Making a Murderer e o que isso tem a ver com você | JUDAO.com.br

Esqueça o que você tá acostumado a ver nos filmes e nas séries: o sistema penal, seja lá de qual país, é muito, muito ruim

SPOILER! Sabe toda aquela imagem que você tem do sistema penal americano? Aquela imagem de competência, justiça e eficiência? Então, esqueça! Esta série-documentário irá desconstruir por completo esta sua noção do sistema de justiça criado na sua mente pelas séries e filmes de TV.

Making a Murderer conta principalmente a história de Steven Avery, cidadão que fora acusado injustamente da prática de crime sexual, tendo ficado preso 18 anos por este crime. Depois de conseguir provar sua inocência e ser libertado, Avery foi posteriormente acusado de homicídio — tendo aqui sido condenado à prisão perpétua por este crime.

É importante que estas duas premissas fiquem claras em sua mente: ele ficou preso por DEZOITO anos por conta do primeiro crime e conseguiu comprovar sua inocência. No segundo crime, ele foi condenado à prisão perpétua e todos os seus apelos (até agora) foram negados.

A tendência natural das pessoas é querer discutir se Steven Avery é culpado ou inocente do homicídio de Teresa Halbach. Minha opinião neste ponto seria apenas mais uma somada a tantas e não quero aqui seguir por esta trilha. Penso que o peso do documentário é maior do que essa discussão, já que ele deixa claro como o sistema penal é injusto e pode ser utilizado de forma a que as pessoas acabem por não ter um julgamento imparcial.

Quando um crime que atrai a atenção da mídia é cometido, rapidamente hordas de pessoas se unem em um discurso de ódio contra o acusado. Normalmente, estas pessoas costumam vociferar a plenos pulmões que jamais cometeriam um crime. Tenho dúvidas em relação a essa frase, mas o fato é que há uma importante fala no filme que vale por aulas e mais aulas de Direito Processual Penal: “você pode mesmo jamais cometer um crime, mas nada impede que a polícia te acuse de ter cometido um crime”. Percebam a grande sacada que, na pele de Steven Avery, torna tudo assustador: quem elege os suspeitos? Quais os motivos que levam alguém a ser apontado como autor de crime?

Making a Murderer

Depois de alguns dias absolutamente sozinha dentro da propriedade da família de Avery, a polícia acabou encontrando diversas provas contra o acusado — como, por exemplo, seu sangue dentro do veículo da vítima, embora não fosse encontrada nenhuma digital dele no local. Note bem: sangue dele no veículo, mas sem digitais! Como se explica este fato?

Bom, a série mostrou que a polícia tinha guardado sangue de Avery e o recipiente em que se encontrava estava violado...

Também pesou contra o acusado o depoimento de seu sobrinho que, conforme apresentado pelo documentário, era uma pessoa com QI abaixo da média. As imagens mostrando que o garoto, com 16 anos na época, fora induzido em seu depoimento e este depoimento fora feito repetidas vezes até o garoto dizer o que os policiais queriam ouvir. Vejam também outro detalhe aqui: ele foi ouvido sem a presença de advogado e sem a mãe. Os policiais disseram perante a Corte que a mãe não quis acompanhar o depoimento e ela peremptoriamente nega este fato.

Não consegui concluir aqui, de maneira segura, quem estaria mentindo, mas, se tivesse que apostar minhas fichas, diria que a mentira veio dos policiais.

Por fim, quando foi condenado à prisão perpétua o juiz disse algo como “você não aprendeu nada com sua vida. Você cometeu crime mais grave do que o anterior e por isso eu o sentencio à prisão perpétua”. Bem, Joãozinho, e se isso tudo tivesse acontecido no Brasil? O Tio Woody aqui é estudioso do processo penal, tendo mestrado e doutorado nesta matéria e embora possa não entender muito do tema, desconfia de muita coisa.

Comecemos pelo final, pela sentença. Vocês repararam na frase do juiz? Eu pergunto: como ele pode dizer que ele cometeu crime anterior se ele foi inocentado? Ele havia sido condenado anteriormente por alguma molecagem e o juiz claramente não estava se referindo a ela. No Brasil, esta situação dificilmente ocorreria (ponto para nós sobre os yankees), pois há recursos claros a evitar este tipo de erro (embargos de declaração e apelação, caso queira procurar no Google por mais informações).

Em segundo lugar, o sangue guardado pela polícia. Como seria isso no Brasil? Simplesmente não seria. Não temos entre nós esta cultura de cuidado com as evidências. Há um termo técnico chamado “cadeia de custódia” e só mais recentemente começamos a nos preocupar com este tema no Brasil (ponto para o Tio Sam).

Temos ainda a OITIVA do adolescente. Como seria por aqui? A nossa lei permite que sejam utilizados elementos do inquérito policial com outros elementos colhidos no processo para a condenação do suspeito (artigo 155 do Código de Processo Penal). Temos um empate aqui.

Making a Murderer

Por fim, o julgamento pelo júri. Aqui no Brasil os jurados julgam os crimes dolosos contra a vida. Mas há um detalhe: eles não podem conversar entre si, diferentemente do que ocorreu no caso Avery (e que, só como exemplo, você pode ver com mais detalhes em O Júri, filme com John Cusack, Rachel Weisz, Dustin Hoffman e Gene Hackman). Naquele caso, inicialmente os jurados eram contra a condenação dele, mas foram convencidos do contrário por outros jurados (lembram-se disso?). No Brasil, fossem os mesmos, ele seria absolvido, afinal os jurados não podem conversar entre si.

Ao fim das mais de 10h do documentário, fica um sentimento misto de nojo, indignação, raiva e tristeza. Como professor de Direito Processual Penal e Juiz de Direito penso que o sistema penal é ruim, muito ruim (seja de qual for o país). O que assusta no caso Avery é que os filtros que deveriam impedir estes absurdos não funcionaram como deveriam. PRECISAMOS melhorá-los pois até hoje não fomos capazes, na odisseia humana, de pensar em nada melhor do que esse sistema.

Encerro, aqui, com a pergunta que começamos: e você com isso? Ora, meu caro padawan, você pode nunca cometer um crime, mas isto não significa que a polícia não vá acusá-lo de cometer um.

Guilherme Madeira Dezem é professor de Direito Processual Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Juiz de Direito e acha que entendeu o final de Lost e, o que é pior, adorou. Ele está no twitter, Facebook e professormadeira.com