Sim, todos tiveram apoio da Ancine e isso diz muito mais sobre o país em que vivemos do que sobre quem produz esses filmes
As coisas não estão fáceis. Tá todo mundo com a cabeça fodida, de um jeito ou de outro, e a parte que chegou ao poder tá querendo acabar com absolutamente tudo, do cinema nacional à Amazônia — e olha que, entre essas duas coisas, tem muitas, MUITAS outras. É realmente inacreditável.
Da nossa parte, enquanto um site que discute a cultura pop, vamos lutar e insistir sempre pra mostrar, NO MÍNIMO, como as coisas poderiam ser. Com toda a discussão atual sobre o futuro da Ancine, que cada vez mais toma rumos assustadores, e a estreia de Bacurau nessa próxima quinta-feira (29) resolvemos então, pessoalmente, indicar aqueles filmes nacionais que não são Cidade Deus pra você assistir e, além de dar uma respirada em alguns casos, perceber que filme brasileiro, quando é bom, é bom pra caralho.
por Thiago Borbolla (@borbs)
Nem parece que 2007 foi DOZE FUCKING ANOS ATRÁS, um adolescente já, de tanto que esse ano marcou minha vida, especialmente a profissional, especialmente a relacionada ao JUDAO.com.br.
Alguns meses depois de passar uma semana em San Diego cobrindo a minha primeira Comic-Con, fiquei duas semanas no Rio de Janeiro (minha primeira vez por lá, diga-se) pra cobrir o Festival do Rio e caminhar todos os dias na orla de Copacabana. Assisti a uma quantidade bem interessante de produções, de qualidade nem sempre tão interessante assim — festival, né? Mas teve um filme em especial que mostrou pra um jovem Borbs que o cinema Brasileiro, quando quer, pode ser BOM DEMAIS. Um filme que mostrou que o cinema nacional não precisa estar, sempre, buscando um Oscar. Que dá, sim, pra contar boas e divertidas histórias. Estômago.
A história de um migrante nordestino que cozinha PRA VÁRIOS CARALHOS e arranja um emprego num desses Bar & Lanches da vida, onde conhece Iria (Fabíula Nascimento), uma prostituta que representa tão bem esses Bar & Lanches da vida. Mas a vida tem lá suas complicações e o filme se passa no presente enquanto Raimundo Nonato (vivido por João Miguel) está na prisão, transformando até aquele revirado de nada com porra nenhuma em algo realmente bom, SALPICANDO com flashbacks de sua chegada a São Paulo e sua ASCENSÃO culinária.
É um filme divertido no melhor dos sentidos que essa palavra pode ter. A gente sente um monte de coisas enquanto assiste, mas é impossível não ficar com um sorriso no rosto depois. Pô, muita coisa acontece por conta de COXINHA, sabe? Você deveria muito assistir.
Outro filme que segue a linha “tem um monte de gente foda mas por ser bem escrito acaba não fazendo muito sucesso por aí” é O Homem do Futuro, de Cláudio Torres — mesmo diretor e roteirista de A Mulher Invisível, um filme que merece uma menção honrosa nessa lista ao lado de Motorrad.
Lançado em 2011, o filme dá uma misturada em Efeito Borboleta (falam muito menos desse filme hoje do que deveriam... Ou não?), De Volta pro Futuro e Corra Lola, Corra, mostrando todas as tentativas e erros que o Wagner Moura encara pra poder ficar com a Alinne Moraes AND ser alguém na vida — o que, claro, são coisas bastante relativas.
É legal pra caramba, tem Tempo Perdido tocando várias vezes (e isso não é uma reclamação), boas atuações, EFEITOS ESPECIAIS, ficção científica... Tudo feito no Brasil. É realmente impressionante e vocês deveriam prestar mais atenção nessas produções. ;)
por Júlia Gavillan (@juliagavillan)
Dirigido por Walter Salles, Abril Despedaçado é baseado no romance Philli i Thyer, escrito pelo albanês Ismail Kadare e adaptado por Karim Aïnouz. Enquanto o livro se passa na região rural da Albânia por volta de 1930 e narra a história de uma vingança e do matador encarregado de executá-la, o filme ambienta o enredo em 1910 aqui no Brasil. A trama segue Tonho, que vive com sua família no sertão brasileiro: após a morte do irmão mais velho por uma família rival, seu pai o convence que ele deve se vingar após o período de um mês. Só que Tonho sabe que, caso realize o ato, será perseguido e terá pouco tempo de vida. Perturbado pela perspectiva da morte, ele começa a passar um tempo com seu irmão mais novo, a quem seus pais nunca se deram ao trabalho de nomear, e questiona a lógica da violência e da tradição.
Lançado em 2001, Abril Despedaçado é um dos filmes mais marcantes vi na vida — nunca me esqueci da camisa manchada de sangue mudando de cor aos poucos. Abordando as consequências dos ciclos de violência, o filme tem qualidades atemporais como atuações impecáveis, uma história com elementos de tragédia grega sobre a cega aceitação das tradições e uma fotografia de chorar de tão bonita feita por Walter Carvalho.
Focando nas carregadas questões de Tonho, a história é pautada por muitos silêncios e pausa dramáticas que o reduzem à uma velocidade bem lenta, o que colabora para não desviarmos a atenção da tela, mesmo que incomode.
Salles fez um trabalho impecável ao se aprofundar nessa sensação de tragédia e inevitabilidade do destino que Tonho carrega, criando o equilíbrio perfeito ao amor fraternal presente no irmão mais novo. Abril Despedaçado é uma daquelas obras primas brasileiras que merecem ser vistas e revistas em todos os tempos, principalmente o atual.
Outra produção protagonizada por Santoro, Bicho de Sete Cabeças é baseado em um livro autobiográfico escrito por Austregésilo Carrano Bueno, intitulado Canto dos Malditos. Adaptado por Luiz Bolognesi, o drama dirigido pela fantástica Laís Bodanzky conta a história de Neto, um jovem internado em um hospital psiquiátrico depois que o pai encontra um cigarro de maconha em seu casaco. Hospitalizado contra sua vontade, Neto é enviado para uma instituição mental onde é submetido a situações abusivas com outros pacientes. Aos poucos, ele vai se tornando cada vez mais desequilibrado e emocionalmente frágil.
Contando a história de um jovem imaturo comum, Bozanzky fez um longa incrivelmente poderoso e aterrorizante sobre os abusos sofridos pelos pacientes em hospitais psiquiátricos. É desesperador e sufocante como a produção nos posiciona nesse ambiente, mas evita investigar a fundo a natureza de qualquer doença psicológica. O ponto principal está na forma como os pacientes são tratados, independente do motivo para estarem ali.
Além de abordar questões sociais e humanitárias, Bicho de Sete Cabeças também fala sobre o embate entre pais e filhos e a complicada relação entre expectativas paternas e gerações diferentes. As transformações pelas quais Neto passa mudam a si mesmo e também modificam completamente sua relação com seu pai e, consequentemente, a dinâmica familiar. Mesmo depois de quase vinte anos, Bicho de Sete Cabeças permanece assustadoramente relevante.
por Thiago Cardim (@thiagocardim)
Ariano Suassuna, cara. A gente tem essa mania besta de só lembrar de pagar um pau para autores clássicos gringos, uns Dickens, Hemingway ou Bukowski da vida. Mas o que o Suassuna, que é dos nossos, nossa gente, fez é lindo, dando um ar de fábula às histórias da cultura popular do Nordeste. É maravilhoso, é pra encantar, pra emocionar, pra surpreender. Devia de verdade morar bem mais ali na área de clássicos nas bibliotecas.
E o legal desta bem-sucedida adaptação de O Auto da Compadecida, sua obra mais conhecida, é que ela acabou indo ANTES pra TV, nosso veículo maestro por excelência. Mas quando recebeu o tratamento de filme, o diretor Guel Arraes soube trabalhar de uma maneira tão inteligente que não perdeu a força de sua narrativa — um jeito de contar a história que pegou Suassuna e deu um revestimento pop, ampliando ainda mais o olhar, fazendo com que aquilo tudo não tivesse jeito de novela global, sabe? Era uma coisa diferente, com uma assinatura que ficou gravada em todo o trabalho do Guel, um humor ágil, diálogos rápidos e ritmados, quase cantados, atores carismáticos e cheios de química entre eles.
É cinemão pipoca com sabor de Brasil, saca? Dois protagonistas do sertão nordestino que se apoiam um no outro, que precisam sobreviver à fome, à miséria, que tentam dar golpe até na morte, numa trama tão surreal que é mais real do que se imagina, desfilando ao lado de um elenco brilhante de coadjuvantes. Ainda assim, como brilham Selton Mello e principalmente Matheus Nachtergaele, que domina a tela.
Aí a gente tem aquela sequência final, o julgamento celestial de João Grilo, com a Compadecida, o Diabo e o Jesus Cristo negro. Fernanda Montenegro, sabendo rir de si mesma e nos arrancando suspiros, só aplausos. Aquilo é divino, com o perdão do trocadilho ridículo. Que texto, que atuações, que fotografia, que direção de arte. É humor cheio de coração, beleza, sutileza, delicadeza. É questionador e ao mesmo tempo respeitoso até dizer chega. É Brasil pra caralho.
Outro bom exemplar do Guel Arraes aqui, Lisbela e o Prisioneiro é uma comédia romântica Made in Brazil que não precisa necessariamente ser ambientada nas grandes metrópoles do eixo Rio-São Paulo, em belos apartamentos de frente pra praia ou no Centro, em cafeterias de classe média ou fofíssimos bistrôs, tentando evocar Friends ou How I Met Your Mother.
O filme chegou aos cinemas com ares de produção blockbuster norte-americana: testes de audiência, assessoria de imprensa funcionando à toda, trilha sonora bem cuidada e lançada em CD junto com o filme, inflexíveis datas de estréia — nada à toa, porque a obra merece. Uma história com personagens cativantes, interpretações impecáveis, diálogos ágeis, texto inteligente, edição criativa e uma direção de arte bem apurada. O que mais a gente quer? Ah, sim: boas doses daquele humor variando do escrachado ao sutil que só os brasileiros sabem fazer… Voilá: aí está um filme para ver com toda a família. E dá-lhe pipoca!
Brincando com metalinguagem (e com o próprio formato do filme), Arraes conta a história da sonhadora Lisbela (Débora Falabella), uma típica garota de família do interior do Pernambuco que, na década de 60, é completamente viciada em cinema. Ela sonha com um amor impossível, improvável, idílico, daqueles que só vemos nos filmes românticos. Sua vida muda quando ela conhece o sedutor Leléu (Selton Mello), um cafajeste mambembe que vaga pelas cidades interioranas inventando personagens, performances e artimanhas para faturar algum dinheiro… e as mulheres alheias.
Numa destas paradas, ele acaba se envolvendo com a fogosa Inaura (Virginia Cavendish), ganhando o ódio de seu marido, o matador de aluguel Frederico Evandro (Marco Nanini, excepcional). Quando Leléu e Lisbela se apaixonam, é exatamente como ela sonhou: afinal, a dupla vai ter que enfrentar os ciúmes de Douglas e Inaura, a fúria sanguinária de Evandro e ainda a oposição do pai da donzela, o Tenente Guedes (André Mattos, hilário).
Um filme gostoso, leve, suave, divertido. E, ainda assim, muito acima da média de grande parte das fofuras com o selo Sessão da Tarde que Hollywood joga pra cá.
Eu amo musicais. Nunca tive vergonha de assumir, com tudo que eles têm de exagerado, de pomposo, de esquisito, de bizarro, de fascinante. Agora pensa num musical que se passa dentro de um cemitério. Esta é a ideia desta Sinfonia da Necrópole, uma estranha história de amor, uma comédia de humor negro dentro da estética do coletivo formado por Marco Dutra, Caetano Gotardo e Juliana Rojas que, aqui, assume sozinha a direção.
A trama gira em torno da rotina do aprendiz de coveiro Deodato (Eduardo Gomes), um sujeito que não anda lá muito animado com a profissão. Meio medroso, acabou nesta parada por indicação do tio, profissional da ARTE dos enterros. A coisa muda de figura quando surge em seu caminho Jaqueline (Luciana Paes), uma funcionária do serviço funerário com perfil de burocrata que tem uma missão: um levantamento sobre os túmulos abandonados para iniciar um recadastramento. Deodato acaba ficando apaixonado, o que o impede de pedir demissão. Mas digamos que certos eventos de cunho sobrenatural passam a rondar o camarada e a tornar a história bem mais esquisita…
Dentro do microcosmo das lápides e sepulturas, a ideia é dar uma leveza sem perder a estranheza para a questão da especulação imobiliária a partir da reorganização dos túmulos, para falar de divisão de classes, de diferença econômica, sobre aqueles que acabam sendo esquecidos no final do dia.
Só que aí tem aquele karaokê. E o Brasil, como se sabe, se une em torno de Evidências, enquanto os sonhos paulistanos vão pra morrer exatamente naquele lugar. E todos os números musicais, por mais que se passem num contexto absurdo, fazem um sentido danado. O Tim Burton mais autoral de outras eras teria amado colocar as mãos neste roteiro, numa boa.