Cavaleiros do Zodíaco: a decisão certa mas do jeito errado | JUDAO.com.br

Trailer da nova série animada do Netflix levanta uma discussão sobre a decisão criativa tomada a respeito do Shun — mas é uma discussão BEM diferente da que muita gente tá imaginando

Bom, já que tava rolando no final de semana a Comic Con Experience, o Netflix aproveitou que um dos públicos mais fiéis da franquia original está justamente por aqui e liberou no evento e pouco depois pra todo mundo aqui do lado de fora o primeiro trailer de sua nova versão dos Cavaleiros do Zodíaco, que será oficialmente batizada de Saint Seiya: Os Cavaleiros do Zodíaco.

A história, pelo menos inicialmente, tem cara de ser uma adaptação direta da primeira fase dos mangás surgidos em 1985 e do anime de 1986 que virou uma verdadeira febre por aqui nos anos 90. Os duelos iniciais da molecada pelo direito de obter as armaduras e o título de cavaleiro, Atena formando seu grupo fiel de cavaleiros de bronze de confiança para proteger a armadura dourada de Sagitário, Ikki de Fênix aparecendo do nada pra complicar ainda mais as coisas, tudo no que parece desembocar na clássica Saga do Santuário, o quinteto escalando cada uma das casas pra enfrentar os Cavaleiros de Ouro.

Claro, eram inevitáveis e até mesmo esperadas algumas modificações/atualizações, cortesia do roteirista-chefe Eugene Son (Os Vingadores Unidos). Os dubladores são os mesmos, Hermes Baroli e sua patota, mas a ambientação mudou, parece mais moderna, contemporânea — basta ver os cavaleiros enfrentando helicópteros disparando mísseis no meio do deserto. O Seiya, por exemplo, desperta a sua armadura usando um pingente, numa pegada mais mágica/mística que parece ser herança do recente filme A Lenda do Santuário, de 2014; o Mestre Ancião não é mais roxo; e o Cassius, aquele que perde a orelha na luta contra o futuro Cavaleiro de Pégaso lá no início da trama do anime original, aparentemente se torna um Cavaleiro Negro, pistolaço de tudo.

E agora o Shun não é mais um homem. Aperta o play aí embaixo, vê o trailer e a gente já fala especificamente sobre isso.

Bombardeado pelos mais diferentes questionamentos de fãs no Twitter, Son fez uma longa thread repleta de argumentações para defender a escolha da mudança de sexo do personagem — que, segundo ele, já se imaginava que fosse ser controversa. “Quando nós começamos a desenvolver essa série atualizada, queríamos mudar muito pouco. Os conceitos principais que fazem a série ser adorada ainda são muito fortes e a maioria deles continua fazendo sentido mesmo três décadas depois”, explica. “A única coisa que me preocupava: os Cavaleiros de Bronze ao lado de Seiya de Pégaso são todos homens”.

Ok. ÓTIMO ponto.

Segundo ele, a série “sempre teve personagens femininas fantásticas com uma dinâmica forte. Isso reflete na tremenda quantidade de mulheres que são apaixonadas pelo mangá e pelo anime. (...) Agora o mundo mudou. Garotos e garotas trabalhando lado a lado é o padrão. Existem várias personagens femininas na obra original. Marin e Shaina [ou Shina, como acabou conhecida no Brasil] são ambas incríveis, mas elas já são poderosas – ninguém quer que elas sejam transformadas em Cavaleiros de Bronze”. E foi discutindo sobre isso que eles chegaram no Shun, que agora vai virar Shaun (e o dublador original, Ulisses Bezerra, sai de cena, sendo substituído por sua irmã, Ursula, conhecida principalmente pela voz brasileira do Naruto).

“Um ótimo personagem com um ótimo visual”, explica o roteirista. “Mas isso é uma nova interpretação, uma abordagem diferente. Se você achar estranho e não gostar, eu entendo. (...) Então se você odiar isso (e a mim) e disser ‘Essa nova série não é pra mim’, sem problemas. Entendi. E aprecio o seu amor pela franquia, de qualquer forma”.

Digo e repito: mudanças são boas. Esquece de uma vez este papo de “ai, vão destruir a minha infância”, isso já deu, cansou. É um novo desenho, para um novo público, nem tudo gira em torno do seu umbigo saudosista. Valeu pra She-Ra, pros Thundercats, pro Popeye... Isso TAMBÉM vale para estes novos Cavaleiros do Zodíaco. Os antigos desenhos vão continuar existindo, ninguém tá proibido de ir lá ver e rever.

Portanto, vamos tirar de uma vez a argumentação do “no meu tempo era melhor” da conversa.

Da mesma forma, é importante tirar da mesa o papo de “isso tudo é por causa do politicamente correto” ou o velho clássico “o mundo tá chato”. Diversidade importa, representatividade também e este era um problema SÉRIO na franquia dos Cavaleiros do Zodíaco, conforme o próprio Son levanta: apenas os homens combatiam em nome de Atena. Tanto a Toei, que detém originalmente os direitos sobre a animação, entende isso que está lançando ESTA SEMANA no Japão uma nova fase do anime, adaptada diretamente de um mangá recente, chamada Saintia Shô. Sabe qual é a principal diferença? Temos uma nova classe de mulheres guerreiras lutando em nome da Deusa da Justiça, as Saintia. Basicamente, são cavaleiras, com direito a usar armaduras tanto quanto Seiya, Shiryu, Hyoga e toda a trupe.

Quando o Son diz que a série original “sempre teve personagens femininas fantásticas com uma dinâmica forte”, ele tá equivocado num grau absurdo. Em sua maioria, as mulheres em CDZ são relegadas a papeis totalmente secundários desde sempre: ou elas são as musas inspiradoras dos nossos intrépidos guerreiros (como a Atena ou a Hilda de Polaris, no caso da Saga de Asgard) ou então suas inocentes namoradinhas, tipo a Shunrei pro Cavaleiro de Dragão. Ou quem sabe as amazonas, mulheres mascaradas que apesar de serem consideradas “mulheres-cavaleiros” (Marin e Shaina seriam, em tese, cavaleiras de prata) NÃO são nem de longe em importância o equivalente feminino dos cavaleiros, diga-se. Mulheres sem passado, presente e futuro, tipo a coitada da June de Camaleão — que inclusive se envolveu com o Shun.

São raríssimos os casos como o da Thetis de Sereia, vista na fase de Poseidon — mas que, mesmo assim, é tratada muito mais como uma agente secreta/mensageira do que como uma guerreira DE FATO.

Quando a gente pula pra recente fase Ômega, eis que surge um exemplo como Yuna de Águia. Que não deixa de ser essencialmente uma amazona como Marin e Shaina, embora se recuse a usar a máscara, o que já é uma vitória. Mas que passa, ENFIM, a lutar lado a lado com os novos cavaleiros de bronze. O que já é uma GRANDE vitória.

Então... SIM. Se passaram TRINTA ANOS, cara. É muito legal que eles pensem em mudar o gênero de um dos cinco personagens principais, dando a uma mulher de fato mais destaque (e confesso que eu não veria problema ALGUM em ter a Marin transformada em “cavaleira”, por exemplo). Esta é uma iniciativa que a gente apoia e defende DEMAIS, tanto quanto apoiamos, por exemplo, a Marvel tirando o Deus do Trovão de cena e substituindo o cara por uma mulher, digna de erguer o Mjolnir e de chutar bundas em todos os nove reinos. Podiam ter mudado até mais de um dos cavaleiros de bronze, se fosse o caso, sem o menor problema.

O grande problema aqui é que o personagem escolhido para esta mudança de sexo seja JUSTAMENTE o Shun de Andrômeda. A cagada tá aí.

Diz a lenda dos bastidores que Masami Kurumada, criador dos Cavaleiros, queria que Shun fosse mesmo uma mulher, mas por algum motivo acabou mudando de ideia. Tanto faz. Isso não muda o rumo da conversa aqui. A escolha não foi tornar mulher um sujeito furioso e impetuoso como o próprio Ikki, por exemplo. Ou quem sabe o Shiryu, cabeludão, estilosão, justamente o favorito dos fãs. Eles foram buscar tornar feminina justamente o personagem andrógino, típico das produções culturais japonesas. Aquele que vestia a armadura cor de rosa e representava uma constelação feminina, que era mais ~frágil, mais ~sensível, que era mais defesa do que ataque, que evitava lutar a todo custo.

Aquele que todo moleque de 15 anos de idade vendo os Cavaleiros do Zodíaco na tela da finada TV Manchete dizia que era o “viadinho”. Aquele que virou motivo de zoação eterna ao usar seu cosmo num abraço para aquecer o corpo do Cavaleiro de Cisne, congelado na casa de Libra. Aquele que era taxado de bundão sempre que pedia a ajuda do irmão para sair de uma enrascada.

Sacou o problema?

Criativamente, acabaram indo na decisão mais óbvia. E também na mais problemática. Porque, afinal de contas, mulher é que é frágil e delicada. Não dá pra admitir que um homem, autointitulado GUERREIRO, seja do tipo que não gosta de partir pra porrada. E ainda use rosa? Mas que absurdo, não é mesmo?

A justificativa de muita gente (inclusive de Eugene Son, aliás) acaba sendo pelo lado de “ah, vocês sabem o que acontece lá na frente, ele vira um personagem fodástico, um dos maiores vilões da série, o Hades”. Então... NÃO. Muitas e MUITAS sagas adiante, Shun apenas e tão somente tem o corpo dominado pelo espírito do Senhor do Mundo dos Mortos. Ponto. É o mesmo que vai acontecer aqui? No caso, uma mina que só se torna uma ameaça quando é possuída por uma divindade externa e que, por acaso, é um HOMEM?

Porque se for, olha...

Juro que não duvido que eles vão fazer com que a Shaun seja uma cavaleira sensacional, que arrebenta quem cruza o caminho dela. Mas seria, de fato, muito mais disruptivo que esta mina incrível fosse, sei lá, a Cavaleira de Dragão, de Cisne ou, quem sabe, até mesmo a de Pégaso. E que o Cavaleiro de Andrômeda pudesse ser mesmo um homem, mas longe deste conceito de masculinidade tóxica do homem poderoso, forte, másculo, guerreirão, sim um homem que usa rosa, que é delicado, que é doce e se preocupa com quem está ao seu redor. Olha só que mudança considerável para os tempos atuais? No fim, 30 anos atrás, o Shun original já era um desafio considerável de estereótipos, se você parar pra pensar.

Enfim: Saint Seiya: Os Cavaleiros do Zodíaco deve estrear no Netflix no terceiro trimestre de 2019.