem MAS HEIN? — e é justamente o que vai acontecer a partir de Junho, em The Amazing Spider-Man # 801, quando enfim o roteirista Dan Slott vai abandonar o título para assumir um novo desafio na editora, desta vez escrevendo o Homem de Ferro.
Dá pra comparar a movimentação de Slott com a saída de Bendis, você pode me perguntar? MAS Ô SE DÁ.
Porque o escritor ficou nada menos do que 10 anos à frente dos gibis do Homem-Aranha, sendo responsável por respeitáveis 189 edições do Cabeça de Teia. E é bom a gente lembrar sempre que, se Tony Stark é a joia da coroa do universo cinematográfico da Marvel, nas HQs é impossível pensar em um nome que melhor resuma a versão “Comics” da Marvel do que Peter Parker. Assim sendo, a missão de Slott ao longo desta década foi duríssima. Mas o cara não só segurou a barra com mãos de aço como deixou claríssimo que manjava mais da mitologia do Cabeça de Teia do que a maior parte dos escritores que passaram por ele nos anos anteriores.
“É verdade que você tá saindo do gibi do Homem-Aranha por que não aguenta mais?”, teria questionado alguém ao escritor, que logo respondeu no Twitter: “Mas é claro que não. Isso é loucura. O Homem-Aranha é meu personagem favorito de todos os tempos. Considero um privilégio e uma honra ter escrito histórias para ele ao longo de 10 anos. Pra fazer algo por tanto tempo assim, só mesmo com amor envolvido”.
Claro, Slott tá longe de ser uma unanimidade. Usuário frequente de redes sociais, ele usa principalmente seu perfil no Twitter não apenas para interagir com os fãs mas também pra arrumar confusão — fanboy de carteirinha, ele é do tipo que sabe coisas como o apelido do cachorro do terceiro Homem-Formiga, fazendo com que se envolva em tretas desnecessárias apenas pra provar que está certo, por vezes sendo um tanto mais ríspido/sarcástico do que precisaria. Além disso, também é objeto de ódio dos conservadores de plantão, porque não são raras as vezes em que dispara críticas ao atual governo americano, marcando o presidente (?) em seus tweets, e fazendo questão de deixar claríssima sua posição sobre assuntos borbulhantes como o controle de armas, racismo e diversidade de gênero. Uma busca simples mostra que o carimbo de “SJW” paira sobre ele frequentemente.
Mas, por mais que tenha gente que se oponha tanto a isso quanto às soluções rocambolescas do cara (como trocar a mente do Peter pela do Doutor Octopus, por exemplo, no melhor esquema Sexta-Feira Muito Louca), uma coisa é fato: arcos como A Ilha das Aranhas e principalmente o Aranhaverso são, além de divertidíssimos em sua total falta de compromisso, também verdadeiras declarações de amor à mitologia do personagem, recheados de pequenas e doces referências pra tudo que é lado.
O grande legado de Dan Slott pro Homem-Aranha, no fim, foi: não tenham medo de experimentar. De se soltar. De enfim sair do velho esquema “Peter Parker adolescente que tira foto pro Clarim Diário e tem que ajudar a Tia May a pagar o aluguel”. É, sim, é bem legal, tal, parabéns Lee e Ditko. Mas dá pra trabalhar todo este conceito de “everyday man”, o sujeito comum como eu e você, o Bruce Springsteen dos super-heróis, de uma série de outras maneiras.
“Muita gente só enxerga o Homem-Aranha de um único jeito. É aquele ‘quando ele é Peter Parker, sua vida é terrível e aí ele coloca a máscara e se liberta, se tornando o Homem-Aranha’. Ou então ‘sua vida como Peter Parker seria muito melhor se ele não tivesse que se tornar o Homem-Aranha. Ser o Homem-Aranha é uma maldição’. E aí você começa a pensar”, afirmou ele em entrevista ao Vulture na qual revelou sua saída do principal título aracnídeo, aquele que serve de guia para todos os outros. “Porque, assim como você não é a mesma pessoa sempre, todos os dias, não tem aquele mesmo Homem-Aranha / Peter Parker sempre. Tem muitas facetas, muitos sabores diferentes”.
Basicamente, entre clones e Porcos-Aranha, o que Dan Slott fez foi mostrar não apenas que o Homem-Aranha pode fazer o que quiser e ir onde bem entender, sem ser necessariamente apenas nas ruas de NY (“Se ele levar seu humor e sua sensibilidade com ele, se ele sentir um peixe fora d’água, ele ainda vai ser o Homem-Aranha. O segredo é o jeito que ele lida com a estranheza ao seu redor”), mas sim que existe espaço para muitos Homens-Aranha na Marvel.
Peter Parker sempre está lá, no fundo, na essência, por mais alto que seja o tombo, por mais dolorida que seja a rasteira — e neste sentido, caraca, Dan Slott era um sádico, um especialista em fazer o Teioso sofrer. Mas pode ser um Homem-Aranha adulto, com seus 30 e poucos anos, finalmente longe do ambiente acadêmico, com uma vida nova, arrumando um emprego que tem total relação com a sua paixão de sempre — a ciência. Peter sempre quis ser cientista. Este papo de passar a vida aguentando esporro do Jameson no Clarim mesmo com barba na cara já deu no saco tem mais de uma década.
Vimos um Peter Parker com um novo e empolgante elenco de coadjuvantes ao seu redor. Tá, tem Tia May, Flash, Harry Osborn, Mary Jane, já sabemos. Mas Dan Slott ampliou de vez o mundo do personagem, apresentando toda a galera dos Laboratórios Horizonte (incluindo o brilhante cientista Max Modell, uma figura paterna que de verdade vale a pena para o Peter), a cativante Anna Maria Marconi, a brilhante e explosiva Sajani Jaffrey, todo o braço chinês das Indústrias Parker... Aliás, vejam vocês, uma das mentes científicas mais brilhantes do Universo Marvel enfim teve a chance de conduzir seu próprio negócio, uma startup de tecnologia que chegou a rivalizar com as próprias Indústrias Stark.
E se você sentir saudades do Homem-Aranha teen, tá tudo bem: te apresento aqui um sujeitinho simpático e carismático chamado Miles Morales. :)
Talvez a Marvel acabe com isso, conforme a gente falou aqui? Talvez. Mas a pulga atrás da orelha permanece para que os próximos autores pelo menos possam pensar “hum, será?”.
Slott afirma ainda que a decisão de abandonar o Aranha já tinha sido tomada algum tempo antes. “E toda entrevista que eu dava, toda vez que ia falar num painel, eu olhava pras pessoas e dizia que nunca ia sair. Da mesma forma que dizia ‘não, Peter Parker não vai voltar, eu o matei’. Eu mentia. Eu mentia horrivelmente”.
O autor explica que se dedicar integralmente a um único personagem durante tanto tempo fazia com que basicamente tudo na sua vida fosse visto primeiro pelas lentes do Homem-Aranha. “Se eu tava andando pelas ruas de Nova York e via alguma coisa, logo pensava como o Aranha lidaria com aquilo. É meio que um reflexo lá no fundinho do seu cérebro”. Mas o gostinho diferente veio quando o roteirista passou então a dividir seu tempo entre escrever o Homem-Aranha e uma aclamada passagem pelo Surfista Prateado, com arte de Mike Allred. “Era um sabor diferente de sorvete”, brinca.
E aí veio o convite pra escrever o Homem de Ferro, que é coisa de alguns anos, mas que Slott não aceitou antes porque estava atarefado até às nuvens com o Escalador de Paredes e também com o Surfista. “Primeiro foi um ‘pô, seria legal demais fazer isso’. Mas quando o convite veio de novo, eu já tava ‘cara, quero isso demais!’. Porque eu cresci num mundo em que você perguntava pra alguém ‘quem é Clark Kent?’ e a pessoa sabia dizer ‘Superman’. O mesmo valia pra Bruce Wayne e Batman e pra Homem-Aranha e Peter Parker. Mas hoje, graças aos filmes, você pergunta ‘quem é Tony Stark?’ e as pessoas sabem dizer que é o Homem de Ferro”. Faz sentido, até;
Mas Slott ainda tinha um desafio a ser batido antes disso.
“Eu sempre quis chegar no número 800 de Amazing Spider-Man“, conta ele. “Quer dizer, na verdade, não no 800, mas sim no 801. E tem uma razão pra isso, porque este é um número especial pra mim, uma coisa pessoal”. Mas se tem um recorde que Slott não vai conseguir quebrar, no entanto, e ele sabe bem disso, é o de “roteirista que mais escreveu gibis do Homem-Aranha na vida”, porque este ainda pertence a ninguém menos do que o próprio Brian Michael Bendis, considerando sua passagem pelo Aranha Ultimate, tanto na fase Peter quanto na fase Miles Morales, e também o atual momento de Miles no Universo 616, que ele escreve até Spider-Man #240, com previsão de lançamento pra algo em torno de Maio. “Os gibis dele ainda estão saindo, então este é um recorde em andamento. E eu tinha certeza de que ele nunca sairia. Se eu soubesse que ele ia pra DC, mas certeza que eu tinha ficado. Aposto que sim”.
Só que ele deixa claro que, pra isso funcionar e o recorde de Bendis ser quebrado, não precisa ser NECESSARIAMENTE escrevendo Amazing Spider-Man. “Quem sabe? Vai que daqui uns dois, très anos, eu chego e peço pra me deixarem fazer Web of Spider-Man. Ou então uma nova versão de Untold Tales of Spider-Man. Talvez eu precise de só uns 20 números e estamos de boa”.
Pois é. Não temos nenhuma dúvida disso, Dan. ;)
Mas e sobre seu novo filhote para cuidar — que, coincidentemente, TAMBÉM era um título escrito atualmente por Brian Michael Bendis, vejam vocês — o que diabos ele tem a dizer?
“Reed Richards explora o universo. Ele quer saber tudo e ir para todos os lugares. Tony Stark constrói o futuro. Não é que ele não esteja querendo descobrir a nova grande coisa por aí. Mas ele vai fazer isso com as próprias mãos, ele vai construir onde ele quer ir”, tenta definir Slott. “Quando a gente é criança e lê gibis, fica pensando que, se treinar muito e muito, pode se tornar o Batman. E que se ganhar superpoderes, pode se tornar o Homem-Aranha, que é o cara comum, como eu e você. Tony Stark está em algum lugar ali no meio. Nem todo mundo é assim genial. Mas, mais do que qualquer personagem da Marvel, ele é o self-made man. Tira a armadura dele. Ele é um cara normal. E ele faz de si mesmo um herói. No fim do dia, tem o Capitão América com o soro do supersoldado, tem um Deus do Trovão, tem toda esta galera ao seu redor com habilidades incríveis. Mas as habilidades dele vieram de suas próprias mãos. Ele fez tudo isso e ainda se coloca ombro a ombro entre os deuses porque ele consegue criar o que imagina. Isso é empolgante demais”.
Acho que tenho mais um motivo pra continuar lendo os gibis do Ferroso depois que o Bendis sair, afinal de contas.