Morre não apenas o músico cheio de técnica por trás do imenso kit de bateria do Rush, mas também o seu principal letrista, a alma do trio canadense, um homem que até o final não se deixou deslumbrar pelos holofotes da fama
Chega a ser bastante curioso que um dos primeiros e maiores ídolos de Neil Peart, o comandante das baquetas do Rush, antes que ele se interessasse pela pegada de jazzistas como Gene Krupa e Buddy Rich, fosse justamente um cara como Keith Moon. O baterista do The Who era igualmente um monstro no seu instrumento, mas estamos falando de um furacão dentro e fora do palco. Excêntrico, hiperativo, autodestrutivo, Moon era a incorporação suprema do rock star clássico, embevecido tanto pela fama quanto pelo álcool, adepto do esporte da demolição de instrumentos em pleno palco e de quartos de hotel. Peart não poderia estar mais longe deste perfil. Na real, era o extremo oposto.
Bastante discreto, introspectivo, leitor (e, posteriormente, também escritor) fanático, Peart não era dos mais afeitos a entrevistas e tampouco às luzes da fama — a letra de Limelight é rigorosamente sobre isso, aliás. No geral, incorporava a figura estereotipada do nerd com pouco traquejo social, que depois rapidamente migrou para o restante da banda, tratada inicialmente com desdém pela crítica como “rock para os geeks”. Conforme os anos passaram, a contribuição do Rush e principalmente do baterista para o rock foram sendo reconhecidas. As últimas décadas, aliás, serviram como uma espécie de vingança sutil para o Rush, cada vez mais reconhecido por toda uma geração de fãs famosos, como a dupla Dave Grohl e Taylor Hawkins, do Foo Fighters.
Afastado do Rush desde 2015, quando completou a R40 Tour, série de shows que celebravam justamente os seus 40 anos como integrante do trio, já sofrendo de uma tendinite crônica e problemas no ombro, o chamado Professor temia que sua performance pudesse ser afetada e preferiu sair de cena no topo. “Não me dói perceber que, da mesma forma que acontece com os atletas, chega um momento em que você tem sair do jogo”, afirmou ele, num papo com a revista Drumhead Magazine. “Eu prefiro que seja assim do que ter que encarar o dilema que descrevemos em nossa canção Losing It“. A letra da faixa fala sobre uma bailarina e sobre um escritor que, longe de seus dias de glória, ainda vivem tentando encontrar os ecos de velhos aplausos.
Não só foi discreta a sua saída de cena, encerrando de forma bastante reservada, sem pompa e circunstância, sem bombásticas turnês de despedida, a carreira de uma banda gigantesca como o Rush, mas também foi a inevitavelmente triste despedida de Neil Peart. No último dia 7 de Janeiro, aos 67 anos, o músico acabou morrendo em decorrência de um câncer no cérebro. Uma doença que era uma espécie de segredo bem guardado apenas dentro de um círculo fechado de amigos e familiares. Pessoas queridas com as quais ele preferiu passar um pouco mais de tempo ao invés de continuar com a exaustiva rotina de turnês.
Lá em 2015, alguns meses antes de Peart anunciar oficialmente a sua aposentadoria, aliás, a gente publicou aqui um texto sobre qual é a hora certa de parar para estes grandes medalhões do rock, justamente levando em consideração a turnê de encerramento definitivo (?) de atividades do Black Sabbath. “Para os fãs, vale a pena continuar acompanhando ano após ano uma banda que vai se destruindo, que vai se desfazendo, que insiste em discos que são gravados no piloto automático, pra cumprir tabela e garantir shows que vão ficando cada vez mais burocráticos e broxantes, sem energia?”, perguntei eu. “A idade chega para todos. Não dá mais para pular, gritar, correr como antes. E quando se é uma estrela do rock, é muito difícil olhar para trás, para todas as conquistas, para o estilo de vida louco e selvagem, e admitir: pra mim, já deu. É hora da aposentadoria”.
Peart entendeu suas limitações e soube parar na hora certa. Basta ver os diversos comentários de músicos inspirados por ele no momento de sua partida para entender que o legado que ele deixou é o que realmente importa, ao invés da lembrança de uma sombra triste.
Nascido em 1952 nos arredores de Hamilton, cidade portuária na província canadense de Ontario, mudou-se ainda criança para Port Dalhousie, onde viveu a maior parte de sua infância feliz e contente. Mais velho de quatro irmãos, passou a se interessar por música na adolescência, quando comprou seu próprio rádio transistorizado e passou a sintonizar as principais estações musicais locais. A mania de sair batucando tudo por aí já mostrava qual era o futuro possível do moçoilo — e tanto seus pais sacaram o caminho que, depois de um par de baquetas e uma pequena bateria para treinamento, aos 14 anos o presentearam com uma bateria completa. Começou a fazer aulas e, depois do primeiro grupo que integrou, The Eternal Triangle, pulou de banda em banda tentando encontrar seu caminho, já arriscando fazer apresentações ao vivo e compor das suas.
Aos 18 anos, foi tentar a sorte em Londres, como músico profissional, mas além de não ter encontrado o seu lugar, também não conseguiu SE encontrar, porque achou que tinha estacionado em seu desenvolvimento com as baquetas. De volta ao Canadá, curiosamente foi recrutado por um grupo chamado Hush, que tocava no circuito de bares. Mas as coisas mudaram MESMO quando o cara teve a felicidade de descobrir, via amigos em comum, que um trio chamado Rush, de Toronto, tava buscando um substituto pra John Rutsey, seu baterista original, que enfrentava problemas de saúde que o impediam de sair em turnê. Embora a primeira audição tenha sido, digamos, tumultuada, já que aquele grandalhão desengonçado, do alto de seus 1,93m, não deixou lá uma impressão incrível pelo menos no guitarrista Alex Lifeson, Peart acabou sendo aceito.
Enquanto desenvolvia a olhos vistos seu próprio estilo, acrescentando técnica e precisão, aliados a muito bom gosto, a uma herança performática que inicialmente veio do estilo meio maníaco de bateristas como seu ídolo Moon, John Bonham (Led Zeppelin) e Ginger Baker (Cream), da escola britânica, Peart também assumiu um papel inesperado no grupo: o de letrista. Lifeson e Lee não estavam lá muito interessados em escrever e, como o baterista já tinha arriscado suas composições próprias previamente, foi buscar uma coisa antiga aqui, outra ali, burilou umas ideias inspiradas nos livros de fantasia e ficção científica que tanto amava e bingo: este segundo cargo era oficialmente seu.
“Escrever letras, assim como tocar sua bateria, era algo que ele fazia com muita seriedade e respeito”, diz, em entrevista pro NPR Music, Donna Halper, professora associada de estúdios sobre a mídia da Lesley University. A acadêmica tem uma conexão importante com o Rush: em sua época como diretora e DJ da lendária rádio WMMS, em Cleveland, lá pelo ano de 1974, ela teve acesso a uma cópia importada do single Working Man, que a interessou de imediato e fez ser uma das principais responsáveis pelo contrato americano que os faria explodir para além dos limites canadenses.
“Existe um estereótipo sobre o rock, sobre ser mundano e previsível. Mas as letras de Neil não eram nem uma coisa nem outra. Ele tinha a habilidade de descrever ideias complicadas em uma música de rock”, afirma ela. “Ele fez observações sobre o mundo com as quais o fã comum conseguia se relacionar, e encorajou as pessoas a pensarem por si mesmas, a defenderem o que acreditavam”. No fim, Peart ficou conhecido como um letrista bastante filosófico, que falava não apenas sobre a vida na estrada como também fazia críticas ácidas à ânsia pelo poder, disfarçando comentários sociais e políticos em metáforas que, no conjunto, podemos descrever como anti-totalitarismo.
Mas, sim, não dá pra esquecer o momento Ayn Rand. Tal qual Steve Ditko, o outro pai do Homem-Aranha, quando era jovem Peart ficou fascinado pelo trabalho da escritora russo-americana, mãe do chamado objetivismo, linha de pensamento que os conservadores amam de paixão até hoje, ainda incrivelmente influente em esferas filosóficas e econômicas nos Estados Unidos. Essencialmente? Tamos falando aí de um individualismo extremo, a completa antítese de qualquer forma de coletivismo, “o altruísmo é incompatível com a natureza humana”. Ou, conforme diz a Wikipédia: “o objetivo moral da vida humana é atingir a própria felicidade ou interesse racional, que o único sistema social consistente com esta moralidade é um que respeite os direitos do seres humanos à vida, liberdade, propriedade e busca à felicidade, ou seja, capitalismo laissez-faire”. Deu pra sacar, né?
Uma das obras mais cultuadas do Rush, o álbum conceitual 2112, lançado em 1976 e com uma história futurista distópica, é inteiramente baseada em Rand. Uma escritora que, com o passar dos anos, passou a se comunicar cada vez menos com o pensamento de Peart, aliás. “Ah, não, isso foi há 40 anos”, afirmou ele numa rara entrevista pra Rolling Stone, em 2012. “Mas foi algo importante para mim num período de transição, de me encontrar e ter fé que aquilo que eu acreditava valia a pena. (...) Para mim, foi uma afirmação de que é certo acreditar totalmente em algo e viver por isso e não se comprometer. Era simples assim. Eu tinha vinte e poucos anos. Eu era uma criança”.
De qualquer forma, as crenças pregressas de um jovem Peart, retratadas em 2112, geraram uma hoje infame matéria na revista NME, dois anos depois do lançamento do disco, na qual a banda toda é retratada quase como “proto-fascista”. Em 2017, a Classic Rock trocou uma ideia com o músico, que tinha uma lembrança meio amarga daquele papo. “Eu lembro bem da entrevista porque a conversa foi ótima. E todos nós nos sentimos totalmente traídos porque compartilhamos um período de tempo excelente com o jornalista. Me lembro que ele foi tão cortês, tudo foi tão amigável. Pelo que me lembro, estávamos tendo uma conversa de cunho intelectual. Mas estas coisas são sempre abertas à interpretações errôneas e este foi um caso clássico”.
Quando perguntado sobre política, nos anos mais recentes, o baterista e letrista tratou de deixar claro que é um libertário. Mas o que ele chama de um “bleeding-heart libertarian”, um libertário com todas forças. “Porque acredito nos princípios do libertarianismo como ideal – já que sou idealista. A definição de ‘cínico’ de Paul Theroux (Nota do Editor: premiado escritor americano) é ‘um idealista decepcionado’. Então, ao passar dos vinte anos, seu idealismo será decepcionado muitas e muitas vezes”, explicou o baterista. Caso você não faça ideia do que estamos falando, o libertarianismo (ou “libertarismo”, como feito em algumas traduções) é uma filosofia política que basicamente acredita que o objetivo da política deve ser maximizar a autonomia e a liberdade de escolha, com máximo respeito à propriedade privada. Nos dias de hoje, é um conceito bastante ligado aos chamados anarcocapitalistas... o que não é, vamos lá, uma notícia muito boa, né?
De qualquer forma, Peart completa: “Eu trouxe a minha opinião para este conceito e percebi que o libertarianismo, como eu entendia, era muito bom e puro e todos nós seríamos bem-sucedidos e generosos com os menos afortunados. Mas logo vi, é claro, o modo como isso é distorcido pelas falhas da humanidade. E é para isso que eu evoluo agora. Para um libertário com todas as minhas forças, de coração aberto”. E na conversa com a Classic Rock, ele ainda elabora: “eu ampliei minha visão para fora do escopo clássico do libertarianismo. Eu não quero que as pessoas tenham que sofrer. Simples assim. Se as pessoas estão sofrendo e eu posso ajudar, farei isso”.
Importante lembrar ainda que a menção de Peart a Paul Theroux não é à toa. Um dos mais prolíficos e premiados escritores norte-americanos da atualidade, autor de sucessos como A Costa do Mosquito, o autor é principalmente lembrado por seus relatos de viagem — algo que o músico, em sua faceta de escritor, também fez bastante. “O que fazia Neil ser um escritor tão bom é que ele adorava ler”, diz Halper. “Ele realmente amava e respeitava livros. Ele amava boa literatura — eu e ele já nos sentamos uma noite pra discutir a obra de Shakespeare —- ele amava poesia, filosofia. Ele valorizava uma ótima conversa. Ele era um pensador, no verdadeiro sentido da palavra”.
O envolvimento de Peart com a literatura, que seria a fagulha para sete livros de não-ficção assinados por ele e uma série de outras colaborações com outros autores, no entanto, começaria de maneira trágica. Em agosto de 1997, logo depois da conclusão da turnê Test for Echo Tour, sua filha Selena, de 19 anos, morreu em um acidente de carro. Aquilo já foi terrível, mas a vida ainda reservava um destino ainda pior para o seu coração porque, 10 meses depois, sua esposa Jacqueline também faleceu, vítima de um câncer. Então, o músico tirou um período sabático do grupo em busca de reflexão e autoconhecimento. Sozinho, montado em sua moto, ele percorreu cerca de 90.000 quilômetros, um homem sem motivação, esperança ou fé, buscando preencher um vazio. O resultado desta jornada emocional tornou-se o seu livro de maior impacto, Ghost Rider: A Estrada da Cura (ele já tinha lançado, sem tanto impacto, O Ciclista Mascarado, sobre uma viagem que fez de moto pelo Camarões em 1988).
Novamente apaixonado, agora pela fotógrafa americana Carrie Nuttall, com quem ficou até o fim de sua vida, Neil estava preparado para retornar ao Rush em 2001 — a partir do novo álbum que viria a seguir, Vapor Trails (2012), combinou-se que Peart não faria parte da exaustiva rotina de entrevistas e sessões de meet and greet com fãs, justamente para preservá-lo da exposição e evitar perguntas recorrentes sobre os trágicos eventos de sua vida. Mas isso jamais impediu, por exemplo, que ele enviasse cartões postais escritos à mão para as pessoas que escrevia para ele perguntando, por exemplo, sobre suas técnicas de bateria ou pedindo dicas de carreira no meio musical. Um gentleman.
“Ele era de, várias maneiras, o outsider, o cara que muitas vezes era diferente de todos os outros”, diz Halper. “Mas estava tudo bem pra ele ser assim. Aliás, ele não queria ser como todo mundo. Ele só queria ser Neil. Ele adorava ser baterista de rock, mas também amava literatura. Ele amava poesia. Ele amava o ar livre. Ele não importava com o que a sociedade pensava que um astro do rock deveria ser – ele não tinha medo de ser ele mesmo e não se importava com a fama. Ele só queria ser bom no que fazia – e era! – e só queria compartilhar sua música com os fãs”.