Missão: Impossível II e uma lição de companheirismo | JUDAO.com.br

Absoluta e semvergonhanenhumamente inspirados nos 31 Gaems do Overloadr, começamos a série 88 Filmes, em que 88 autores convidados contarão, sem nenhuma frequência definida, a importância que 88 filmes tem na sua vida, seja como o screensaver de algum momento marcante, seja o próprio filme o tal do momento marcante. Serão 88 artigos extremamente pessoais, mostrando o papel importante da cultura pop na vida das pessoas. :)

A história começa assim: eu tinha acabado de levar um pé na bunda.

Era, na real, o meu PRIMEIRO pé na bunda. Pé na bunda pra valer, profissional, sabe? Eu tinha lá meus 20 anos. Já tinha tomado uns chega pra lá de meninas pelas quais me apaixonei mas que simplesmente não queriam nada comigo, coisa ainda de adolescente. Sabia o que era rejeição, claro, desde que era moleque. Mas neste caso, era o fim de um namoro. Sério. Pra valer.

Um namoro que já durava uns quatro anos. Era amor de verdade, coisa de cinema, que começou ainda na escola. “Daqui até a eternidade”, como cantava Cazuza. Ou pelo menos eu achava que era.

A real é que a gente vinha brigando demais. Por bobagens, por horários, por ciúmes bestas. Umas discussões que, de faíscas, se transformavam em incêndios, viravam barracos homéricos. Aí ela conheceu outro cara. E deu no que deu.

Passei alguns dias BEM mal. Pra valer. Não saí por aí contando pra todo mundo, tinha esperança de que a gente pudesse voltar. “Sinto como se tivesse perdido um braço”, lembro nitidamente de ter escrito para uma amiga, via MSN, num daqueles acessos de dramalhão mexicano típicos das boas histórias de amor. Tive o apoio de alguns grandes amigos, aqueles que são para a vida toda, que estiveram do meu lado sempre. Só que não queria ver ninguém.

Ao final daquela primeira semana sem ela, eu estava mal pra diabo. Ainda morava na sempre querida cidade de Santos, minha terra-natal litorânea – mas já trabalhava em São Paulo. Ou seja: todos os dias, me submetia à danada da rotina do ônibus fretado para ir e voltar para casa. Tentei a todo custo mergulhar de cabeça no trabalho, mas simplesmente não conseguia. Era tudo novo demais. A cicatriz ainda machucava, ainda latejava. Escrevia meio parágrafo de um texto e lembrava dela. Tava bem choroso, uma companhia péssima. Nem saí para aquele tradicional almoço feliz que as pessoas que trabalham em ambientes corporativos conhecem tão bem.

Não era vegetariano ainda, então mandei ver uma coxinha na padoca da esquina. Com uma tonelada de catchup. E que ainda me fez mal, aquela merda.

Naquela sexta-feira, dentro do fretadão, nem consegui socializar. As sextas no ônibus eram festivas, com música, bebida, a galera contando piada e disparando vergonha alheia pra todos os lados. E eu sentado lá na frente, quietão, sem querer muito papo. Cheguei em casa, meus pais tinham saído. Tomei um banho, fui pra lá, fui pra cá, sentei na frente do computador... Nada. Estava inquieto, peito rasgado.

Tinha certeza de que não ia conseguir ficar em casa sozinho. Lembro dos detalhes até hoje. Meti a minha camiseta do Rage Against The Machine, uma bermuda, chinelos, aquele boné do Homem-Aranha virado para trás... e parti para o cinema. É, isso mesmo, o cinema. Meu companheiro de sempre, ele ia ajudar a me distrair. Mas não queria papo com ninguém, com qualquer conhecido. Não queria ver qualquer rosto familiar. Queria ver um filme sozinho. Queria o escurinho gostoso e familiar daquela sala de sempre. E, preferencialmente, um filme que fosse do tipo “deixe o seu cérebro aqui na porta”. Folheei o jornal (é, aquela coisa de papel que suja os dedos), escolhi um horário bastante ingrato e uma produção que, sei lá, não me atrairia de bate-pronto em um dia “normal”.

Era Missão: Impossível II.

Eu até tinha gostado do primeiro, vejam. Mas nada, assim, que tivesse mudado a minha vida. Apenas... “ah, legal”. Já estava nos cinemas há algumas semanas, na real. Era a seleção perfeita. Sem muita disputa, sala relativamente vazia. Cheguei, comprei um balde imenso de pipoca gordurosa e um latão sobrenatural de refrigerante. “Vamos lá, Tom Cruise, me surpreenda e me faça esquecer”. Não era exatamente um expediente comum pra mim. Não estava acostumado a ir ao cinema sozinho. Sempre ia...com ela. Precisava enfrentar este desafio.

Entrei na sala para me acomodar o quanto antes numa poltrona e me preparar para o ritual habitual de curtir os trailers... e pimba, lá estavam eles. Uma fileira inteira, uns 15 ou 20 nerds da mais fina estirpe santista. A turma toda do curso de quadrinhos que eu fiz durante toda a minha adolescência em Santos. Alguns dos meus melhores e mais queridos amigos em muitos anos.

“E aê, mano! Senta aí com a gente”, me saudaram todos em polvorosa, gritando e chamando a atenção dos outros poucos espectadores que começavam a entrar na sala. Bem do jeitinho que a gente sempre fez quando íamos todos juntos ao cinema. Ela sempre estava junto. Mas agora não. Agora era só eu. E aqueles malucos.

Mas... porra, gente. Eu queria ficar sozinho, caralho. Tô mal, me deixem, parem de me perseguir.

Não falei isso pra eles, claro. Mas pensei. Isso eu garanto que pensei. E que eles, ao lerem este texto, não me entendam mal. Só que é verdade. Jamais imaginaria que eles estariam lá. Nem era a grande estreia da semana, vai!

Respirei fundo. E quase fingi que não era comigo, correndo para uma fileira lá na frente, onde ninguém me veria. Mas nem ia adiantar. “E aí, galera? Que surpresa, hein?”, soltei, em tom meio triste.

Nem deu tempo de fazer muita firula, de ser sentimental demais. Já fui puxado por um deles, devidamente instalado em uma poltrona bem no meio da fileira. Acolhido.

Descobri, algum tempo depois, que a maior parte deles já sabia que eu tinha terminado o namoro. Contei para um, que espalhou para o resto. Nem fiquei puto, para ser honesto. Porque aquela noite, gente, foi um baita rito de passagem pra mim.

Os caras nem me deixaram sequer pensar, por um minuto, na minha ex-namorada. Fizemos piada o tempo todo. Nos rachamos de rir daquelas malditas pombas voando em câmera lenta. E daquela assombrosamente ruim sequência das duas motos batendo de frente, como se fossem cavalos. “O John Woo tá tendo aulas com o Michael Bay, é isso?”, soltou um. “Pode crer. Tudo explode nesta merda”, retrucou outro. “Se colocassem uma chaleira pra ferver água aí, certeza que ia explodir também”, fechou nosso sábio professor, também integrante daquela intrépida trupe.

E ali tive a plena certeza de que o Dougray Scott fez a pior escolha de sua vida ao deixar o papel de Wolverine de lado para ser o vilão desta bomba. E um vilão bem meia-bomba, preciso dizer.

Nós. :)

Nós. :)

Foi uma noite incrível. Deliciosa. E que me fez passar por um sofrimento que eu achava maior do que a vida com uma leveza que, até duas horas antes, eu jamais imaginaria ser possível. No resumo, achei o filme uma bosta. E continuo achando. Mas engraçado que, mesmo assim, eu sempre paro pra ver quando encontro passando na TV. SEMPRE. Mesmo agora, casado, dois filhos, eu dou risada sozinho. Mais do que isso, o meu coração se aquece e me sinto, mais uma vez, acolhido. Por companheiros que, ainda que distantes nos dias de hoje, foram cruciais no meu crescimento como pessoa.

Uma pessoa que entendeu que o sofrimento não precisa ser sofrido sozinho. Que ter pessoas queridas, aquelas pessoas certas, ali bem do seu lado, pode ajudar a caminhar de maneira mais suave por uma jornada cheia de pedregulhos. Naquela sexta-feira, depois de uma parada adicional numa casa de esfihas para discutir o quão ruim era Missão: Impossível II, voltei para casa mais leve. Com um sorriso no rosto. E pensando: “vamos em frente, né?”. E eu fui.

Em um dado momento lá em cima, me referi a ela como sendo “ex-namorada”. A partir daquela noite, foi a primeira vez que a palavra “ex” passou a ser usada na minha cabeça para pensar nela. Gozado lembrar disso hoje, mais de uma década depois. Até porque muita, mas muita água rolou por baixo desta ponte, que ainda seria bem mais cheia de percalços e obstáculos do que eu mesmo imaginava.

Mas estes caras, daquela fileira, mesmo com o começo e o fim desta e outras histórias amorosas, ainda estão guardados na minha vida e no meu coração. Para sempre.

E quanto ao Tom Cruise? Ah, na boa. Mal reparei que ele estava ali mesmo. Ele só foi a estrela de um filme ruim que me ajudou a sentir bem.

Só por isso, já merece o Oscar.

Thiago Cardim é editor do JUDAO.com.br, publicitário e jornalista. Nerd convicto, louco por cinema, séries e HQs. Vegetariano por opção, banger de coração, marvete de carteirinha. Também é pai de dois filhos. Outras histórias de outros filmes você pode ler aqui. :)