Uma espada gigante de dois gumes
É meio caído entrar num daqueles “determinado grupo é dividido entre quem fez isso e quem não fez” à toa. Só que em 2020 um dos maiores eventos da cultura pop conseguiu realizar essa divisão tão cirurgicamente que proclama esse ditado e, assim, explica o mundo dos games. Ficamos então com “jogador de videogame se divide entre quem jogou e quem não jogou Final Fantasy VII“. Ainda soa caído, mas eu chego lá.
Em 1997, o jeito que o pessoal olhava pra games era completamente diferente. Era muito mais “coisa de criança”, e ainda demoraria para se tornar o pedaço importante da expressão cultural que é hoje. Ainda era “só diversão”. Havia poucos exemplos de quem ficava hipnotizado na frente de um console por conta da história, dos personagens, da narrativa, da temática.
O ano de 1997 é também o ano que nos trouxe o clássico absoluto 007 Goldeneye para o N64 e o inesquecível Age of Empires, além do terceiro Monkey Island (este de fato um jogo cuja narrativa importava muito), ambos para nossos antigos PCs, assim como também Ultima Online. No saudoso PlayStation, o que chamamos de “PS One”, tivemos ainda Castlevania, Symphony of the Night (talvez o mais influente jogo lançado naquele ano, sendo que gerou seu próprio subgênero – o Metroidvania) e um charmoso e esquisito adventure de nome Oddworld – Abe’s Exodus.
E aí Final Fantasy VII chegou e ninguém mais sabia o que estava acontecendo.
A série, na qual cada capítulo traz um mundo e uma saga completamente diferentes, já era queridinha do pessoal mais chegado no que dava pra chamar de RPG Japonês, o JRPG. Quase que uma mecanização de elementos de anime sob a forma de um jogo de videogame, esse subgênero sempre criou histórias épicas com conceitos completamente malucos, recheados de melodrama e de grandiloquência. Final Fantasy VI era então um amado clássico, embora não tivesse uma fração do prestígio que Chrono Trigger teve (e tem até hoje).
A Squaresoft (hoje Square Enix), produtora desses jogos, quis entrar no novo mundo, no universo de três dimensões gerado por um console movido à COMPACT DISCS, com o maior estouro possível. O lendário designer da série Hironobu Sakaguchi e um time de estrelas da companhia criaram então o jogo que eternizou momentos, músicas e galinhas gigantes no resto do planeta. E só estamos falando disso porque, como todo mundo que tem um videogame ou um amigo que gosta do babado sabe, a Square Enix lançou o mais bem calculado remake possível em 2020. Apontaram um canhão bem no meio do coração dos gamers e dispararam com prazer.
Final Fantasy VII Remake conta a história de um mercenário de elite chamado Cloud – Claudinho, para os íntimos – que vive num mundo dominado pela empresa Shinra. Essa empresa se especializa em energia, mas tem tentáculos em todas as áreas possíveis. Cloud é contratado por um grupo de ecoterroristas, Avalanche, para ajudar num ataque à bomba em uma das refinarias de Mako, a energia vital do planeta.
Fonte de energia para a humanidade, sua extração está matando o planeta pouco a pouco, fato obviamente ignorado pela empresa EVIL. Começa uma jornada épica, grandiloquente e por vezes melodramática num mundo quase cyberpunk, no qual um CNPJ usa a tecnologia para se tornar mais poderoso que o governo e a vida das pessoas não vale nada para executivos inescrupulosos que, é claro, investem pesado em pesquisas científicas demoníacas.
O passado de Cloud e seus amigos virá à tona e ele vai encontrar uma adorável vendedora de flores. Daquelas que “vai mudar tudo”.
Ou seja, a história é EXATAMENTE A MESMA do jogo de 1997. Mas, além da óbvia diferença que duas décadas de avanços tecnológicos trazem, a grande mudança foi acabar o jogo logo depois do primeiro arco narrativo. No clássico, a primeira área que você e seu grupo de amigos com poucos polígonos exploram é a mega-cidade de Midgard, mas depois de umas seis horas de jogo você sai dela para explorar o imenso (para a época) globo. O remake estica essa sessão do jogo ao longo de uma campanha de 40 horas, e deixa a promessa de “muito mais coisa por vir”. Mas para arrebatar o sorriso dos fãs, só esta “introdução” é bem suficiente.
O sistema de combate não só MUDOU DE GÊNERO, mas aprendeu muito com as novidades. Tem o movimento livre e a ação frenética de um Kingdom Hearts (cujo diretor Tetsuya Nomura também comanda o FFVII Remake), mas também algo da engenharia elegante de um Dark Souls, que invadiu praticamente todos os jogos de ação depois que foi lançado. E com a oportunidade de fazer um mundo completamente em 3D, com muito mais detalhes e muito mais tempo para mostrar, o Remake traz ao clássico um refinamento nunca imaginável.
Não é exatamente que a história consegue ser mais profunda, mas ela “cria mais elementos”. Os personagens, que demoravam a extensão do jogo anterior quase que inteira para deixarem de ser somente “bonequinhos e clichês” para virarem habitantes trágicos de um mundo de fantasia, agora conseguem abraçar a humanidade com muito mais fluidez. Não só por conta de “terem expressões faciais”, mas também por terem vozes. Cloud deixou de ser só mais um “cara estiloso com poucas palavras” (ou o que quer que os japoneses considerassem estilo nos anos 1990), e mostra nuances e até senso de humor. Barret, desde o primeiro segundo uma montanha de estereótipos, abre o coração e traz tanto doçura quanto fúria em sua trajetória.
As personagens femininas, enquanto mudaram pouco, se tornaram o centro emocional do jogo. Tanto pela inocência e o pragmatismo surpreendente de Aerith como pela trajetória de perda e de desolação de Tifa, elas são menos “símbolos” e mais pessoas reais agora. Tifa também passa por uma ligeira “recontextualização física” para ser menos um símbolo sexual e mais uma agente ativa da história através de sua fisicalidade. Em suma, agora ela se veste como uma atleta e é BEM FORTE.
O lançamento do Remake foi celebrado e aplaudido por toda uma geração de fãs saudosos, que foram atingidos na hora e no momento certo, agora que 1997 parece longínquo, mas há um problema com “a outra metade”.
A obra toda, como universo de fantasia, como projeto narrativo, como JOGUINHO, tem muito, MUITO a ganhar abraçando a geração inteira que veio DEPOIS. E também a geração que veio DEPOIS. 23 anos de distância cria muita gente que não faz a menor ideia do que é um chocobo, ou que só jogou outros títulos da série, sem nunca entender “qual é a desse monte de chato que insiste em chorar por causa da morte de um personagem”. É natural de se esperar que o jogo queira capitalizar naquela coisa que rege tudo (até o que não devia) na cultura de nossas épocas, a tal nostalgia.
Só que às vezes parece que há um esforço para alienar “quem nunca jogou”. O jogo como um todo é coeso, escrito de maneira criativa e espirituosa, mas quando nos aproximamos do final e precisamos (entendendo que, mesmo como primeira parte de uma nova série, este Remake é um jogo fechado em si) colocar alguns pingos nos Is, a estrutura narrativa começa a enlouquecer completamente. Você precisa lembrar de personagens minoritários do jogo antigo para ENTENDER CENAS INTEIRAS que passam sem a menor explicação. Mas, ainda pior, há um peso dramático colocado nos ombros largos de um CERTO ESPADACHIM que não tem contexto algum. Nem mesmo para os próprios protagonistas: esperei a qualquer momento ouvir o Barret berrar “E QUEM RAIOS É ESSE MANÉ DE PERUCA PRATEADA?”.
O mundo dos games mudou e agora quase todo mundo joga videogame. Embora haja um elemento de metalinguagem bem complexo nessa história (claramente a mão de Tetsuya Nomura querendo complicar as coisas da mesma forma que complicou seu querido Kindgom Hearts), isso não muda o fato de que alguém ali escolheu falar “mais ao fã clássico” do que falar “igualmente a todo mundo”. E não há razão alguma para isso. O jogo poderia nadar tranquilamente no sentimento nostálgico, criar mistérios e ainda assim manter a coesão narrativa.
É meio que uma espada gigante de dois gumes. Um feitiço que pode ajudar ou atrapalhar. Essa tal de nostalgia que, no remake de Final Fantasy VII funciona desenhando uma divisão que já poderia ser real há décadas. Tem quem já jogou e tem quem nunca jogou.
O game é divertido, emocionante, complexo, eletrizante e quer ativar algo na criança que tem dentro de um monte de gente. E é claro, há muita oportunidade para realinhar o rumo das coisas na parte II. Mas seria muito, muito mais bacana deixar mais gente entrar nessa aeronave rumo ao centro do planeta.