A amizade entre os dois personagens, tão diferentes entre eles, é das coisas mais improváveis e exatamente por isso mais legais dos gibis da Marvel — e tamos falando de uma história que tinha tudo pra dar errado
Se na DC Comics o Besouro Azul e o Gladiador Dourado são o melhor exemplo de uma amizade ao mesmo tempo divertida e sincera entre dois caras, na Marvel existe uma outra dupla ainda mais improvável que já funcionava lindamente desde o final da década de 70 e que se tornou uma verdadeira irmandade: Luke Cage e Danny Rand, o Punho de Ferro.
Quando Cage surgiu em seu título próprio, em 1972, o título da publicação era autoexplicativo: Hero for Hire. Ele era um herói de aluguel ou, bom, quase isso. Na verdade, Luke não chegava a ser um mercenário, mas ele juntava suas atividades como herói pro bono com alguns casos pagos que resolvia quase como um investigador particular, na mesma pegada da Jessica Jones que conheceria muitos anos depois. Nada de atividade criminosas, por maior que fosse a oferta de pagamento. Mesmo quando o nome do gibi mudou pra Power Man, no número 17, esta parte da trama se manteve.
Aí, pula pra 1978, num arco especial em três partes que rolou entre os números 48 e 50. Foi quando Luke Cage recebeu uma participação muito especial: o Punho de Ferro, que vinha encarando uma queda brutal de vendas em sua HQ própria já havia um bom tempo e acabou tendo seu espaço particular devidamente cancelado. O ponto é que as vendas do próprio Cage não iam bem e a editora resolveu juntar os dois pra ver que bicho dava. E aí... rolou uma química.
Primeiro eles tretaram, claro, lutaram entre si devidamente manipulados por um vilão, só que depois se uniram e começaram a trabalhar juntos. Eis que então Danny se tornou presença recorrente do gibi do mais novo amigo. E aí a revista até mudou de nome para acomodar dois protagonistas: Power Man and Iron Fist.
A nova publicação se tornou um inesperado sucesso para a Marvel, que investiu pesado no relacionamento entre os dois. Na trama, os camaradas se tornaram sócios de uma empresa chamada Heroes for Hire, Inc., um pequeno negócio de investigação profissional e serviços de proteção que tinha até um escritório na Park Avenue.
E olha só, tamos falando de uma microempresa que tinha até DOIS funcionários pagos, além de Danny e Luke — a secretária Jenny Royce e o advogado e representante comercial Jeryn Hogarth (versão masculina da Jenny que aparece nas séries do Netflix). Embora basicamente Luke e o Punho fossem os encarregados de colocar a mão na massa quando o quesito era “porrada”, eventualmente as amigas Colleen Wing e Misty Knight, as Filhas do Dragão, apareciam pra dar uma força (o fato de que a Misty e o Danny chegaram a ter um relacionamento amoroso também ajudava).
A parceria comercial duraria, nesta primeira fase, até o número 125, quando o título foi cancelado depois que Cage chegou a ser acusado da morte aparente do Punho de Ferro (que, na verdade, estava sendo substituído por um organismo meio planta, melhor não perguntar) — e a dupla seguiria caminhos distintos desde então. Ou quase, né.
Porque, assim como a Heroes for Hire voltaria à ativa algumas outras vezes tanto na cronologia Marvel quanto em títulos próprios e com um line-up de “empregados” bem variado (Mulher-Hulk, Homem-Formiga, Hércules, Tigresa Branca, Falcão, Silver Sable, Elektra, Justiceiro), a parceria entre Cage e Rand é um tema que a Casa das Ideias invariavelmente aborda, seja em seus gibis solo, seja em suas participações em grupos maiores (como o recente Defensores ou mesmo nos Vingadores).
O mais engraçado de tudo isso é que, ao mesmo tempo em que têm origens bastante diferentes, Luke e Danny têm algo em comum que, de alguma forma, se tornou o seu inesperado elo de ligação. Luke Cage vem de uma infância pobre no Harlem, se envolveu com atividades pouco elogiosas quando era moleque, foi pra cadeia, comeu o pão que o diabo amassou. Já Rand é o herdeiro de um conglomerado multimilionário, cheio de privilégios, que perdeu a família numa tragédia e acabou sendo treinado em uma misteriosa cidade ancestral para se tornar uma arma viva. Dois caras com backgrounds completamente diferentes e que se tornam melhores amigos.
O que eles têm em comum? Ambos são, originalmente, estereótipos clássicos vindos de gêneros cinematográficos que faziam um puta sucesso na década de 70. Enquanto Luke Cage era o negro forte e marrento típico dos blaxploitation, o Punho de Ferro era o branco saído diretamente daqueles filmes de kung fu nos quais o ocidental chegava lá no Oriente, aprendia a porra toda como num passe de mágica e, vejam vocês, virava um mestre que superava todos os mestres.
Ao longo dos anos, a coisa mais legal é que não apenas eles funcionaram JUNTOS, mas também foram evoluindo em separado — do seu lado, Cage amadureceu, deixou de ser apenas o cabeça-quente que derruba paredes, virou pai e mostrou que podia ser até líder dos Vingadores; já o Danny foi constantemente questionado por suas raízes, por aqueles que vieram antes dele e entendeu a enorme carga que seus dois legados (como o bilionário Rand e como o Imortal Punho de Ferro) colocavam em suas costas, para o bem e para o mal. Em ambos os casos, o trabalho de bons roteiristas fez a diferença na evolução.
Num certo ponto, a trajetória desta dupla lembra um pouco o que rolou entre o Lanterna Verde e o Arqueiro Verde na clássica passagem da dupla Dennis O’Neil e Neal Adams: uma troca de experiências fundamental para que ambos crescessem não apenas como heróis, mas como as pessoas por trás da máscara. Danny descobriu, com Luke, como era a vida nas ruas, fora dos prédios luxuosos de vidro de Manhattan. E, por outro lado, Luke percebeu que nem todo cara branco e com grana era necessariamente um babaca racista. E, no fim, na hora que o pau comia, a força física e resistência sem igual de Luke Cage eram o complemento ideal à agilidade e sutileza das artes marciais de seu parceiro. E a prova de que a amizade é tão grande está no fato de que, além de ser padrinho da filha de Luke e Jessica Jones, foi o Punho de Ferro que inspirou o nome de batismo da garota: Danielle. Quer prova de amor maior do que esta? <3
No fim, eles se tornaram um verdadeiro clássico, do tipo que marcou a infância dos criadores contemporâneos da Marvel. Brian Michael Bendis, que ajudou a tirar ambos os heróis das sombras diretamente pro elenco principal da grande equipe de justiceiros da casa, já contou inúmeras vezes que ouvia os executivos rindo quando dizia o quanto gostava do Luke Cage, por exemplo, considerado um personagem velho e sem potencial. Ano passado, o escritor David F. Walker (Shaft, Cyborg) e o desenhista Sanford Greene (The Runaways, Uncanny Avengers) chegaram a fazer um revival do título clássico Power Man & Iron Fist, algo que seria talvez inimaginável alguns anos antes.
“O editor da Marvel, Axel Alonso, me pediu para fazer uma lista dos personagens Marvel com os quais eu mais queria trabalhar”, contou Walker, em entrevista pra Fast Company. “E ele ainda disse: ‘não se limite, pense o quão grande você quiser’. E bem no topo da minha lista estavam Luke Cage e Danny Rand. E eu ainda coloquei uma observação ao lado do nome deles: ‘trabalhando como um time’. Porque isso era algo que eu sempre quis ver, por anos e anos. Esta dupla em particular, é tão icônica. Como roteirista, você ama ter em mãos personagens interessantes — e estes dois são muito bons de se aprofundar. Eles são o exemplo máximo do bromance”.
Num papo com a revista Playboy, tanto Mike Colter quanto Finn Jones, respectivamente o Luke e o Danny do Netflix, falaram a respeito de como esta dinâmica tão particular pode, de alguma forma, se refletir não apenas em Os Defensores mas também nas próximas temporadas das séries de cada um. “Danny tem um comportamento muito impulsivo, ele vive socando as coisas, jogando o dinheiro pra lá e pra cá”, afirma Jones. “E aí ele dá de cara com um sujeito tipo o Luke Cage, que é o oposto completo, que diz: calma aí, garoto, se vamos trabalhar juntos, é melhor você aprender umas coisas”.
Já falando com o EW, Colter reforça o papel de Cage como uma espécie de “mentor”, um conciliador para Danny Rand. “O Punho de Ferro é muito jovem e tem um tipo de ‘exuberância’ que o Luke vai tentar acalmar um pouco. Ele é tipo um touro numa loja de porcelana e eu acho que o Luke já viu mais do mundo e entende certas coisas. É uma boa combinação”.
Ou seja: assim como nas HQs, a chance de que Luke Cage ajude Danny Rand a ser uma pessoa melhor é MUITO grande. Tomara que aconteça. Porque isso pode significar que uma certa temporada 2 tem grandes chances de melhorar... ;)