O Clube dos Cinco na era do #MeToo | JUDAO.com.br

Com o texto “What About ‘The Breakfast Club’?” publicado na revista New Yorker, Molly Ringwald fala sobre machismo e problematizações em obras de John Hughes.

Molly Ringwald estrelou alguns dos filmes mais importantes da década de 1980 e do diretor John Hughes. Clube dos Cinco, Garota de Rosa Shocking e Gatinhas e Gatões são ícones da cultura oitentista americana e são constantemente referenciados em obras populares atuais, como Deadpool e Gravity Falls.

Chegou então aquele momento em que umas das filhas de Molly, que tem 10 anos de idade, interessada em tudo o que provavelmente ouviu sobre a mãe e viu espalhado pela casa, pediu para assistir à Clube dos Cinco, que conta a história da amizade entre cinco alunos de personalidades muito distintas que estão em detenção em sua escola — uma experiência que a atriz narrou para a revista New Yorker, como foi reassistir ao filme, 33 anos depois do seu lançamento, vivendo em um momento tão diferente. Ela relata um nervosismo inicial sobre o quão realmente seguro era deixar a filha ouvir as piadas que estão na obra, mas logo descobriu que essa não era, definitivamente, a maior das questões problemáticas ali.

“Em um certo ponto do filme, o personagem badboy, John Bender, se esconde embaixo da mesa onde minha personagem, Claire, está sentada, para se esconder de um professor. Enquanto está lá, ele aproveita a oportunidade para espiar debaixo da saia de Claire e, embora o público não veja, fica implícito o fato de ele a ter tocado de maneira inapropriada”, conta a atriz, me fazendo encolher na cadeira. Como a filha de Ringwald, eu era bem nova quando assisti ao longa e lembro de ter achado tudo tão... divertido. E tocar alguém inapropriadamente não é, nem de longe, sinônimo de diversão.

Com aquilo tudo rondando sua cabeça por alguns dias, Molly resolveu investigar a fundo seu sentimento e percebeu que, no contexto atual de denúncias graves contra assédio sexual na indústria do entretenimento e da criação do movimento #MeToo, que propõe reunir relatos de vítimas de abuso para lutar contra a situação, os tais filmes conhecidos por sua leveza, na verdade, mostravam-se também muito problemáticos. “No roteiro de O Clube dos Cinco, havia uma cena na qual uma professora de educação física atraente nadava nua na piscina da escola enquanto Mr. Vernon, o professor encarregado da detenção dos estudantes, a espiava. Ela não estava na primeira versão que eu li, e convenci John a cortá-la. Ele o fez, e embora eu tenha certeza de que a atriz escolhida para esse papel ainda me culpa por estragar sua grande chance, eu acho que o filme ficou melhor assim.”

Isso me lembrou uma conversa que tive anos atrás com algumas amigas de faculdade durante uma aula vaga. Juntas, pensávamos sobre como já havíamos reproduzido muito o machismo que nos foi imposto. Entre relatos, percebemos quantos absurdos pareciam absolutamente normais porque assim nos fora ensinado. TV, filmes, seriados, livros: tudo parecia querer nos dizer que meninas jamais poderiam ser amigas, deveriam ter um tipo só de corpo, que a competição entre nós pela atenção masculina era legítima e, falando em atenção masculina, qualquer sinal de interesse sexual era bem-vindo, mesmo que sem o seu consentimento.

Tudo parecia querer nos dizer que meninas jamais poderiam ser amigas, deveriam ter um tipo só de corpo, a competição entre nós pela atenção masculina era legítima e qualquer sinal de interesse sexual era bem-vindo, mesmo que sem o seu consentimento

Molly também aborda sua relação com o diretor, algumas conversas com outros colegas e suas impressões ao escavar o passado de John e descobrir alguns dos seus primeiros trabalhos, o guia Assédio Sexual e Como Fazê-lo!, co-assinado por Ted Mann, publicado na revista National Lampoon de Outubro de 1980. (Ted, conhecido hoje por seu trabalho como produtor e roteirista na série Homeland, diz que não se lembra nem de ter feito o tal guia, alegando que era uma época “degenerada e cheia de cocaína”)

O relato completo pode ser lido aqui, em inglês.

A discussão sobre conteúdos produzidos há muitas décadas tornou-se, coincidentemente, ainda maior nessa semana com o posicionamento dos criadores de Os Simpsons sobre recentes questionamentos sobre o personagem Apu levantados pelo documentário O Problema com Apu, de 2017. No episódio exibido no último domingo (08), Lisa ouve uma história sem partes “problemáticas” lida por sua mãe e, entediada, diz que “Algo que começou há décadas, foi aplaudido e inofensivo agora é politicamente incorreto. O que você pode fazer?”

Bem, Molly Ringwald sabe: a reflexão. Tentar anular a importância desses filmes e fingir que nunca existiram é como tentar apagar a história. Não negar que o sexismo foi (e é) muito presente é um grande passo para iniciar discussões sobre como melhorar a produção de conteúdo atual e futura.

Com o coração aberto e de maneira muito detalhada, explica a jornada sentimental que foi para ela, como atriz e mulher, perceber que mesmo obras e pessoas que ela julgava inofensivas, hoje são reconhecidas como exemplos de machismo e de normatização de ideias nocivas sobre nós. E então, é como se Ringwald também pudesse ser uma daquelas minhas amigas sentadas no chão da universidade dividindo experiências e falando sobre o passado.