Porque uma discussão sobre cinema nunca é SÓ CINEMA
No início de maio, o governador da Geórgia, Brian Kemp, assinou o HB481, uma polêmica lei que proíbe mulheres de fazer aborto depois que as primeiras atividades cardíacas de um feto são detectadas, o que normalmente acontece com seis semanas de gestação — período em que muitas mulheres nem sequer sabem que estão grávidas. Esse projeto de lei permite que o Estado PROCESSE as mulheres que realizem um aborto de qualquer natureza, potencialmente submetendo-as à prisão perpétua ou à PENA DE MORTE. Essa é uma das leis de aborto mais restritivas dentre todos os Estados Unidos. Existem exceções apenas para casos que envolvem deformidades fatais, ameaças à vida da mãe ou casos de estupro e incesto nos quais um relatório policial for protocolado.
Aprovada pela primeira vez no Senado estadual em 22 de Março, a lei apelidada “projeto de batimentos cardíacos” gerou uma reação imediata na indústria do entretenimento com dezenas de estrelas de Hollywood prometendo que não trabalharão mais no estado, caso a lei fosse aprovada. Ela foi. E as manifestações se tornaram mais vocais.
Uma das primeiras a falar sobre isso abertamente foi a atriz e apresentadora Busy Philipps, no seu programa Busy Tonight, quando revelou que fez um aborto aos 15 anos. “Eu falei sobre o meu aborto no meu programa hoje porque não posso ficar de braços cruzados enquanto os direitos das mulheres são retirados”, afirmou Philipps ao compartilhar o vídeo da sua declaração no Twitter.
David Simon, criador de The Wire, também usou sua conta na rede social para prometer não trabalhar em produções filmadas no estado. “Não posso pedir a nenhum integrante de qualquer produção cinematográfica com a qual eu me envolva que se marginalize ou comprometa sua autoridade inalienável sobre seu próprio corpo”, afirmou. “Eu devo empreender a produção num lugar onde os direitos de todos os cidadãos permanecem intactos. Outros cineastas verão isso”, finalizou o produtor e roteirista.
O estado da Geórgia é conhecido por ser a casa das grandes produções de Hollywood, em parte por seus atraentes créditos fiscais de até 30%. E isso não se aplica apenas aos custos de produção, mas também aos salários dos atores, uma grande parte do orçamento. Em média, o estado recebe de 30 a 40 produções por ano, entre elas os filmes da Marvel — Vingadores: Ultimato e Guardiões da Galáxia Vol. 2 foram filmados no Pinewood Studios, em Atlanta. O estado também recebeu produções televisivas de sucesso, como The Walking Dead.
De acordo com a FilmLA, o estado conta com 60 estúdios e 1,2 milhão de metros quadrados de espaço disponíveis.
Segundo a MPAA (Motion Picture Association of America) – que afirmou estar “monitorando a situação” antes da aprovação, o setor de cinema e televisão é responsável por mais de 90 mil empregos e quase U$ 4,6 BILHÕES em salários totais na Geórgia, incluindo diretos e indiretos. De acordo com o gabinete do próprio governador, essas produções geraram U$ 2,7 bilhões em gastos diretos no estado durante o ano fiscal encerrado em 30 de Junho de 2018. Fora a quantidade de turismo que essas produções geram, já que agências especializadas usam programas como Stranger Things, The Walking Dead e Ozark para atrair visitantes.
Então, não seria um bom negócio para o estado perder esses empregos diretos e indiretos, além de toda essa grana despejada pela indústria. Certo?
Antes de o governador ratificar a decisão, a aprovação no Senado estadual estimulou muitos atores a reagirem contra o que então era só um projeto. Em março, Alyssa Milano enviou uma carta ao governador e ao presidente da Câmara de Representantes, David Ralston, prometendo que ela e outros 50 atores não iriam mais trabalhar na Geórgia caso o projeto fosse aprovado. “Esta lei perigosa e profundamente falha imita muitos outros momentos que já foram considerados inconstitucionais”, escreveu ela em uma carta assinada por Ben Stiller, Don Cheadle, Amy Schumer e vários outros.
Também em março, o Writers Guild of America chamou a lei de “draconiana” e afirmou que ela poderia tornar a Geórgia um lugar inóspito para aqueles que trabalham na indústria cinematográfica e televisiva, incluindo os seus mais de 20 mil membros. Em um comunicado divulgado publicamente, o sindicato dos roteiristas salientou que “é perfeitamente possível que muitos dos que estão em nosso setor desejem sair do estado ou decidam não levar produções para lá”. O WGA ainda declarou que esse é um ataque flagrante ao direito de cada mulher de controlar seu próprio corpo.
Apesar dessas primeiras reações, a resposta a essa legislação tem sido relativamente moderada por parte dos grandes estúdios, apesar da oposição dentro da indústria estar crescendo a cada dia. Uma dessas oposições foi do apresentador John Oliver, que falou sobre a lei e sobre os políticos que a apoiam no Last Week Tonight. Assim como Milano, Oliver descreveu a lei como “flagrantemente inconstitucional”, mas observou que legislações punitivas semelhantes surgiram em vários estados dos EUA só neste ano — o que poderia fazer com que essas leis fossem levadas à Suprema Corte, que está se tornando cada vez mais conservadora e, bem...
Mas essa não é a primeira vez que a Geórgia é pressionada por Hollywood. Em 2016, grandes estúdios ameaçaram sair do estado se fosse aprovada uma proposta de lei que protegia os responsáveis religiosos que não aceitassem realizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo e permitia que organizações de base religiosa recusassem serviços ou emprego a pessoas que violassem suas crenças. Com oposição de grandes conglomerados como Apple, Coca-Cola e a própria NFL, a proposta foi barrada pelo então governador Nathan Deal.
Apesar de aparentemente os americanos se tornarem mais favoráveis aos direitos LGBTQ+, as opiniões sobre o aborto mudaram um pouco ao longo dos anos, com grupos sendo radicalmente contra. Qualquer empresa que assuma uma postura mais firme sobre essa lei na Geórgia corre o risco de perder parte do seu público que é anti-aborto. Por questões financeiras e políticas, parece que os estúdios decidiram esperar como essa questão se desenrolará nos tribunais, já que a União Americana de Liberdades Civis prometeu contestar a decisão.
Mas não deixa de ser decepcionante que esses grandes estúdios não estejam usando seu poder financeiro para proteger os direitos das mulheres. Ao assinar a lei, o governador Kemp afirmou que “não podemos mudar os valores de quem somos por dinheiro”, então talvez a única solução possível seja Hollywood fazer as malas e sair da Geórgia o mais rápido possível.