Logan não precisa de mais nada além de Johnny Cash cantando Hurt

Além da escolha do título, colocar a canção composta por Trent Reznor no primeiro trailer do filme mostra exatamente quais as intenções do diretor James Mangold com esse filme. Precisa só ver se o resultado será, de fato, um “filme de James Mangold”

Não precisa de muito pra entender o que o diretor James Mangold quer nos dizer com o mundo em que Logan se passa. Seja pelas imagens que ele vem postando quase que diariamente nas suas REDES, em branco e preto e com um aspecto de secura, seja com o trailer do filme lançado na última quinta-feira (20).

Esqueça uniformes de couro, vilões multicoloridos, raios e superpoderes pipocando pra lá e pra cá; o carcaju está velho, grisalho, com uma mão que treme, cheio de cicatrizes e machucado; Charles Xavier parece preso a uma cama, enfim envelhecido. Não existem mais mutantes na Terra... Ou, pelo menos, não como antes.

Tudo isso você vê, é fácil perceber. Mas o trailer se aprofunda ainda mais nessa história toda, claramente baseada em Old Man Logan, com a presença quase física de Hurt, de Johnny Cash — o reflexo perfeito de um mutante vivendo sozinho, convivendo com os traumas de seu passado e esperando a morte chegar, lentamente.

É quase como não precisássemos ver nada sobre o filme. Uma ou duas fotos e Hurt tocando ao fundo diz exatamente o que Mangold pretende com essa produção — a ponto de as poucas cenas de ação do vídeo parecerem deslocadas.

Hurt é uma versão de uma canção do Nine Inch Nails, presente no disco The Downward Spiral (1994), um álbum conceitual que se tornou um verdadeiro divisor de águas na carreira da banda liderada por Trent Reznor.

Se o disco de estreia, Pretty Hate Machine (1989), era uma espécie de synthpop flertando com o industrial, The Downward Spiral abusa do peso e, numa mistura de rock industrial, techno e heavy metal, conta ao longo de suas 14 faixas a jornada de autodestruição de um homem, começando sua espiral descendente e indo em direção à tentativa de suicídio. O clima foi inspirado pela casa para a qual Reznor se mudou, o número 10050 da Cielo Drive, em Los Angeles.

Caso você não tenha sacado, estamos falando da mesma casa na qual a “família” de Charles Manson matou a atriz Sharon Tate, em 1969.

A faixa – que faz referências à automutilação e ao uso de heroína – é justamente a última do disco e, justamente por isso, é entendida por grande parte dos fãs do NIN como sendo uma espécie de bilhete de despedida antes do suicídio do protagonista desta história, que achava difícil continuar vivo por conta da dor e da depressão.

O responsável pela gravação de Cash ter acontecido foi o superestrelado produtor Rick Rubin, responsável pelo álbum American IV: The Man Comes Around, o último de sua discografia lançado com ele ainda em vida, no qual a estrela da música country, na época com 71 anos, faz uma série de reinterpretações como Bridge Over Troubled Water (Simon & Garfunkel) e Personal Jesus (Depeche Mode). “Na primeira vez que ouvi a música, eu disse que não poderia cantá-la. Não é o meu estilo”, revelou o próprio Cash, em uma de suas raras entrevistas, para a MTV. “Rick então disse ‘bom, vamos tentar de outro jeito’. Aí, ele diminuiu o andamento e eu escutei... E foi a partir dali que começamos a trabalhar na gravação”.

A versão de Cash tem uma mudança sutil na letra: o trecho “crown of shit” foi mudado para “crown of thorns”. Não apenas sumiu o palavrão como entrou no lugar uma referência cristã, refletindo a devoção do cantor à religião.

Assim que Reznor soube que Cash tinha interesse em fazer um cover de sua música, o músico se disse “lisonjeado” mas expressou preocupação por achar que o resultado soaria apenas como um artifício para chamar atenção para o Homem de Preto. Mesmo assim, acabou liberando. Estava trabalhando em um disco, não deu muita atenção, assim como não se importou quando recebeu um CD com a versão gravada. Ouviu rapidamente, sem ligar, achando apenas “tudo muito estranho”.

Pouco tempo depois, ele teria a chance de ver o clipe da versão de Cash em primeira mão, justamente enquanto estava num estúdio em Nova Orleans gravando com Zack De La Rocha, vocalista do Rage Against the Machine. E quando a dupla sentou para assistir a reação foi BEM diferente. “Assim que o vídeo acabou, eu estava quase chorando”, Reznor revela em entrevista ao Independent. “Estava aquele silêncio SEPULCRAL na sala. Aí, alguém soltou um pigarro e mandou ‘hm, tá bom, vamo lá tomar um café’”.

Uma lenda da música a reinterpreta com um significado diferente, mas mantendo a sinceridade e a pureza. E as coisas ficaram ainda mais estranhas quando ele morreu, porque o significado da canção mudou completamente

Já num papo com a revista Alternative Press, o líder do NIN afirmou que tudo acabou fazendo sentido pra ele depois. “Eu tinha perdido a minha namorada, porque aquela música não é mais minha. Isso me fez pensar sobre o poder da música como mídia e como arte. Escrevi uma música no meu quarto como uma forma de me manter são, sobre um lugar vazio e desesperado no qual eu estava, isolado e sozinho. E de alguma forma, uma lenda da música de uma era e de um gênero totalmente diferente a reinterpreta com um significado diferente, mas mantendo a sinceridade e a pureza. E as coisas ficaram ainda mais estranhas quando ele morreu, porque o significado da canção mudou completamente”.

No livro The Man Comes Around: The Spiritual Journey of Johnny Cash, o diretor Mark Romanek (colaborador frequente do NIN e responsável pelo longa Retratos de uma Obsessão, com Robin Williams) confessa que, assim que ouviu Hurt cantada por Johnny Cash, ligou pra Rubin e implorou para fazer um videoclipe dela. Chegou até a se oferecer para fazer a parada de graça.

Rodado em tempo recorde na casa original do músico e que depois foi transformada em um museu, a chamada House of Cash no subúrbio de Nashville, o clipe de Hurt reflete claramente os quase 50 anos de carreira do músico. Com a saúde nitidamente fragilizada, referências religiosas e itens antigos como estátuas DECRÉPITAS ajudam a passar a mensagem de um passado lendário que agora é forçado a encarar a cruel realidade da ação do tempo. “Eu chorei da primeira vez que vi”, afirma Rubin. “Chegar neste grau de emoção com um filme de duas horas já seria um grande acontecimento. Mas fazer isso com um vídeo musical de quatro minutos, porra, é chocante”.

A esposa de Johnny, June Carter, morreria três meses depois da gravação do clipe. O próprio cantor não resistiria e partiria logo na sequência, exatos sete meses depois de rodar aquele que é, de longe, um dos vídeos musicais mais bonitos e mais emocionantes da existência humana (sério). Em 2007, a House of Cash, na qual Johnny viveu por quase três décadas, foi destruída graças a um terrível incêndio justamente quando era restaurada. Em 2013, um novo museu em homenagem ao cantor seria inaugurado na cidade.

Agora nos resta saber o quanto a Fox vai deixar que esse seja um filme de James Mangold, de fato, ao invés de mais um das suas produções mutantes. Quando deixaram os X-Men nas mãos de Matthew Vaughn, conseguiram o melhor de todos os seis filmes. Por esse trailer, parece que enfim o Caracaju terá o filme que tanta gente espera, há tanto tempo.