Entenda a tal “Cruzada das Crianças” e porque é importante que a gente pare de ter receio de dar às coisas o nome que elas têm
“Esse livro traz conteúdo sexual para menores”. Ao ler esta frase, o que vem na cabeça de qualquer pessoa com um mínimo de coerência? Que alguém expôs uma criança a um livro com conteúdo pornográfico, que mostra gente transando, partes íntimas à mostra, isso naquilo outro, uma coisa louca, “obscena”, sexo explícito, piroca pra lá, xoxota pra cá. Mas na cabeça do prefeito da cidade do Rio de Janeiro, a cena de UM BEIJO entre duas pessoas configura “conteúdo sexual”. Isso mesmo. Um beijo. Que nem é uma pré-pegação, coisa quente, nada disso. É só um beijo doce e terno entre duas pessoas que se amam, preocupadas com o futuro.
Este é não apenas um resumo do que aconteceu na nesta quinta-feira (05), quando o ALCAIDE (que, não por acaso, carrega a expressão “Bispo” junto do nome, o que ajuda a explicar muita coisa) decidiu que o Rio não era uma cidade com problemas o suficiente e resolveu se preocupar com o conteúdo de um gibi, mas também mais uma cena da tragicomédia — que se configura num drama e muito brevemente deve virar filme de terror — que é o Brasil estar sob o comando DESTAS pessoas.
Tudo começou quando uma mulher não identificada postou a tal cena do beijo, clamando que aquilo era uma ofensa, uma afronta, que estava sendo vendida “livremente” na Bienal do Livro, maior evento literário do país e que acontece no Rio até o final de semana. E aí que um vereador teve acesso à tal publicação. Enfurecido, com o livro em punho, ele subiu no plenário da Câmara e, dizendo que não era homofóbico e que cada um faz o que quiser da sua vida (sei...), afirmou que aquilo se tratava de “propagação e divulgação homossexual para as crianças” e que “os pais estão comprando achando que é um livro infantil”. Ele então apresentou uma moção de repúdio e a internet entrou em chamas.
O livro em questão é Vingadores: A Cruzada das Crianças, a edição de número 66 da coleção de graphic novels da Marvel que a Salvat lançou no Brasil até o começo deste ano. O encadernado compila um arco de histórias dos Jovens Vingadores, escrito por Allan Heinberg e com arte de Olivier Coipel e que, de acordo com o G1, foi completamente vendido em pouco mais de 30mins no início dessa sexta-feira. Há relatos, porém, de que livros LGBTQI+ estão sendo recolhidos das prateleiras pelas editoras com medo de uma fiscalização da prefeitura.
Os conservadores piraram, usaram o seu superpoder de enviar rapidamente um caminhão de bosta pelo WhatsApp e, adivinha só, foram parar no gabinete do prefeito. Prefeito este que, ao invés de se preocupar com a taxa recorde de mortes causadas por POLICIAIS em sua cidade, resolveu parar tudo pra gravar um vídeo indignadíssimo, publicado em suas redes sociais – modus operandi dos nossos atuais governantes, é bom que se lembre. “A prefeitura do Rio determinou que os organizadores recolhessem esse livro, que já foi denunciado inclusive na internet e que traz conteúdo sexual para menores”, afirmou ele. “Livros assim precisam estar embalados em plástico preto, lacrado e com um aviso do lado de fora sobre o conteúdo. Portanto, a prefeitura do Rio de Janeiro está protegendo os menores da nossa cidade”.
“Livros assim”, no caso, são livros que têm uma cena de um casal que, POR ACASO, é formado por dois homens — no caso, os personagens Hulkling e Wiccano. Um único quadrinho, esse que você vê ao lado, em meio a tantos outros de gente fantasiada trocando socos, chutes e pontapés, raios coloridos pra lá e pra cá. Por causa de uma passagem como esta, as 264 páginas do encadernado de capa dura deveriam vir embaladas em plástico preto e com um aviso do lado de fora. Qual deveria ser o aviso? “Cuidado: este gibi traz duas pessoas se beijando”?
Depois do vídeo do prefeito, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) afirmou em nota oficial que “notificou, na tarde desta quinta-feira, dia 5, a organização da Bienal do Livro a adequar as obras expostas na feira aos artigos 74 a 80 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que preveem lacre e a devida advertência de classificação indicativa de conteúdo em publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes. Em caso de descumprimento, o material sem o aviso será apreendido e o evento poderá ainda ter a licença cassada”. Portanto, uma notificação extrajudicial, o que é BEM diferente de “determinou recolher os livros”. ;)
A Bienal, com a coerência mínima que se esperava de um evento deste tamanho, não só não recolheu nada e nem vai embalar nada por nada ali é impróprio ou pornográfico, como ainda fez questão de deixar claro, em pronunciamento oficial, que dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser. “Este é um festival plural, onde todos são bem-vindos e estão representados. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá três painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+”. O Café Literário terá a mesa Diversidade, Substantivo Plural, enquanto ao longo dos próximos três dias acontecerão debates como Feminismo X Machismo, Literatura Arco-Íris e Literatura Trans.
Pra completar, a direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor.
Em resumo? Tá incomodado? Volta pra casa e arruma outro passeio, querido. ¯\_(ツ)_/¯
Em seu discurso na Câmara, o tal vereador indignado quis deixar claro que o autor do gibi é assumidamente homossexual. Muito que bem. Heinberg não tem mesmo vergonha de dizer que é gay e de lutar por seus direitos, como NINGUÉM deveria ter caso ache que faz sentido, aliás. Mas Heinberg é também um premiado roteirista de TV (já trabalhou em Scandal, Grey’s Anatomy e afins) e de cinema (é dele o roteiro do filme da Mulher-Maravilha, por exemplo). E Heinberg também é o criador de toda uma leva de jovens personagens na Marvel, incluindo aí a Gaviã Arqueira Kate Bishop — que vai aparecer na vindoura série de TV Hawkeye e então fazer parte definitiva do universo cinematográfico do estúdio — e o casal Wiccano e Hulkling.
Sobre estes dois, é importante dizer que eles se revelaram oficialmente como um casal em Young Avengers Vol 1 #12, gibi publicado nos EUA em 2006, mas os indícios de que eles eram gays e estavam apaixonados vêm de antes disso. E aí o tal conjunto de histórias que compõe A Cruzada das Crianças saiu nos EUA em 2010. E a Panini publicou nos gibis de linha, mensais, em 2012. E então tivemos o encadernado em 2016. Digamos que o relacionamento dos dois tá longe de ser novidade, ainda mais numa editora que, desde de 1992, tem pelo menos UM personagem abertamente gay, o Estrela Polar, da Tropa Alfa, velho conhecido dos leitores brasileiros.
Se a gente lembrar que tivemos OUTRA edição da Bienal há dois anos, em 2017, que o gibi já tinha sido lançado na época e ninguém fez este bafafá, sendo que o atual prefeito JÁ ESTAVA no cargo, a coisa toda ainda fica mais bizarra... Por que agora? Bom, milhões de pessoas colocaram c e r t a s p e s s o a s na cadeira mais importante do país validando este tipo de discurso, né?
Tem mais: sabe por que este arco de história se chama A Cruzada das Crianças? Porque enquanto o Hulkling nada tem a ver com o Hulk de fato mas sim é um metamorfo híbrido de Skrull e Kree (duas raças tradicionalmente inimigas, sinônimo de tolerância), o Wiccano tem mesmo os poderes de natureza mística que seu nome sugere, do tipo que têm relação com a alteração da realidade. E seu irmão há muito perdido é o jovem velocista Célere. Os poderes dos dois irmãos não te lembram nada? Sim, são uma réplica dos poderes de OUTROS dois irmãos famosos da Marvel, Feiticeira Escarlate e Mercúrio, os filhos do Magneto. O que acontece é que A Cruzada das Crianças mostra Wiccano e Célere em busca de suas origens — e então eles descobrem que são as almas reencarnadas dos dois filhos que a Feiticeira Escarlate criou para ela e para o androide Visão, parte de uma daquelas tramas rocambolescas que só os quadrinhos Marvel/DC podem te proporcionar.
Mas... enfim, o fato é que esta é a cruzada destes dois jovens para descobrirem de quem eles são filhos, de quem eles eram as crianças, children em inglês. Sabe o total de CRIANÇAS de fato que existem no gibi? Zero. Sabe o total de crianças ao qual se destina um gibi originalmente publicado lá fora para maiores de 13 anos? Zero. Não que crianças da vida real não possam e não devam ser expostas a relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo para que entendam e normalizem a percepção, bom, que ali está apenas mais um relacionamento entre duas pessoas que se amam e PONTO. Muito pelo contrário. Seria saudável, até.
Mas cravar que estamos diante de um GIBI INFANTIL, tipo uma Turma da Mônica da vida, talvez seja um tanto de exagero. Talvez fosse importante LER o conteúdo pra entender o todo. Sabe contexto? Talvez ler a sinopse? Mas, bom, se bem que vivemos num país em que um deputado levou o filho para ver Ted achando que era só um filme de ursinho fofo e saiu indignado, querendo mandar proibir, prender, aquele pacote completo que a gente bem conhece, capaz que AINDA ASSIM fossem finalizar o gibi dizendo que é ~ideologia de gênero ou qualquer pataquada do tipo.
E pensar que a palavra “cruzada” significa algo tão mais vergonhoso, historicamente, para quem resolve que vai seguir à risca o que diz um certo livro sagrado...
Sabe aquele seu conhecido que vive defendendo “não misturem política com os meus gibis”? Porque com certeza você deve ter um, eu tenho (alguns, aliás), todo mundo tem. Então, o prefeito do Rio acabou de fazer isso. Acabou de usar seus poderes políticos pra dizer o que você pode ou não ler. Aí mistura isso com esta parada chamada “religião”, sabe, e a combinação explosiva tem nome: CENSURA. Assim como também tem nome este incômodo descomunal com a exposição de um beijo entre pessoas do mesmo sexo: HOMOFOBIA.
Imagina só quando, além de praticar o seu passatempo favorito que é fiscalizar quem as pessoas beijam, amam e com quem elas transam, políticos como ele resolverem encanar com a VIOLÊNCIA destes quadrinhos da Marvel e da DC. Porque afinal de contas tem um monte de gente se socando, né, que absurdo, como assim crianças lendo isso? Imagina quando eles começarem a ler os gibis da Vertigo? Ou quando forem ouvir aquelas bandas que falam de drogas, de sexo, de Satanás? ABSURDO!
Se bem, que, nesse caso... LIBERTEM RENNAN DA PENHA.
Isso não é mais cenário de ficção, não demora muito até chegar nisso, tá? Fahrenheit 451 tá aí na esquina, se esgueirando pelas sombras pra morder nossas canelas e em breve tomar conta das nossas vidas. E aí a tal da cruzada vai ser outra, beeeeeeeem diferente.
A pergunta que fica é: o que ELES vão fazer já tá claríssimo. Mas o que A GENTE vai fazer a respeito?