“Everything is Love” amarra de vez o que os Carters expuseram ao mundo em seus respectivos últimos discos solo, funcionando como uma demonstração de sua força como casal e como músicos — mas também como uma bela voadora na cara do racismo
Tá bom, verdade que uma turnê do casal mais poderoso da música mundial não é algo pra se considerar lá muito comum, mas ninguém pensava que o show deste sábado (16), em Londres, fosse mais do que uma data da turnê conjunta que Beyoncé e Jay-Z tão fazendo juntos. Mas eis que, depois de Forever Young, Miss Knowles me manda “queremos que vocês sejam os primeiros a experimentarem este projeto”. Sensação geral de EITA.
Ela e o maridão saem do palco e começa no telão então o clipe de Apeshit, uma canção inédita, direção de Ricky Saiz, com B&J dividindo os vocais enquanto passeiam pelo Museu do Louvre. Uma cacetada por si só, seguida de um luminoso com a informação: ALBUM OUT NOW. Sim, Beyoncé e Jay-Z lançaram um álbum surpresa, batizado de Everything Is Love. Primeiro disco que os dois fazem em conjunto, devidamente assinado como The Carters.
“I can’t believe we made it”, diz Beyoncé na letra da canção. Pois é. Eles fizeram MESMO, sem anunciar nada pra ninguém, garantindo de imediato um hit instantâneo, um disco blockbuster daqueles feitos na medida certa para esmagar as verdades absolutas de um mercado que diz muito claramente aos quatro ventos que não adianta mais lançar disco, que o mundo é digital, que ninguém mais consome mais música empacotada assim, que o lance agora é single. Bom, parece que o senhor e a senhora Carter tão bem dispostos a sacudir estas teorias todas, afinal.
Tá legal, não podemos exatamente bancar os inocentes aqui: Everything Is Love está disponível apenas no Tidal e por um motivo MAIS do que óbvio. Tamos falando de uma plataforma de streaming musical que, até o momento, simplesmente não decolou e cujos principais sócios são os próprios Jay-Z e Beyoncé. Ou seja... ¯\_(ツ)_/¯
Mas, mais do que uma tentativa de alavancar assinaturas, Everything Is Love é um recado. Um manifesto da dupla. Aliás, um MONTE de manifestos, né? São Beyoncé e Jay-Z, que são poderosíssimos não apenas como casal, não apenas porque são um casal, mas sim também cada um no seu quadrado, cada um com sua carreira, dizendo “foda-se, que a gente não precisa de vocês”. Em Nice, por exemplo, ela não mede palavras ao dizer “If I gave two fucks / Two fucks about streaming numbers / Would have put Lemonade up on Spotify”. E ainda completa: “Fuck you, fuck you, you’re cool, fuck you, I’m out (Ah!)”, para dizer lá na frente “I’m better than the hype, I give you life”.
Everything Is Love, de fato, pode soar bastante arrogante quando a gente escuta os dois metralhando este tipo de afirmação — Jay-Z, em outro momento já icônico de Apeshit, manda um “I said no to the Super Bowl / You need me, I don’t need you”. Porra, é óbvio que parece o sujeito se colocando no topo do mundo. Mas é a mais pura verdade, não? Tanto pra ele quanto pra Beyoncé. Estamos falando aqui de duas verdadeiras instituições da cultura pop. Tipo uma versão contemporânea de Madonna e Michael Jackson decidindo gravar alguma coisa juntos.
Além disso, o disco também tem outro recado bastante direto, que você já começa a entender pelo título: AMOR. Quase como se fosse a conclusão de uma trilogia, que começou com o maravilhoso Lemonade, no qual Beyoncé rasga as feridas pessoais de uma traição enquanto as intercala com poesia de rebeldia sobre a história das mulheres negras dos EUA, e teve uma continuação direta em 4:44, com Jay-Z assumindo seu papel de homem adulto e suas responsabilidades como pai e marido. Everything Is Love é a celebração deste amor, de uma união cujos laços estão ainda mais fortes, cercados inclusive por seu círculo inabalável de amigos e colaboradores, aqueles mesmos que eles consideram mais do que uma família. “I don’t know what I would do without all of my crew”, canta Beyoncé em Friends.
A parte do “estamos cagando pra você, querido mercado, porque nos viramos muito bem sozinhos” se estende bem ao “estamos cagando pra você, que acha que pode opinar sobre a nossa vida, porque estamos nos amando mais do que nunca”. Novamente: parece mesmo arrogante. E é. E talvez tenha mesmo que ser, afinal de contas.
Em termos sonoros, Everything Is Love está longe de ser uma experimentação tão ousada e potente quanto Lemonade. Mas também não é o pop arrebatador e dançante ao qual os fãs de longa data da cantora se acostumaram e do qual alguns, como sempre, dizem sentir a maior falta. Dá pra dizer até que este é muito mais um disco de hip-hop, com a cara, a mão e o flow de Jay-Z.
Numa sonoridade meio soul, Motown style, uma coisa bem anos 50, o relacionamento dos dois é diretamente tratado nas faixas de abertura (Summer) e de encerramento (LoveHappy). E se a primeira, com belos naipes de metais anos 50, evoca um clima de amor de verão, “let’s make plans / to be in each other’s arms, yeah”, a segunda já tem lá os seus espinhos, ainda que igualmente carregada nas referências retrô. “Lucky I ain’t kill you when I met that b*”, diz a esposa sem rodeios, sendo interrompida pelo maridão meio sem graça, “alright, alright”. Um beliscão que, mais pra frente, vem com um afago. “Love is deeper than your pain and I believe you can change / Baby, the ups and downs are worth it / Long way to go, but we’ll work it / We’re flawed but we’re still perfect for each other”. Quer declaração de amor mais foda do que esta?
Em ambas as faixas, no entanto, temos Beyoncé mostrando toda a cor e potência de sua voz como já conhecemos. Mas quando os mundos dela e de Jay-Z de fato convergem e ouvimos Beyoncé cantando rap DE VERDADE, rimando e fazendo o flow com fúria, com ira, rasgando a voz, em canções como Apeshit e Friends , é que o álbum nos dá aquela sensação de que tem algo realmente histórico acontecendo aqui. E é com uma voz ainda mais grave que ela canta em Boss que sabe que seus tataranetos estão com o futuro garantindo, ricos e com grana o suficiente para garantir muitas crianças negras na tal da lista da Forbes. OUCH.
Pois é, ainda que em segundo plano, Everything Is Love reserva espaço para cutucar o racismo, que Jay-Z também aborda sutilmente ao lembrar que está sendo mais uma vez forçado a voltar ao tribunal num caso dentro do qual ele não tem qualquer relação — no caso, envolvendo a Iconix, a empresa que comprou a Rocawear, linha de roupas que ele fundou anos atrás. “After all these years of drug trafficking, huh / Time to remind me I’m Black again, huh?”.
Os Carters, no entanto, fazem questão de registrar que não esquecem seu passado e respeitam demais suas origens, não importando o quão alto esteja o pico do qual enxergam o mundo hoje em dia. Além do título de 713 ser uma lembrança do código de área de Houston, a cidade onde Beyoncé cresceu, o trecho “We still got love for the streets” tem duplo significado por ter saído de Still D.R.E., canção de 1999 escrita por um Jay-Z ainda Shawn Carter e gravada pela dupla Dr. Dre e Snoop Dogg. É o rap celebrando o rap, sabendo o papel do tradicional, mas sem deixar de conversar com o piano do jazz e mesmo com pequenas e cirúrgicas viagens eletrônicas hipnóticas que se encontra ao longo do álbum.
“I can do anything”, abre cantando o parça Pharrell Williams na introdução de Nice. E o que ele diz é uma verdade, mas não sobre ele, e sim sobre Beyoncé e Jay-Z: eles podem. E sabem disso. E se já são imbatíveis separados, juntos podem mesmo se tornar invencíveis.