Apesar da sonoridade brutal e de letras que evocam um cenário de filme de terror, uma universidade australiana comprova que um dos subgêneros mais extremos do metal não transforma seus ouvintes em assassinos em potencial ;)
Nos últimos anos, o ambiente acadêmico anda pródigo em desenvolver estudos envolvendo a relação da música com as emoções das pessoas. Recentemente, por exemplo, estudiosos descobriram que a música pop tá ficando mais triste — mas que, ainda assim, as pessoas que vão mais a shows também são mais felizes.
Agora foi a vez do laboratório de estudos musicais da Macquarie University, uma universidade pública australiana considerada uma das dez melhores do país, se aventurar num terreno aparentemente bem trevoso: o heavy metal. Mais especificamente, o death metal, uma de suas variedades mais pesadas e agressivas, tanto em termos sonoros quanto temáticos.
No estudo “Implicit violent imagery processing among fans and non-fans of music with violent themes” (em tradução literal, o “Processamento implícito de imagens violentas entre fãs e não fãs de música com temas violentos”), publicado neste mês de março pela revista científica Royal Society Open Science (leia a íntegra aqui), os pesquisadores estudam, no campo musical, o quanto a exposição persistente a temas mais violentos pode impactar negativamente e influenciar a violência entre seus ouvintes.
“Os fãs de death metal são pessoas legais”, afirma um dos participantes que conduziram o estudo, o professor William Forde Thompson, em entrevista pra BBC. “Eles não vão sair por aí machucando outras pessoas”. Segundo ele, a prerrogativa de que os ouvintes deste tipo de som acabam se tornando naturalmente “insensíveis” à violência real não é verdadeira.
Pra quem não é profundo conhecedor das dezenas de subgêneros do heavy metal, o death é uma vertente ainda mais extrema deste estilo musical, uma que apareceu lá pela metade dos anos 1980, bebendo do peso mais brutal do thrash metal (por si só, uma derivação mais agressiva do metal tradicional) e também um pouco da aridez e da estética dos primórdios do black metal (tipo Venom e Bathory). Os americanos do Possessed, vindos da Bay Area, em São Francisco, costumam ser considerados os pioneiros do gênero, embora o Death, da Flórida, trouxesse em sua formação o finado cantor e guitarrista Chuck Schuldiner, figura que de tão influente para o crescimento de uma cena local, acabou sendo batizado de “Pai do Death Metal”.
Além de uma crescente onda de bandas de death metal em terras ianques, também proliferou uma escola de grupos na mesma pegada na Suécia, o tal Gothenburg metal que logo geraria um interessante filhote, o chamado death metal melódico de caras como At the Gates, Dark Tranquillity e In Flames, que misturam a agressividade do som death com os riffs e as guitarras harmônicas do heavy metal clássico, mais tradicional, da cena inglesa. Esta não é, no entanto, a única variação que o subgênero sofreu, se misturando por exemplo com o metalcore para gerar o deathcore. Ou ainda fazendo nascer o technical death metal, um estilo complexo de harmonias quase tão intrincadas quanto o metal progressivo, apesar de manter o peso corpulento.
Quando a gente fala do death metal raiz, na origem, no entanto, tamos falando de guitarras com afinação baixa e usando e abusando das distorções, bateria em altíssima velocidade e vocais geralmente guturais, de maneira profunda e bastante grave. E em termos líricos, apesar de algumas formações terem particular interesse por religião/ocultismo, outras gostarem bem daquele horror tipo Lovecraft e uma parte se aventurar por filosofia, política e ficção científica, o death acabou se consagrando pelas letras que invocam uma violência típica dos mais sangrentos filmes slasher, com atos extremos de mutilação, dissecção, canibalismo e até necrofilia.
Entende-se, portanto, que os pesquisadores tenham optado JUSTAMENTE por este gênero musical como seu objeto de estudo, não é mesmo? ;)
Há mais de uma década investigando os efeitos emocionais que a música pode ter, o professor Thompson e seus colegas se depararam com complexidades como o paradoxo que nos faz ouvir músicas tristes: afinal, por que iríamos querer ficar tristes? “O mesmo pode ser dito de músicas agressivas ou com temas violentos. Para nós, isso é um paradoxo psicológico e então, como cientistas, ficamos curiosos sobre isso”.
O estudo foi realizado com 32 fãs de death metal e 48 não-fãs, comparando as reações que cada um deles tinham ao escutar metal ou pop enquanto eram expostos a algumas imagens bastante desagradáveis. Trata-se de um experimento clássico para testar as respostas subconscientes, medindo como a sensibilidade do cérebro das pessoas era afetada diante da violência apenas por conta do acompanhamento musical. Os participantes ouviam uma música ou a outra nos fones de ouvido enquanto cada um de seus olhos era exposto a um tipo de imagem: de um lado uma pessoa feliz, caminhando pela rua; do outro, uma pessoa sendo atacada na mesma rua, por exemplo.
“O nome disso é rivalidade binocular”, explica a Dra. Yanan Sun, que liderou o projeto, ao mencionar a ferramenta usada para explorar a questão de como o cérebro resolve conflitos de percepção. Neste caso, a maior parte das pessoas, quando apresentadas a uma imagem neutra de um lado e a uma violenta do outro, tendem a se focar muito mais naquela bem mais violenta. “O cérebro vai prestar mais atenção ali – e presumivelmente, há uma razão biológica para isso, porque ele enxerga aquilo como uma ameaça”, completa Thompson.
Os resultados mostram, de acordo com os estudiosos, que se os fãs de música violenta ficassem insensíveis à violência, como defendem muitas associações de pais, grupos religiosos e censores, então eles não mostrariam o mesmo comportamento de repúdio com aquelas cenas. “Mas os fãs mostraram a mesma reação enviesada em relação ao processamento das imagens violentas que aqueles que não eram fãs desse tipo de música”, analisa o professor.
A canção mais pop do teste foi Happy, de Pharrell Williams. Essa é baba. Mas a parte mais pesada ficou por conta de Eaten, do segundo disco — Nightmares Made Flesh, de 2004 — do supergrupo sueco Bloodbath, formado por alguns dos maiores nomes deste tipo de música, egressos de bandas icônicas como Opeth, Katatonia e Paradise Lost. O tema da letra não poderia ser mais apropriado: alguém que se entrega como vítima voluntária para um canibal, um sujeito com particular interesse em carne humana. “I’ve had one desire since I was born / To see my body ripped and torn / To see my flesh devoured before my eyes”. É assim que começa a letra.
“A letra é apenas diversão, conforme o estudo mostrou. Basicamente, estamos falando da versão musical de um filme de horror dos anos 80”, defende o atual cantor da banda, Nick Holmes, que se juntou às fileiras há menos de cinco anos. “A maior parte dos fãs de death metal são pessoas inteligentes e sensíveis, que têm paixão por sua música. É o equivalente aos fãs de filmes de terror ou então de encenações de batalhas medievais, por exemplo”. E completa, brincando: “eu ficaria bastante surpreso se alguém ouvisse esta música e sentisse vontade de ser devorado por um canibal”.
O Professor Thompson concorda e diz que a reação emocional dominante no que diz respeito ao death metal do Bloodbath foi alegria e empoderamento. “E eu acho que ouvir essa música e transformá-la em uma experiência poderosa e linda – isso é uma coisa incrível”.