A guerra enfim chegou pros Deuses Americanos | JUDAO.com.br

Episódio inaugural do novo ano continua lindo e com este climão onírico — mas com uma narrativa que já vai mais direto ao ponto: tá na hora da treta, junta os seus aí, eu junto os meus aqui, enquanto um Shadow Moon fica no meio sem sacar muito bem qualé

SPOILER! Preciso dizer que sou do time que gostou um bocado da primeira temporada de American Gods, a adaptação do hoje já icônico livro do Neil Gaiman — o texto que escrevi quando assisti ao S01E01 deixa isso claro. O curioso é que, tal qual Preacher e Legion, esta é das pouquíssimas séries que eu e o Borbs acompanhamos praticamente juntos, comentando episódio a episódio um com o outro — e algumas vezes até ao vivo durante as edições do ASTERISCO.

Ao final da parada, ele gravou um ótimo vídeo no seu falecido Borbs Show, lá no nosso YouTube, a respeito de American Gods (e também de Glow, mas aí é outra história). E apesar de não concordar INTEIRAMENTE, digamos que a tese que ele defende faz sentido: quem leu o livro original deve ter ficado hipnotizado pelo que tava rolando mas quem NÃO leu precisou de pelo menos cinco episódios pra começar a ter uma ideia do que tava acontecendo. No fim, o showrunner Bryan Fuller chegou a admitir que este ritmo mais lento foi proposital, que a ideia era fazer com que este único livro rendesse, sei lá, três ou quatro temporadas.

Não sabemos se vai chegar a isso tudo, mas que, com total apoio da emissora, Fuller e Michael Green se focaram mais no desenvolvimento dos personagens e realmente demoraram pra fazer a ação de fato acontecer, ah, chegaram.

Pois eis que a estreia desta segunda temporada de American Gods, dois anos depois, aparentemente mostra os efeitos da saída da dupla, em um episódio que continua com um visual lindíssimo — mas que já vai bem mais direto ao assunto. Dá até pra dizer, sem muito exagero, que quem nem chegou a ver a temporada anterior e/ou tem qualquer relação com a versão impressa definitivamente conseguiria entender muito mais qual é a ideia se chegasse agora.

“Esta temporada estreia de um jeito que nos traz realmente de volta ao livro”, afirma Ian McShane, que estrela American Gods de maneira ainda mais deliciosamente canastrona e cínica como Wednesday/Odin e agora também é produtor executivo do show. “Gaiman escreveu uma obra com uma bela assinatura para uma série de TV que pode ir para onde quiser se realmente se mantiver fiel às suas raízes”.

A palavra-chave aqui, meus caros, é GUERRA.

Como bom Deus da Guerra viking que é, Odin quer é ver o circo pegar fogo — e mostrar pros Novos Deuses, de preferência com muito sangue, que os Velhos Deuses ainda têm muita moral, apesar de terem cada vez menos gente que se ajoelha em nome deles. Carregando uma trupe curiosamente excêntrica ao seu redor, que conta com um leprechaun grandalhão, uma morta-viva superforte sem muita noção de seu atual papel no mundo e principalmente um guarda-costas que claramente é muito mais do que aparenta, ele vai finalmente ao tal encontro entre as entidades antigas para discutir o que fazer.

Como trunfo na manga, além de seus muitos segredos, ele tem uma vitória ACACHAPANTE que deu uma rasteira no egocêntrico e ultraconfiante Mr.World, representante maior da nova geração de deuses atualmente venerados na América. É hora de convencer seus velhos parças que é preciso partir para o ataque. Ao seu lado, Shadow Moon parece ainda não acreditar muito no retorno da esposa diretamente do túmulo, mas no entanto ele segue Wednesday menos pela grana tão prometida e mais porque... acredita? Pois é, era exatamente desta força, da fé, que o pai de Thor andava precisando.

A reunião de Velhos Deuses acontece em um lugar que, fisicamente, parece representar grande parte do que é a narrativa da obra de Neil Gaiman: uma aparentemente insuspeita casa na rocha que é mais uma daquelas atrações de beira de estrada reverenciadas por todo bom americano médio que viaja do nada para lugar nenhum. Mas ao invés do maior novelo de lã do mundo, o local tem camadas e mais camadas de histórias antigas, de estátuas em exposição, de brinquedos esquecidos, atrações cujos sons embalam perfeitamente estes deuses lutando contra o esquecimento.

Destaque principalmente para dois deles, que claramente terão muito mais espaço na história a partir de agora. A belíssima e poderosa Bilquis (Yetide Badaki), a Rainha de Sabá, senhora do amor e reverenciada com o sexo, não foi convidada para a discussão. Mas ela tem seus próprios interesses, como alguém que aprendeu a trazer novos seguidores usando as ferramentas dos Novos Deuses, e deixa claro que já era reverenciada antes mesmo do primeiro cavalo ser sacrificado em nome de Odin.

Chupa essa manga você e seus dois corvos, meu chapa.

E aí temos Anansi — ou Nancy, para os íntimos, na performance malandra e sacana de Orlando Jones. O deus-aranha trapaceiro, exímio contador de histórias, sempre foi de longe meu personagem favorito do livro (não por acaso, tendo a gostar até mais do spin-off Os Filhos de Anansi do que de Deuses Americanos, mas este papo fica pra outro dia), e traz uma pitada ainda maior de um humor bastante peculiar, do tipo que vai tornar a cabeça do coitado do Shadow Moon ainda mais confusa. Junte a isso o martelo pesado e a língua afiada de Czernobog (Peter Stormare, outro simplesmente maravilhoso) e temos um grupo que, finalmente reunido, sem tantas histórias paralelas, promete um tipo de narrativa ligeiramente diferente agora. Veremos.

Enquanto isso, lá do outro lado, World vai fazer uso de armamentos secretos do exército americano (“O presidente americano é um fantoche, eu sou o homem por trás dos homens por trás do homem”, explica) para provar que ainda tem muita força guardada para revidar. Mas digamos que ele tem um plano B, tanto que envia seu Technical Boy para encontrar ninguém menos do que Media — que, vivida na primeira temporada por uma Gillian Anderson que foi Bowie, Marilyn Monroe e Lucille Ball, deve voltar repaginada e reinterpretada como a New Media que tanto fazia sentido neste novo mundo em que American Gods se apresenta quase 20 anos depois do livro. As adaptações existem, são necessárias e fazem total sentido para a história.

E, como bem sabemos no nosso país de hoje, não há deus a ser mais venerado do que a mídia — ainda que ela seja um aplicativo de mensagens para celular com notícias falsas que chegam sabe-se lá de quem e vão parar sabe-se lá onde.

Nesta guerra que enfim promete começar, não existe arma mais poderosa do que esta. Vejamos o que o patriarca da mitologia nórdica teria preparado para contra-atacar.