O evento, que aconteceu neste último fim de semana, teve acertos e erros – revelando que, assim como o espaço de eventos no qual aconteceu, ainda está em obras e não chegou próximo do potencial que tem
Existia algo mágico na primeira vez que fui à San Diego Comic-Con. É como se você fosse pinto no lixo. A magia pode até diminuir com o tempo, mas é algo que fica eternamente no olhar de quem está no centro de convenções californiano. É um brilho único, mas algo que até se repete em outros eventos do gênero lá fora.
Eis que, no começo de 2014, duas empresas afirmaram que trariam esse “brilho” ao olhar brasileiro. Duas Comic Cons, com exatos 17 dias de diferença entre elas. A primeira, Brasil Comic Con, já aconteceu, foi neste último fim de semana. O JUDÃO esteve lá, registrou os momentos, mas... Não encontrou esse olhar.
O evento, organizado pela Yamato (também responsável pelo AnimeFriends), aconteceu no Centro de Eventos Pro Magno, recém-inaugurado. Ou quase isso: parte do local está ainda em obras. Estacionamento, fachada, acesso principal e todo o terceiro andar estavam com a construção em pleno vapor. “Quando estiver 100% concluído, o Pro Magno será certamente um grande nome entre os centros de eventos de São Paulo”, explica Leandro Cruz, coordenador geral da BCC.
Apesar da fase “em obras”, o Pro Magno foi bem visto por gente do mercado. “O espaço é muito legal, um novo espaço para eventos em São Paulo é interessante”, relatou Sidney Gusman, editor da Mauricio de Sousa Produções e que esteve na convenção no sábado. “O local estava pouco ocupado, não sei se por causa da proximidade com a Comic Con Experience”, comentou. Ainda assim, existe uma ressalva a se considerar: trata-se de um lugar de acesso não tão simples. Longe do metrô, o que é uma facilidade para o público jovem de São Paulo, ele só era acessível a partir de um ônibus municipal a ser tomado a partir das estações Santana ou Barra Funda – e que fazia um trajeto longo e complicado até lá. A organização, a exemplo do AnimeFriends, não oferecia qualquer tipo de traslado para o local.
Indiretamente ou não, esse visual de “obras em andamento” ocupou todo o espaço da BCC. Desde o chão revelando o contrapiso recente (sem um carpete, ou algo do tipo), aos estandes mal pensados e distribuídos – o que repercutiu em espaços vazios em alguns pontos, estreitos e lotados em outros. A organizadora informa que 14 mil pessoas passaram pela Comic Con no sábado (15) e no domingo (16). A projeção inicial era de 15 mil pessoas.
Apenas para comparação: o SANA – maior evento de cultura japonesa de Fortaleza e que tem, recentemente, começado a abraçar a cultura pop em geral – registrou 70 mil visitantes em seus três dias, na última edição. O próprio AnimeFriends, que durou oito dias em 2014, contou com 120 mil pessoas no total, de acordo com os números oficiais. No mundo, os maiores eventos do gênero são a San Diego Comic-Con (que divulga apenas ter tido “mais de 130 mil visitantes” em seus quatro dias e meio) e a New York Comic Con (que chegou aos 151 mil este ano, durante quatro dias).
Outro detalhe que merece ser comparado é o palco principal. Na BCC, a exemplo de eventos como youPIX e Campus Party, tinha um palco aberto em relação ao pavilhão, o que não só faz um espaço atrapalhe o outro, como tira a ~exclusividade e controle daquele espaço. Eventos como a NYCC, SDCC, SANA, Disney D23 Expo e tantos outros têm os espaços dos painéis fechados, algo que melhora consideravelmente a experiência e deixa os presentes mais seguros para divulgar coisas exclusivas.
Devir, Impacto Quadrinhos, HQM Editora, New Pop, Mythos e Editora Europa estiveram no evento – mas foi só isso. Não tivemos grandes editoras, empresas de cinema, TV e games participando, nem nada disso. Até mesmo a Comix, sempre presente neste tipo de convenção e com milhares de títulos a venda, não esteve lá.
Nem a Panini, maior editora de quadrinhos no Brasil, que possui os direitos de publicação da Marvel e DC e que seria a principal interessada em participar da BCC, não esteve lá. “Não nos procuraram a tempo”, contou o editor Levi Trindade durante o Festival Guia dos Quadrinhos, em outubro, com uma cara de quem comeu e não gostou.
Talvez você não saiba, mas um evento como a San Diego Comic-Con ou a New York Comic Con não acontecem por si só. Eles contam com a adesão das empresas importantes do mercado de entretenimento e cultura pop – gente que faz o trabalho mais difícil, o de levar os convidados mais famosos, os caras que estão nas séries de TV e filmes que estão bombando agora.
Se em San Diego tivemos as presenças de Ben Affleck, Henry Cavill e Gal Gadot, é porque a Warner resolveu levá-los, por exemplo. A organização da SDCC simplesmente cedeu o espaço e vendeu os ingressos.
Sem esse apoio, a Yamato fez os contatos para trazer as grandes atrações por conta própria. Foi assim com o Paul Zaloom (o Beakman), Sylvester McCoy (o 7º Doctor e o Radagast de O Hobbit) e Takumi Tsutsui (o Jiraiya), que foram os grandes convidados deste ano. E seria assim com Alfonso Ribeiro (o Carlton de Um Maluco no Pedaço) e a Cassandra Peterson (a Elvira), que cancelaram a participação – resultando na ira de muita gente que tinha comprado ingressos para a BCC. Simplesmente porque, no Brasil, se vai a eventos por causa dos convidados, e não do evento em si — um erro dos eventos que tentam vender ingressos com base nos convidados e, claro, do público, que só compra esses ingressos depois de anunciados os convidados.
Ainda assim, a Yamato aposta que o cenário deve mudar na próxima edição. “Representantes de empresas que optaram por não participar do BCC 2014 estiveram no evento e conheceram nossa proposta e estrutura. Acreditamos que no próximo BCC o cenário será bem diferente”, afirma Leandro Cruz.
Tudo, claro, tem dois lados. A ausência da Comix e da Panini deixou um vácuo que acabou sendo preenchido por quem usou a BCC para tocar as suas próprias vendas. Foi o caso da HQM Editora, que é responsável pela edição brasileira de The Walking Dead. “Nossas vendas foram incríveis”, conta Artur Tavares, que é sócio-diretor e editor. “Nós éramos a melhor opção de compra lá. Mas se a Panini estivesse presente, a gente não venderia tanto”. Pra ele, o custo menor para participar da BCC, em comparação com a CCXP, também facilitou no lucro maior. Além disso, a editora viu a Brasil Comic Con com um evento maior nos quadrinhos, com poucos convidados relacionados a outras mídias – o que garantiu mais destaque e espaço no bolso dos visitantes.
Para os brasileiros que estavam no Beco dos Artistas, a versão do Artists’ Alley da convenção, as vendas também foram boas. “Vi muita gente, mas muita gente comprando quadrinho nacional. Conversei com alguns autores que estavam lá e estavam vendendo bem”, nos relata Sidney Gusman. “Eu fui no sábado, e teve autor que falou que talvez não tivesse material pro domingo. Era nítido também que o público era um pouco mais adulto que o que vai em festival de anime e mangá. Claro que há as interseções, mas o público de quadrinhos estava bastante presente”.
Victor Freundt também esteve por lá, aproveitando a mesa do editor e quadrinista Raphael Fernandes para lançar a HQ Terra Morta – A Obsessão de Vitória, do selo Contraversão e baseado no conto de Tiago Toy. “Eu consegui ir apenas domingo, e me arrependo amargamente de não ter ido sábado!”, relata Freundt, trazendo uma visão um pouco diferente do Beco e revelando que o segundo dia não foi tão bom quanto o primeiro. “Não que sábado tenha vendido assim ‘óóó’ mas, vendeu bem mais. O Rapha acabou vendendo muito mais por ser mais conhecido, e o Apagão já estar no Catarse, porém acho que consegui também pegar embalo nos contos do Tiago Toy e a HQ saiu até que bem no sábado. Porém, domingo... Domingo pra venda foi horrível! Nego tava lá pra ver bundinhas de cosplayers e escutar Família Lima, ver Doctor Who”. O quadrinista finaliza: “Não dá pra misturar bundinhas com HQ independente, é desleal!”.
“Dentro dos meus objetivos, não foi sensacional, mas também ficou longe de ruim”, nos conta Emílio Baraçal, editor e roteirista que aproveitou a convenção para dar ao público o primeiro gosto da linha de HQs da Supernova Produções – e isso diretamente no Beco dos Artistas. “Como a revista ainda estava rodando na gráfica, assim como as canecas e camisas, não tínhamos nada pra vender lá. Então, nosso objetivo foi apenas mostrar nossa cara, mostrar nossa existência. Não era vender. Boa parte do que ficou nas mesas eram os originais do que estamos produzindo, ou seja, não é material de venda. Era pro povo perguntar e saber mais. Teve momentos em que nossas mesas ficavam lotadas e a mesa do Arthur Suydam, por exemplo, ficava vazia. E é o Suydam [que contribuiu com revistas como a Heavy Metal e fez as capas de Zumbis Marvel]!”.
Mas quem realmente vendeu muito bem não tem relação alguma com quadrinhos. Ou cultura pop. Os ~food trucks, que ocuparam o espaço anexo ao centro de convenções, atraíram um bom público com preços sinceros e boa comida. As vendas foram tão boas que alguns fecharam mais cedo, enquanto outros tiveram que correr para repor pão (!) e hambúrguer (!!). A iniciativa foi claramente uma bola dentro da organização, aproveitando a recente onda de gourmetização paulistana da boa e velha TOWNER DE DOG.
O que também faz uma Comic Con ser uma Comic Con é a plataforma que traz para a própria indústria divulgar seus novos projetos e realizar lançamentos – só que isso não foi visto na Brasil Comic Con. “O Samir foi pelo Universo HQ e ele falou que sentiu falta de novidades, de os caras poderem falar alguma coisa de diferente”, contou Gusman, que também é editor do site segmentado em quadrinhos. “Isso foi fruto de ser a primeira como evento solo. Nesse aspecto, e não tem como fugir da comparação, a Comic Con Experience anuncia que terá duas pré-estreia de cinema, do Hobbit e Big Hero 6. Isso vai chamar público pra cacete”.
Também não houve nenhum grande lançamento de quadrinhos. Mesmo os convidados estiveram presentes pelo passado, não pelo futuro. Um exemplo foi o painel com James O’Barr, o criador de O Corvo, que rendeu bem – mas nada que fosse inédito. Quer dizer, ele até falou um pouco sobre o novo filme do personagem...
Apesar do bom resultado nas vendas e dos 14 mil visitantes, a convenção parecia ainda mais vazia – principalmente no domingo. Os motivos já foram citados aqui, mas os principais foram mesmo as atrações canceladas e a proximidade entre a BCC e a CCXP. “Acho que é uma lição pra organização dos dois eventos, pra tentarem se conversar, planejar melhor, distribuir o calendário ao longo do ano”, comenta Artur Tavares, da HQM. “Acho que deveria haver um denominador comum no que diz respeito aos valores de ingressos, e também nos valores cobrados por estandes”. O editor também não vê o movimento do evento como fraco. “Não estava mega cheio, mas deu um bom movimento, sim”.
“Pouca gente foi no painel”, relatou Emílio Baraçal, da Supernova. “Era o primeiro painel do primeiro dia da Brasil Comic Con. Os portões haviam sido abertos há pouco. Ou seja, dificilmente haveria muita gente. Horário horrível. Então, compreensível”.
Sidney Gusman vê espaço para as duas conferências, mas não no formato que vimos em 2014. “Eu espero, de verdade, que tenhamos mais edições da Brasil Comic Con. Mais organizadas, com mais gente, com mais público, mais artistas, com mais atrações, só que espero de verdade, de coração, que não seja tão próxima uma da outra. Que a gente tenha uma Comic Con em São Paulo a cada semestre. Concorrência é bom demais, desde que ela não seja predatória. Desde que os eventos não sejam tão próximos um do outro, porque isso acaba impactando diretamente no bolso um do leitor, cara. Ele não vai ter grana pra ir nos dois eventos”.
No final, fica que Yamato e Omelete/Chiaroscuro (que organizam a CCXP) precisam se entender e que mesmo que sejam concorrentes entre os eventos de São Paulo, uma não precisa tentar ofuscar a outra. Além disso, a Yamato não pode mais encarar a Brasil Comic Con como encara o AnimeFriends. Uma convenção neste formato é mais do que dois ou três convidados do passado – e que já estiveram no Brasil (como o Beakman e o Jiraya). Uma Comic Con, aliás, não pode tentar se vender com foco nos convidados, na atração que as celebridades exercem. É isso, mas não apenas isso ou principalmente isso. Os painéis precisam ser atrativos, trazer anúncios, novidades – para que eles fiquem de pé e se sustentem sozinhos, para que o público se interesse sem necessariamente esperar por aquele famoso subir ao palco. É necessária uma agenda diversa, que vá além desses três ou quatro convidados-chave, fundamental para prender o público durante todo o dia e evitar que ele apenas circule e, pouco tempo depois, simplesmente vá embora.
É preciso também convencer o mercado para que ele, como um todo, abrace a Comic Con e a presença do público seja garantida por este todo. Estando ou não ciente disso tudo, a organizadora se mostra satisfeita com o que foi feito e confiante sobre o futuro. “Estávamos cientes dos desafios de fazer a BCC, um evento pioneiro neste gênero no Brasil. Assim, avaliamos que foi um ótimo começo para as coisas que estão por vir”, finaliza Leandro Cruz, deixando nas entrelinhas que teremos outra edição no ano que vem.
Não dá pra saber como a Comic Con Experience (que acontece entre 4 e 7 de dezembro) será, mas uma coisa é certa: se os dois eventos fizerem a lição de casa para 2015 – e se entenderem, os amantes de cultura pop brasileiros e paulistas só têm a ganhar.
Agora, se não fizerem...
* Crédito da imagem de destaque: Carlos Neres, via Flickr.