A tradução equivocada de um gibi da Panini acabou chamando atenção para um namoro que muita gente nem sequer imaginava que rolou um dia na cronologia da Marvel
Enquanto o Wander Wildner tem uma camiseta escrita “Eu Te Amo”, a Harpia da Marvel tem uma que diz “Ask Me About Me Feminist Agenda”. A camiseta do Wander nem deu muita treta, apesar da letra esquisitona que fala sobre um cara que enche a cara e fica trancado no quarto se masturbando. Mas a da Harpia, ah, essa deu bastante pano pra manga, principalmente quando foi parar na capa de um gibi e tirou do esgoto o lado mais nojento dos fãs de quadrinhos.
Mas eis que, recentemente, aqui no Brasil, a tal camiseta virou objeto de polêmica mais uma vez... só que, vamos combinar, pelo motivo CERTO. Ou, pelo menos, por um motivo minimamente justo.
No número 25 de O Espetacular Homem-Aranha, edição nacional das aventuras do Cabeça de Teia publicada pela Panini Comics em novembro, a dita cuja apareceu sendo trajada por ninguém menos que Peter Parker. Mas, como é de costume, a editora resolveu traduzir o que tá escrito nela. E aí rolou um “Me Pergunte Sobre Minha Agenda Feminina”.
É isso. “Feminista” virou “Feminina”. E o sentido da mensagem se perdeu completamente.
Estariam os editores brasileiros com medo da reação que a palavra “feminista” pudesse causar nos machões dodóis que leem quadrinhos e que, de alguma forma, foram responsáveis por um processo de emcimadomurização da Marvel Comics lá fora? Pelo menos esta foi a aposta da maior parte da galera que começou a compartilhar furiosamente a imagem nas redes sociais, em tom bastante justo de indignação.
A gente foi trocar uma ideia com a editora que, por meio de sua assessoria de imprensa, pelo menos não quis fugir da responsabilidade. “A Editora Panini esclarece que houve um erro de tradução na palavra ‘feminist’, que deveria ter sido traduzida para ‘feminista’. A empresa já tomou as devidas providências e se responsabiliza para que situações como essa não voltem a ocorrer, uma vez que o respeito pelo público é imensurável. A tradução no material foi retificada para as futuras publicações em que o conteúdo for utilizado”, afirmaram, no comunicado oficial.
Teve gente defendendo que a Panini nem devia ter traduzido a parada, que era melhor ter deixado em inglês até porque, em 2016, quando estourou a história da Chelsea, um monte de minas fez camisetas com o texto original e, portanto, tava mais do que explicado o contexto pro público que lê gibis.
Na mesma pegada, outra galera se emputeceu com o “desconhecimento” que o tradutor tinha não apenas da língua anglo-saxã mas também do mercado de HQs. E, do ooooooutro lado, tinha uma galera falando que, pô, tamos no Brasil, nem todo leitor eventual de gibi é um rato de sites de notícias sobre cultura pop, é preciso tropicalizar...
Opinião todo mundo tem. Mas aquela que, definitivamente, é mesmo a mais cagada é aquela que veio da inevitável turminha do passa-pano, que apareceu com “é o Peter, não é a Bobbi, e se for OUTRA camiseta, como vocês são chatos, ai o politicamente correto, mimimi”. ENTÃO. Se você olhar a imagem do original, The Amazing Spider-Man 789, publicada lá fora em dezembro de 2017, vai ver que se trata do MESMO TEXTO. Mas quem se deu ao trabalho de pelo menos LER a história vai sacar que o próprio Peter diz, quando se levanta esbagaçado do sofá da Bobbi: “A camisa é sua”.
Sim, Peter Parker estava dormindo na casa de Bobbi Morse e usando a camiseta DELA. Porque os dois tavam namorando na época. Pois sim, o Homem-Aranha foi, durante um tempo, par da Harpia. Caso não tenha ficado claro, aquela mesma que foi criada meio que pra ser a Canário Negro do Gavião Arqueiro e acabou até se casando com o igualmente insuportável e carismático Clint Barton.
SPOILER! Claro, vamos lá, é preciso levar em consideração que, cronologicamente, os gibis da Marvel publicados no Brasil estão cerca de um ano atrás do que tá saindo lá nos EUA. Então, lá fora a gente já sabe que finalmente Peter Parker e Mary Jane voltaram a ser um casal, justamente quando Nick Spencer (Império Secreto) assumiu os roteiros da principal revista do personagem depois de uma década de incansáveis trabalhos de Dan Slott. Se confirmaram as suspeitas de que os efeitos de Um Dia a Mais, aquela bizarrice do Mefisto estalando os dedos para apagar o casamento dos dois da história pra salvar a Tia May da morte, começariam a ser ignorados/deletados em algum ponto.
Aqui no Brasil, no entanto, estamos falando do momento em que as Indústrias Parker enfim foram levadas à falência, quando Peter foi obrigado a sacrificar a sua própria tecnologia para impedir que ela caísse nas mãos do Doutor Octopus Superior, a versão de Otto de volta num corpo que é uma cópia perfeita do Cabeça de Teia e trabalhando para a versão maléfica do Capitão América, líder da Hydra e devidamente sentado na cadeira principal da Casa Branca.
De jovem milionário e astro emergente do mercado de tecnologia/inovação, uma espécie de aspirante a Tony Stark, o sobrinho da Tia May voltou a ser um trintão falido, sem ter onde cair morto. Ah, o velho azar dos Parker... E o que é pior: com uma reputação jogada na lama, acusado de ter deixado um monte de gente sem emprego, de ter exposto os dados de quem usava os seus aparelhos eletrônicos... Se JJJ ainda fosse editor do Clarim Diário, a versão sem máscara do herói concorreria com o seu alter-ego mascarado pra ver quem garantia a manchete mais escrota.
O ponto é que, quando derrotou o Homem-Aranha Superior e reassumiu o controle de seu próprio corpo, tornando-se CEO das Indústrias Parker, ele também virou fornecedor de tecnologia pra SHIELD. E adivinha quem foi designada pra ser seu elo de ligação com a organização de Nick Fury? A agente especial Bobbi Morse, aka Harpia. Logo ela descobriria a identidade secreta do Escalador de Paredes (porque, afinal, este lance de “este é o meu guarda-costas” funcionava só na época do Ferroso) e começaria a sair em missões junto com ele. As piadinhas viraram flertes e a química ficou absolutamente evidente. Aí rolaram os primeiros beijos e então... BINGO. Surgia um novo casal.
O rompimento dos dois talvez tenha sido uma das maiores cagadas narrativas da Marvel nos últimos anos, aliás. Porque o casal realmente funcionava. Não era uma parada forçada, aconteceu naturalmente, fazia sentido pra caramba dentro da história e deu certo.
Uma vez, num dos meus primeiros textos sobre gibis publicados no JUDAO.com.br, lá na ooooooutra fase do site, eu cheguei a escrever uma daquelas indefectíveis listas, que desta vez versava sobre “as melhores namoradas do Homem-Aranha”. A ideia era analisar quem funcionava melhor com ele dentro das tramas, quem era o par que gerava as histórias mais interessantes. E neste sentido, minha opinião se mantém a respeito do primeiro lugar: Felicia Hardy, a Gata Negra.
Tudo bem, todo amor do mundo pela MJ e mesmo pela Gwen, mas o ponto é que a Felicia conseguia, criativamente, provocar mais o Peter enquanto personagem. Tamos falando de uma vilã, regenerada ou não, que não precisa ser resgatada por ele, que não vai ser a donzela em perigo, que não vai servir de moeda de troca para o malvadão da vez. Alguém que tá mais interessada até no Aranha do que no Peter, um lance meio fetichista. Torna as coisas menos adolescentes, mais adultas, ajuda a dar uma evoluída no sujeito e em como ele é retratado depois de quase seis décadas. O mesmo vale pra Harpia — só que ainda mais, muito mais, elevado à enésima potência.
Ok, tá, não necessariamente o Peter PRECISAVA ter uma namorada. Mas estamos falando do super-herói em tese mais comum, normal, gente como a gente, de todos eles, the everyman superhero. Então, estar num relacionamento até que faz sentido, vai. Mas que seja algo NOVO. Já falei algumas vezes aqui como eu, enquanto fã, adoro quando o Peter é retratado como um homem adulto e não como um adolescente da década de 60, o pobre nerd branco maltratado, tadinho dele. Tá bom, já deu. Enquanto o papel de teen modernizado e adequado ao mundo de hoje fica de maneira perfeita com o Miles Morales, é hora de deixar a porra do passado pra trás de vez no caso do Peter.
Nesta leva de histórias atualmente publicada no Brasil, por exemplo, o camarada não volta a tirar fotos pra ganhar uma grana. Na real, ele se aproxima novamente de Robbie Robertson, atual editor do Clarim, e acaba convidado pra ser editor da área de ciências do jornal, que tá tentando se tornar moderno e se manter relevante depois de anos do sensacionalismo do JJJ. Não é legal? Pra acompanhar, pô, nada mais justo do que colocar junto com ele uma mulher forte, madura, inteligente, independente. Uma personagem que também cresceu pra caramba nos últimos anos (em especial graças aos roteiros da Chelsea Cain) e que, pelo menos neste período, era tão protagonista quanto ele, não era uma mera coadjuvante nas mãos de um roteirista preguiçoso.
Alguém que tava disposta a dizer “eu tô aqui, gosto de você, mas tenho minha vida e vou crescer, com você ou não; levanta o traseiro daí e vem comigo, cara, ou fica pra trás”.
Definitivamente, eu teria mantido este casal junto por MUITO mais tempo, até para poder ajudar em termos de storytelling a levar Peter Parker por caminhos que nunca seguiu antes, pra poder até se tornar uma forma de discutir a masculinidade, por exemplo. Algo que ele necessitava pra evoluir e uma boa parcela de seus leitores andava DEMAIS precisando ler.